Jornalismo do centro do mundo

Com o apoio da Força Nacional, agentes do Ibama apagam o incêndio criminoso de uma ponte, durante uma operação contra o desmatamento em agosto de 2023, no Pará. Foto: Lela Beltrão/SUMAÚMA

Quando o celular tocou, Jair Schmitt vestia bermuda e chinelo de dedo e aguardava por uma mesa ao ar livre num restaurante na Vila Planalto. A 4 quilômetros da modernista praça dos Três Poderes, o bairro parece um lugar improvável, com ruas estreitas, casas pequenas e sobrados, nascido como um dos acampamentos dos construtores de Brasília. Era 6 de janeiro de 2023, a primeira sexta-feira do ano, dia de sol e algumas sobras de celebrações na cidade, ainda repleta de simpatizantes do PT que foram assistir à terceira posse de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência da República.

A chamada do celular era de Rodrigo Agostinho, deputado federal pelo PSB de São Paulo. Ex-coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, ele havia sido escolhido pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, para presidir o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama. Agostinho pediu a Jair, servidor do órgão desde 2002, que fosse a seu gabinete.

Jair engoliu apressado a feijoada, correu em casa para vestir terno e gravata e rumou para o Anexo IV da Câmara, um prédio de dez andares e fachada coberta por persianas amarelas que abriga a maior parte dos gabinetes dos 513 deputados federais. Após duas horas de conversa, saiu com um convite para chefiar a Diretoria de Proteção Ambiental do Ibama, conhecida pela sigla Dipro. O convite foi aceito na mesma hora.

Quando assumiu o cargo, nos primeiros dias de janeiro, Jair já sabia o que fazer. Colocou em prática um plano que, em vez de trazer novidades, buscava resgatar estratégias bem-sucedidas e replicá-las em grande escala. Dividiu-o em cinco eixos: 1) ir a campo para impedir a ação de desmatadores; 2) apreender o gado criado em áreas em que a floresta devia estar se regenerando; 3) usar a tecnologia para paralisar a devastação em terras públicas e privadas; 4) retirar do mercado créditos ilegais de madeira; e 5) combater o garimpo em terras indígenas.

Um ano depois, o trabalho executado pelo Ibama é apontado – por pessoas como o cientista do clima Carlos Nobre, a ex-presidente do órgão e especialista em políticas públicas Suely Araújo e o jornalista especializado em meio ambiente e crise climática Claudio Angelo – como o grande responsável pela queda de 50% no desmatamento da Amazônia Legal em 2023, em comparação ao ano anterior. Dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, que emite alertas quase em tempo real, apontam para uma perda de 5.151 quilômetros quadrados da floresta Amazônica no ano passado. Em 2022, último ano da gestão do extremista de direita Jair Bolsonaro (PL), o Deter detectou a derrubada de 10.277 quilômetros quadrados de mata na Amazônia Legal.

Fiscal ambiental do Ibama observa destruição de aeronave do garimpo na Terra Indígena Yanomami, em fevereiro de 2023. Foto: Ibama

Os dados do Deter são menos precisos que os do Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia (Prodes), também produzidos pelo Inpe. Fechado anualmente em julho, o Prodes já havia apontado a tendência de queda no desmatamento na maior floresta tropical do mundo, que cumpre um papel fundamental no cada vez mais frágil equilíbrio climático do planeta. O Prodes registrou queda de 22% na perda de cobertura vegetal da Amazônia entre agosto de 2022 e julho de 2023 – último semestre do governo Bolsonaro (2019-2022) e primeiro semestre da gestão de Lula, iniciada em 2023.

A redução do desmatamento é notável, em especial ao considerar que o crime explodiu nos últimos seis meses do governo de extrema direita. “Eu conheço a força do pessoal do Ibama, tinha esperança de que iam conseguir bons resultados”, diz Suely. Doutora em ciência política, com uma tese que analisou a política ambiental brasileira entre 1992 e 2012, ela presidiu o Ibama entre meados de 2016 e o início de 2019, durante o governo-tampão de Michel Temer (MDB), o vice que se tornou presidente após o impeachment da titular, Dilma Rousseff (PT). Inicialmente recebida com desconfiança, Suely ganhou o respeito de servidores e ambientalistas. “O segredo desse bom resultado é a opção por diferentes tipos de operações. É algo que o Jair Schmitt sempre defendeu. Ele é um grande estrategista, é conhecido no Ibama por isso.”

Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e uma das vozes mais respeitadas do mundo quando o assunto é o papel da floresta Amazônica no equilíbrio climático do planeta, enfatiza que o “momento político é favorável à redução no desmatamento”. “Acredito que o próximo Prodes [a ser divulgado no segundo semestre de 2024] vai indicar uma redução acima de 50%”, aposta.

“Os alertas de desmatamento do Deter, no último semestre de 2022, estavam crescendo 54%”, lembra Claudio Angelo, coordenador de comunicação e política climática do Observatório do Clima, uma coalizão de organizações da sociedade civil brasileira fundada em 2002. “Se alguém me pedisse para apostar, no começo do ano passado, qual ia ser a tendência de desmatamento em 2023, eu cravaria que iria crescer. A derrubada da floresta vinha num ritmo muito forte, a ponto de eu achar muito difícil o governo conseguir reverter isso em seis meses. Mas conseguiu.”

A redução no desmatamento da Amazônia é o resultado mais expressivo que Lula pôde apresentar ao final do primeiro ano de seu terceiro mandato. É uma vitória pessoal da ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, Marina Silva. Mesmo enfrentando resistência dentro do governo e no Congresso Nacional – inclusive na base em tese aliada –, a ministra foi capaz de garantir a retaguarda política necessária para o retorno da fiscalização de crimes ambientais. De volta ao governo federal desde que perdeu uma disputa para o desenvolvimentismo então encarnado por Dilma Rousseff – que começou o primeiro mandato de Lula como ministra das Minas e Energia e em 2008, numa demonstração de prestígio, foi alçada à chefia da Casa Civil –, Marina hoje tem mais força para se fazer escutar numa gestão que se diz comprometida com o enfrentamento da crise climática. Mais de 15 anos depois de encerrar sua primeira gestão como ministra, o contexto atual aponta uma preocupação interna e externa muito maior com a crise climática e seus efeitos sociais e econômicos catastróficos.

A presença de Marina Silva é também um trunfo internacional para um governo que com frequência oscila em seus compromissos socioambientais, como ao defender a abertura de uma nova frente de exploração de petróleo na Amazônia. Por outro lado, os adversários da ministra nunca estiveram tão fortes – basta acompanhar o rolo compressor liderado pela bancada da soja, do boi, da grilagem, dos agrotóxicos e dos ultraprocessados no Congresso, ao destruir a legislação de proteção à natureza e aos povos indígenas numa velocidade espantosa.

A vitória contra o desmatamento – mesmo num ano em que a ocorrência de incêndios na floresta, grande parte deles criminosa, explodiu – é resultado do esforço dos servidores de um dos órgãos da administração federal mais maltratados nos últimos anos. No início de janeiro deste ano, eles paralisaram as atividades de campo para forçar Lula a restituir pelo menos um pouco das perdas salariais que acumularam ao longo de anos sem reconhecimento. Em janeiro, primeiro mês da paralisação, houve uma queda de 69% nas multas ambientais em todo o Brasil. Na Amazônia, a queda foi de 88%. Lula já deu aumentos para a Polícia Federal e para a Polícia Rodoviária Federal, o que na opinião dos servidores demonstra um desequilíbrio nas prioridades de um presidente que se lançou como liderança ecológica global. Após a retomada nas negociações, em 1° de fevereiro, a Ascema, entidade que representa os servidores da área ambiental, afirmou em nota que “não há uma conexão entre aquilo que [os servidores reivindicam] e o proposto pelo governo”.

Crime sem castigo

Não é preciso saber qual o sobrenome de Jair Schmitt para identificar sua ascendência germânica. Alto e magro, tem a pele muito clara, cabelo e barba entre o louro e o ruivo – com fios brancos despontando aqui e ali. Nasceu em Porto União, cidade de Santa Catarina que surgiu às margens da porção inicial do rio Iguaçu, na divisa com o Paraná. Filho de pequenos agricultores, ainda adolescente já vendia picolés pelas ruas da cidade. Trabalhava num escritório de contabilidade quando passou no vestibular para estudar matemática numa faculdade local. No terceiro ano, infeliz, abandonou o curso. Atrás do sonho de ser biólogo, largou a casa da família e a cidade e foi estudar em Ponta Grossa, 200 quilômetros ao norte, no Paraná.

Formou-se em 1999. Em 2002 avançou mais 560 quilômetros para fazer mestrado em São Carlos, no interior de São Paulo. Foi quando soube de um concurso público aberto no Ibama (o primeiro da história do órgão). Prestou e foi aprovado. No ano seguinte, rumou para a Amazônia, onde estreou como fiscal ambiental.

“Rapidamente eu me vi angustiado, pensando em qual a lógica, qual o resultado da fiscalização”, explica. A tal ponto que, anos depois, já no Planalto Central, candidatou-se a uma vaga para um doutorado na Universidade de Brasília. Na pesquisa, desenvolveu um modelo matemático, baseado na Teoria Econômica do Crime, para medir quanto a fiscalização ambiental era capaz de dissuadir criminosos ambientais e evitar o desmatamento da Amazônia. O resultado foi desalentador: devastar a floresta custava pouco mais de 38 reais de multa por hectare a quem fosse apanhado. Cinco anos depois, cada hectare desmatado gerava um lucro de 2,7 mil reais – mais de 70 vezes o valor da multa.

Jair propôs, então, mudanças no modo de fazer a fiscalização, com o uso intensivo de sistemas de monitoramento via satélite. A tese, intitulada “Crime sem castigo: a efetividade da fiscalização ambiental para o controle do desmatamento ilegal na Amazônia”, ganhou em 2016 o prestigioso Prêmio Capes de melhor trabalho de doutorado na área de ciências ambientais em todo o Brasil. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) é uma fundação vinculada ao Ministério da Educação que avalia e fomenta cursos de pós-graduação no país.

No Ibama, Jair e alguns colegas começaram a desenvolver um processo para usar sistemas como o Deter e o Cadastro Ambiental Rural (CAR), em que ruralistas informam voluntariamente a localização precisa das áreas de que dizem ser proprietários, mesmo que elas se sobreponham a unidades de conservação ou terras indígenas. O uso de forma integrada permitiu ao Ibama fazer fiscalização ambiental a distância. Com o acréscimo dos dados de autorizações de derrubada (supressão de vegetação, no termo técnico), emitidas pelos governos estaduais, a equação que permite identificar o crime ambiental e autuá-lo a distância estava fechada. Suely Araújo, então presidente do Ibama, encampou a ideia. Surgia o embrião da Operação Controle Remoto.

Combatendo a distância

O advogado André Lima pousou em Brasília no fim da tarde de 8 de janeiro de 2023, um domingo. A cidade era uma praça de guerra: sob o olhar complacente da Polícia Militar do Distrito Federal, hordas de bolsonaristas invadiam e depredavam o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e – sobretudo – o Supremo Tribunal Federal. Buscavam uma forma de derrubar o recém-iniciado governo Lula.

A tensão e a perplexidade que se sucederam à frustrada tentativa de golpe de Estado ainda eram palpáveis na Esplanada dos Ministérios na quarta-feira 11, quando ele chegou ao Bloco B, sede do recém-rebatizado Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. “A gente já esteve aqui, só que agora o desafio está muito maior. Mas você sabe o que é preciso fazer”, disse a ele Marina Silva. André aceitou o convite para ser secretário extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial.

“Eu estava muito bem no interior”, diverte-se André, no início da entrevista de mais de uma hora a SUMAÚMA em seu gabinete. Apesar de ter nascido em Araraquara e vivido em Piracicaba, cidades do interior paulista, ele nunca perdeu o sotaque de quem cresceu em Pinheiros, bairro de classe média-alta de São Paulo. Advogado formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, André mudou-se para Brasília em 1999 para trabalhar no Instituto Socioambiental, uma das principais organizações não governamentais dedicadas à conservação da biodiversidade e dos povos indígenas e comunidades tradicionais no Brasil. De 2015 a 2017 foi secretário do Meio Ambiente do Distrito Federal. Também ajudou a fundar e estruturar a Rede Sustentabilidade – foi ele quem registrou em cartório, em 2013, o estatuto do partido fundado por Marina Silva.

Com o desmatamento fora de controle nos anos Bolsonaro, André sabia que não havia tempo a perder. “No primeiro semestre, foi uma atuação emergencial”, conta. “Fomos muito incisivos sobre a importância de se resgatarem as operações de fiscalização remota.”

Em 2016, a Operação Controle Remoto tinha sido iniciada como projeto-piloto. Em 2019, foi abandonada pelo governo Bolsonaro. Em 2023, com Lula na presidência, servidores do Ibama voltaram a cruzar informações do Deter e, quando disponíveis, dos proprietários das áreas fiscalizadas e dos processos de autorização para abate de vegetação – coisa rara na Amazônia, onde o desmatamento é 94% fora da lei. Quando os crimes são constatados, emitem-se multas e declarações de embargo das áreas. Tudo a distância. Quando a terra tem um dono identificado no Cadastro Ambiental Rural, o CAR, multa e aviso de embargo são enviados pelos Correios.

“O importante na Controle Remoto é o embargo, e não a multa. Ele é uma declaração pública de que aquela área não pode ser utilizada para nenhum fim. Quem comprar qualquer produto oriundo daquela área poderá ser punido”, explica Jair. “Com isso, se transfere o ônus do desmatamento para toda a cadeia produtiva, gerando um risco econômico e de reputação a quem se relaciona com o infrator.”

Mesmo que a área desmatada não tenha um CAR – e, portanto, o CPF ou CNPJ de um responsável –, é possível embargá-la. “O embargo não é uma sanção contra uma pessoa que desmatou, mas uma ordem informando que a área não pode ser usada e deve ser desocupada para que a natureza possa se regenerar”, define André.

A informação sobre o embargo é repassada a prefeituras e a órgãos públicos que lidam com questões fundiárias, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e institutos estaduais de terras. E, muito importante, ao Banco Central. Dessa forma, o sistema bancário é obrigado a negar financiamento a qualquer um que pretenda investir naquela área – inclusive o dinheiro do Plano Safra, principal instrumento de crédito para as propriedades rurais do país, que vai oferecer 364 bilhões de reais até junho de 2024. “Às vezes, nem o proprietário sabe que tem um embargo em sua área”, diz André. Só vai descobrir quando for a uma agência bancária atrás de dinheiro para financiar a criação de gado ou de soja na área que desmatou irregularmente.

Em janeiro de 2024, entrou em vigor uma decisão do Conselho Monetário Nacional que endureceu a vida dos desmatadores. Embargos emitidos por órgãos ambientais estaduais – e não mais apenas pelo Ibama – passaram a bloquear o acesso a financiamentos. A medida pôs fim a uma malandragem: como só é possível haver um embargo em determinada área, os desmatadores incentivavam a ação dos governos estaduais para se livrar do embargo federal, que tinha consequências mais pesadas. Sem poder embargar o que já estava embargado pelos estados, o Ibama ficava impedido de agir e o caminho para o crédito ficava livre. “O embargo estadual virava um salvo-conduto. [Mas] Isso acabou”, resumiu André.

Em 2023, o Ibama embargou cerca de 350 mil hectares – ou 3,5 mil quilômetros quadrados – de terras com desmatamento ilegal na Amazônia. É o equivalente a mais da metade de tudo o que foi desmatado no bioma no ano passado, ou a mais de duas vezes a área de São Paulo, o município mais populoso da América e de todo o Hemisfério Sul. “É um trabalho rápido, barato e de grande impacto”, defende Jair.

Agentes do Ibama em ação durante a Operação Retomada, em Pacajá, no estado do Pará, em abril de 2023. Fotos: Ibama

Mexe no gado, mexe onde dói: o bolso

Bruno Barbosa estava encafifado com o que se repetia nas operações de campo que o Ibama realizava na Amazônia. Era 2008, e o trabalho de fiscalização travava no que ele viria a chamar de “fábrica de laranjas”. “A cada vez que iam a campo, nossos agentes eram abordados por pessoas que diziam ser donas das áreas que estávamos embargando. Sabíamos que não era verdade”, conta Bruno.

Como naquela época ainda não existia o Cadastro Ambiental Rural (CAR), era difícil flagrar o embuste. Assim, a multa era emitida em nome de alguém que nada tinha a ver com o crime, e os desmatadores escapavam impunes. “Virou uma válvula de escape para os infratores”, aponta, com o sotaque que revela sua origem mineira. Bacharel em direito, Bruno gesticula muito enquanto fala com uma voz incisiva. Entrou no Ibama no mesmo concurso que Jair Schmitt, em 2003, e hoje faz doutorado em biopirataria, o que lhe permitiu criar no Ibama um setor dedicado a combater crimes do tipo no Brasil.

Com a ajuda de óculos de lentes grossas, Bruno havia lido e se impressionado com Da Guerra, um livro de memórias do general prussiano Carl Von Clausewitz. Publicada em 1832, a obra ainda é, decorridos quase dois séculos, um influente tratado sobre estratégia. Introduz, entre outros, o conceito de “névoa da guerra”, pelo qual um dos lados de um combate nunca tem ideia precisa da capacidade do inimigo. No caso do Ibama, o “inimigo” são os criminosos ambientais.

Com Clausewitz na cabeça, Bruno propôs uma ação até então inédita: apreender o gado encontrado em áreas desmatadas. “Com isso, a gente ia conseguir atingir quem estava de fato ganhando dinheiro com o crime ambiental”, diz. “Mas o mais importante é a doutrina da dissuasão: o antagonista pode até ter mais força que você. Mas ele vai ter muito prejuízo para te desafiar. Você não precisa ter condição de derrotar o infrator. Basta demonstrar que ele vai perder demais se decidir te enfrentar.”

Da ideia viria, ainda em 2008, a Operação Boi Pirata 1, realizada numa unidade de conservação na Terra do Meio, no Pará. “Havia uma ordem judicial para a retirada de 3 mil cabeças de gado dali. Foi trabalhosíssimo. Levamos seis meses para levar todo o gado”, recorda. Um ano depois, Bruno, promovido a coordenador de fiscalização do Ibama, deu um passo adiante: montou uma operação para apreender gado mesmo sem ordem judicial, mas com evidências de crime ambiental, na região da Floresta Nacional do Jamanxim, em Novo Progresso, também no Pará – na época, o município líder em desmatamento na Amazônia. Foi outro sucesso. “A Boi Pirata 2 foi a única coisa que conseguiu baixar o desmatamento em Novo Progresso”, afirma o jornalista Claudio Angelo.

Para dar conta do isolamento forçado durante a pandemia de covid-19, Jair Schmitt desenvolveu o hábito de ligar para amigos ou colegas enquanto fazia o almoço. Bruno, que prestou o mesmo concurso que ele para o Ibama, em 2002, e o chefiou entre 2008 e 2009, era um dos interlocutores. Em 2022, com o governo Bolsonaro chegando ao fim, as conversas entre eles passaram a tratar sobre o futuro próximo. Entusiasta da Boi Pirata, Bruno defendia a volta da operação como marca do retorno do Ibama ao campo depois dos anos de farra dos desmatadores autorizados pelo então presidente Bolsonaro. “Em 87% das áreas que o Ibama havia embargado, a ordem de permitir a regeneração da floresta não estava sendo cumprida”, explicou Jair Schmidt. “Em 81% desses casos, a causa era a criação de gado bovino.” Em abril de 2023, com Bruno à frente, o Ibama lançou a Operação Retomada. Em poucos dias, 3 mil animais foram apreendidos em Pacajá, no Pará, e em Lábrea e Manicoré, no Amazonas.

A ideia que move operações como a Retomada é a mesma da Boi Pirata. Há mais de 100 milhões de bois e vacas na Amazônia, e parte considerável deles pasta em áreas embargadas. Porém é inviável – em termos práticos e políticos – apreender todos os animais colocados em situação irregular por seus donos. “Buscamos realizar apreensões emblemáticas, com o objetivo estratégico de dissuadir o avanço do crime ambiental”, explica Bruno. “Escolhemos regiões críticas em desmatamento e notificamos quem ali tem gado em áreas embargadas para que retirem os bois.”

As notificações colocam em marcha uma reação dos criminosos ambientais, que acionam políticos da região para pressionar, em Brasília, pelo fim da operação. Na Amazônia há uma relação íntima entre o sucesso nas urnas e a grilagem que devasta a floresta. Seja no caso de pessoas como Jaime Bagatoli (PL-RO), que é agropecuarista, e Zequinha Marinho (Podemos-PA), servidor público do Banco da Amazônia, pastor da pentecostal Assembleia de Deus e defensor intransigente de invasores de Terras Indígenas. “Logo depois de começarmos a Retomada, teve um dia que o Rodrigo [Agostinho] recebeu mais de 40 políticos de Rondônia aqui no Ibama, no auditório do PrevFogo. Era vereador, deputado estadual, federal, senador, todos reclamando do trabalho que fazíamos. Sinal de que ele está sendo eficaz”, lembra Jair. A pressão política – até agora – deu em nada.

O passo seguinte da estratégia dos infratores era tentar conseguir mais prazo, com os agentes do Ibama, para cumprir as notificações de retirada do gado. “Não é tarefa simples movimentar gado na Amazônia. É preciso alugar caminhões e muitas vezes até vacinar animais criados sem os cuidados sanitários necessários”, explica Bruno. E nem sempre há terra sem embargo para onde levar os bois. A oferta grande e inesperada também derruba o preço dos animais. Entre o risco da apreensão pelo Ibama e os preços baixos oferecidos pelos frigoríficos, os donos do gado ilegal percebem que terão prejuízo. “Na cotação habitual, um boi de 35 arrobas [aproximadamente 500 quilos] vale em torno de 8 mil reais”, diz Jair. “A apreensão gera uma sensação de perda imediata. Os infratores entram em pânico.”

Operação de retirada de bois e de vacas da Terra Indígena Ituna/Itatá, no Pará, onde eram criados ilegalmente. Fotos: Lela Beltrão/SUMAÚMA

Os agentes do Ibama convocam então uma reunião, aberta à comunidade, com os criadores do gado, sindicalistas rurais e lideranças políticas da região. Os infratores veem nela uma oportunidade de impor seus interesses e vão em peso. “Vira um acontecimento, todo mundo chega solidário com o dono do gado apreendido”, conta Bruno. “Aí, ouvem a mensagem de que, se o desmatamento parar, o Ibama deverá seguir para regiões ainda críticas e, por ora, não haverá novas apreensões. O sujeito acaba abandonado.”

Em português claro, cada um trata de salvar a própria pele. Isso passa o recado de que é hora de desligar as motosserras. “Todo mundo quer que a gente vá embora. Mas nós deixamos claro que quem vai determinar isso são as próximas imagens do satélite [do Deter], dali a 15 dias. Aí os próprios infratores começam um processo frenético de contenção do desmatamento, para não terem mais gado apreendido”, diz Bruno. “Eles sabem que, se o desmatamento voltar a crescer, serão os próximos alvos, pois têm gado ocupando áreas embargadas. Enquanto isso, nós podemos mover as equipes de fiscalização para outros locais críticos. Como no aikidô [arte marcial japonesa em que a violência empregada pelo oponente é usada como arma], nossa fraqueza vira a nossa força.”

Uma terra indígena no Pará é, desde agosto passado, alvo de uma operação desse tipo, a Eraha Tapiro, que SUMAÚMA acompanhou ao longo de três dias. Dois mil animais já foram retirados da Terra Indígena Ituna/Itatá, uma das mais desmatadas no Brasil. Mas ao menos a mesma quantidade segue por lá.

Fiscal observa gado apreendido em Terra Indígena no Pará, em agosto de 2023. Foto: Lela Beltrão/SUMAÚMA

A emergência se impôs

No plano desenhado por Jair Schmitt, a Operação Retomada deveria ter sido a primeira ação de impacto do Ibama em 2023. Isso começou a mudar em 23 de dezembro de 2022. Naquele dia, Jair estava isolado em casa, com covid-19, quando alguns colegas, que sabiam que ele estava no Grupo de Trabalho do Meio Ambiente do governo de transição, pediram uma conversa urgente. Ainda febril, com uma caneca de café à mão, Jair se sentou diante do computador para ouvir, numa reunião virtual, um relato sobre a situação na Terra Indígena Yanomami (como SUMAÚMA iria publicar dali a alguns dias, havia uma crise sanitária devastadora em andamento). Ao final, deu o recado: “Se preparem, deixem um planejamento estratégico montado. Se a gente tiver oportunidade, vamos usar”.

A oportunidade se impôs como emergência. Corriam os primeiros dias de fevereiro de 2023, e o Ministério da Defesa enrolava: José Múcio Monteiro, o ministro, pedia “tempo para realizar um diagnóstico” sobre a situação dos Yanomami – subordinado a Múcio, o Exército tem dois pelotões de fronteira dentro da terra indígena. A Polícia Federal também parecia disposta a esperar. No Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, o plano do Ibama estava sobre a mesa. Cirúrgico, previa o envio inicial de 12 agentes do Grupo Especializado de Fiscalização, uma espécie de unidade de elite do órgão, formado por pessoal com treinamento para missões de alto risco. A ministra Marina Silva e seu estafe deram o sinal verde.

Na segunda-feira, 6 de fevereiro, o Grupo Especializado de Fiscalização, ladeado por servidores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai, e agentes da Força Nacional, entrou na Terra Yanomami. Em dois dias, já havia destruído um helicóptero, um avião, um trator de esteira e estruturas de apoio logístico ao garimpo, além de ter apreendido duas armas, três barcos e 5 mil litros de combustível. Nos dias seguintes, Forças Armadas e Polícia Federal se juntariam ao esforço.

Servidor do Ibama acompanha a destruição de balsa do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, em fevereiro de 2023. Foto: Ibama

“Durante dois meses, nossa principal operação foi aquela”, explicou Jair. O combate ao garimpo não causa redução drástica do desmatamento, já que a atividade requer a derrubada de pouca floresta em comparação com a pecuária, por exemplo. Foi a emergência sanitária o fator decisivo para colocar a entrada no território Yanomami no topo da lista de prioridades do Ibama e do ministério. A tal ponto que Marina Silva decidiu fazer na terra indígena, e não numa reunião de trabalho previamente agendada para Belém, sua primeira aparição pública na Amazônia no retorno ao cargo de ministra.

A operação acabou marcando a volta do combate ao crime ambiental pelo Estado brasileiro. “A imagem do Ibama trabalhando, com o presidente da República e a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima deixando claro que combateriam o garimpo e o desmatamento, foi importante para criar a percepção de que as coisas haviam mudado”, avaliou Jair.

Um Empire State Building de madeira ilegal

Edevar Sovete suspeitou que algo estava errado quando viu, na tela do computador, que empresas com sede em Pernambuco, Paraíba, Bahia e Distrito Federal estavam repassando créditos virtuais para corte de madeira a estabelecimentos de Rondônia. O crédito virtual é um documento emitido no Sistema Nacional de Controle de Produtos Florestais (Sinaflor) para atestar sua origem lícita. Não era usual que a madeira saísse de centros em geral consumidores em direção a um estado que tradicionalmente a explora.

Nascido em Cacoal, no estado de Rondônia, Edevar formou-se em matemática e dava aulas na rede estadual de ensino quando um amigo biólogo comentou sobre um concurso aberto no Ibama. A reação inicial foi dizer que “não tinha nada a ver com o órgão”. Quando leu o edital, porém, percebeu que não era verdade. Prestou o concurso e foi aprovado – o amigo, não. Desde 2005 no Ibama, Edevar se especializou em esquadrinhar imensas planilhas de dados atrás de operações suspeitas. Naquele final de 2022, ele acreditava ter topado com algo grande.

Edevar e sua equipe de seis servidores revelaram um esquema em que empresas do Nordeste e do Distrito Federal inicialmente compravam madeira com registro. Assim, colocavam no sistema os créditos virtuais – uma informação que permite à madeira legal circular pelo país. Mas as vendas dessa madeira não eram devidamente registradas no Sistema Nacional de Controle de Produtos Florestais – os créditos entravam, mas não davam baixa. Dessa forma, as empresas permaneciam com os créditos, que depois vendiam a madeireiras de Rondônia. Lá, eles eram usados para “esquentar” – isto é, dar aparência de legalidade à madeira extraída de unidades de conservação e terras indígenas e também a desmatamentos ilegais em áreas privadas e a terras públicas sem destinação. Alvos principais da grilagem (roubo de terras públicas), as terras sem destinação pertencem a governos mas não têm nenhum uso ainda definido, podendo ser transformadas em áreas protegidas ou assentamentos agrários.

“Os créditos eram de espécies como ipê, cumaru, cedro-rosa, todas madeiras de alto valor comercial, e muitas delas típicas da Amazônia”, Edevar explicou a SUMAÚMA. O destino eram empresas que atuavam perto de terras indígenas e unidades de conservação onde os alertas de desmatamento eram altos, como nas regiões de Cujubim e da Ponta do Abunã, em Rondônia.

Como mora em Brasília, Edevar foi bater à porta de um dos suspeitos de gerar os créditos fraudulentos. Ao chegar ao endereço, encontrou uma loja de artigos de jardinagem, onde ouviu que ali nunca havia existido comércio de madeira. “A empresa que gerou os créditos não existia fora do sistema”, resume. “Em Pernambuco, uma das empresas havia informado ter meio milhão de metros cúbicos em créditos virtuais. Para que isso coubesse na área que ela ocupa, seria necessário formar uma pilha de madeira de 400 metros de altura” – o Empire State Building, o mais icônico arranha-céu de Nova York, tem 381 metros de altura e 102 andares.

O pente-fino no Sistema Nacional de Controle de Produtos Florestais (Sinaflor), uma operação rotineira do Ibama, ganhou força com o fim do governo Bolsonaro e deu origem, em abril de 2023, à Operação Metaverso. Ela mapeou o caminho dos créditos virtuais que saíam de cidades como Cajazeiras, na Paraíba, ou Prado, na Bahia, e chegavam a madeireiras de Ji-Paraná, Nova Mamoré, Ariquemes, Vilhena e Porto Velho, em Rondônia.

A Metaverso fiscalizou 201 empresas de madeira. Chegou a todos os estados do Brasil e ao Distrito Federal. Também está investigando os planos de manejo – ou seja, o corte legal de madeira – que forneceriam os créditos virtuais gerados pela fraude. Dez deles já foram embargados, e o trabalho prossegue em 2024. Ao todo, a operação retirou do Sinaflor 2,3 milhões de metros cúbicos de madeira em créditos virtuais. É o equivalente, grosso modo, a 1,15 bilhão de reais em negócios criminosos interrompidos, considerando o valor médio de 500 reais por crédito. Os 2,3 milhões de metros cúbicos encheriam mais de 100 mil caminhões com madeira – o suficiente para congestionar 2 mil quilômetros em linha reta, ou o dobro da distância rodoviária entre Brasília e São Paulo. Produzir tanta madeira exigiria o desmate de aproximadamente 65 mil hectares de floresta, uma área do tamanho do maior parque estadual do Rio de Janeiro, o dos Três Picos, que protege a Serra do Mar fluminense.

Servidores do Ibama fiscalizam depósito de madeireira em Sena Madureira, estado do Acre, em abril de 2023, durante a Operação Metaverso. Fotos: Ibama

Operações como a Metaverso têm como alvo a extração seletiva de vegetação – um desmatamento pontual, que derruba ilegalmente apenas árvores cuja madeira tem alto valor comercial, degradando a floresta. É diferente do corte raso, em que todo um trecho de mata é derrubado para abrir espaço para a criação de bois ou a monocultura de commodities (mercadorias) como a soja.

O Ibama também aplicou uma estratégia para combater o desmatamento nas áreas onde o corte raso mais havia avançado em 2022. A partir de janeiro, montaram-se bases – algumas delas permanentes – em seis localidades entre o leste do Pará e o sul do Amazonas em que dados de um sistema de satélites chamado Brasil Mais indicavam que o desmatamento havia sido mais intenso em 2022. “As escolhas dos locais se basearam no tamanho das áreas que vinham sendo desmatadas”, explicou Hugo Loss.

No Ibama desde 2013, Hugo se tornou um alvo preferencial do governo Bolsonaro ao liderar operações contra garimpeiros e madeireiros ilegais na Amazônia. Chegou a ser exonerado do cargo de chefia que ocupava em abril de 2020, após uma reportagem do Fantástico, da TV Globo, mostrá-lo em campo. Foi espionado pela Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, num esquema que – a Polícia Federal suspeita – pode ter sido montado para usar a estrutura do Estado em favor dos interesses da família Bolsonaro. “A existência de mais esse núcleo, argumenta a autoridade policial, se mostrou visível no monitoramento ilegal, para fins políticos, do servidor Hugo Loss (responsável por operações de fiscalização ambiental no Ibama), posteriormente exonerado de sua função, em possível represália às ações de combate aos crimes ambientais”, escreveu o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, em decisão que autorizou uma operação que teve como alvo o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho 02 do ex-presidente de extrema direita.

“Fui vigiado durante todo o governo Bolsonaro. Meu celular foi monitorado, minha residência foi monitorada”, conta Hugo, um curitibano baixo e forte, pele clara e cabelos – já rareando – escuros, barba longa e olhar desconfiado, durante um café com SUMAÚMA em Brasília. Mestre em antropologia social pela Universidade de Brasília, é considerado um dos fiscais do Ibama mais experientes em campo, mas passou boa tarde dos últimos quatro anos “na geladeira”, como descreve. Em fevereiro de 2023 foi nomeado coordenador de fiscalização de flora do Ibama.

Ao longo do ano, Hugo Loss ajudou a montar uma operação que montou bases em Novo Progresso, Uruará, Santarém, Pacajá e São Félix do Xingu, no Pará, Apuí e Lábrea, no Amazonas, e Porto Velho, em Rondônia. “As ações de fiscalização se limitaram a um raio de 150 quilômetros a partir de cada base”, explica. A ideia era manter as equipes nas bases de modo permanente. “Experiências anteriores nos mostraram que mudar constantemente a posição delas era menos eficaz, pois os desmatadores voltavam a agir”, afirma.

A estratégia era eficaz, mas a falta de estrutura do Ibama pesou. Atualmente, o número de fiscais ambientais aptos a ir a campo em todo o país não chega a 800. Mas 60% deles acumulam atividades administrativas, o que dificulta a mobilidade, e 46% têm idade acima de 50 anos. Ao todo, quase a metade de todos os postos de trabalho está vaga, por falta de pessoal. Por isso, apenas duas das bases (as de Apuí e Extrema, região entre Porto Velho e Lábrea) de fato atuaram o ano inteiro. Ao todo, 267 fiscais participaram do trabalho coordenado por Hugo.

Ainda assim, os resultados foram expressivos. O desmatamento verificado em 2023 caiu 68% na área de atuação das bases, em comparação ao ano anterior, segundo o Brasil Mais, um sistema de monitoramento por satélites da Amazônia, comprado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública durante o governo Bolsonaro. Nas regiões das bases fixas de Apuí e Extrema, a queda foi maior: 70%.

Salário baixo para quem arrisca a vida

O Ibama entrou em 2023 paralisado. Mais de 1,7 mil servidores do órgão assinaram uma carta em que anunciaram a intenção de suspender as operações de campo até que o Ministério da Gestão e Inovação (MGI) voltasse a conversar sobre um reajuste salarial – as negociações começaram ao longo de 2023, mas foram interrompidas em outubro. Após o início da paralisação, o MGI anunciou que elas seriam retomadas em fevereiro. O salário inicial dos analistas ambientais, cargo que exige formação em ensino superior, é de 8,8 mil reais mensais. É este o cargo de profissionais como Jair Schmitt, Bruno Barbosa, Edevar Sovete e Hugo Loss.

Já parte dos fiscais que ocupam o cargo de nível médio ganha muito menos: o salário inicial dos técnicos ambientais é de 3,9 mil reais mensais. É o caso de Ana Luiza de Assunção, formada em administração de empresas e pós-graduada em direito ambiental. Natural do Pará, ela vivia na Bahia quando entrou no Ibama, em 2016. Atualmente, voltou ao estado natal e participou de algumas das mais arriscadas operações do Ibama em 2023.

Ana se especializou em operar drones, usados em campo para coletar imagens e monitorar criminosos ambientais. Entre abril e maio esteve na Terra Indígena Yanomami. Acampada na base do Palimiú, na beira do rio Uraricoera, vigiou garimpeiros ilegais que tentavam romper um cabo de aço de 240 metros de extensão que, esticado entre uma margem e outra, servia de barreira ao avanço dos criminosos.

Num dos turnos da madrugada, ela flagrou com o drone o avanço de um barco rio acima. “Naquela noite, eles recuaram. Mas, na seguinte, aproveitaram uma troca de turnos do pessoal da vigilância, se esquivaram do cabo e passaram”, lembra. Alguns dias depois, já em maio, garimpeiros atacaram, a tiros, a base do Ibama, e destruíram definitivamente a barreira. Ana acabara de voltar para casa. Além do risco cotidiano dos tiros, havia ainda um outro – a malária. Para tentar escapar da doença que vem matando centenas de Yanomami ao longo dos últimos anos, os fiscais evitavam a beira do rio, coalhada de mosquitos, no fim da tarde.

Meses depois, em agosto, Ana estava na Terra Indígena Ituna/Itatá. Lá, precisou lidar com grileiros que criavam gado ilegal. Os criminosos destruíram pontes e incendiaram quilômetros de pastagem na tentativa de evitar a apreensão de seus bois e vacas. Como na terra Yanomami, Ana trabalhava, diariamente, vestindo colete à prova de balas. Acostumou-se a ouvir ameaças de criminosos ambientais. Para proteger a natureza arriscando sua vida, a servidora federal recebe um salário líquido mensal de menos de 5 mil reais mensais.

Os baixos salários ajudam a esvaziar o quadro de pessoal do Ibama. Muitos dos que passam nos concursos nem sequer chegam a assumir os cargos, desestimulados pela remuneração ruim. Outros entram, mas seguem à procura de oportunidades melhores – um a cada cinco dos que ingressaram no último concurso já deixou o órgão. Um novo concurso público para contratar mais fiscais está no horizonte, mas só deve sair após o fim das negociações.

Mais valor para a floresta em pé

O Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima é solidário às reivindicações dos servidores. “Mas não se resolve o problema do desmatamento no Brasil só com fiscais em campo”, pondera André Lima. “Os dados mostram que a fiscalização reduz significativamente o desmatamento acima de 100 hectares. Se aumenta a fiscalização, cai o percentual de áreas acima de 100 hectares com desmatamento ilegal. Mas pode estar aumentando o percentual de pequenos e médios desmatamentos.”

De fato, a pulverização dos focos de desmatamento – como efeito colateral da fiscalização mais rígida – é uma situação com que as equipes de Hugo Loss se depararam na Amazônia em 2023, conforme um artigo que ele e colegas escreveram sobre a experiência. Mas qual é a saída? Para o ministério e o Ibama, a resposta está na tecnologia – e em políticas públicas que incentivem a conservação da floresta de pé. “Precisamos implantar um sistema de fiscalização e sanção remoto, como já acontece no trânsito. Quantos carros circulam no Brasil por hora? Tem algum que, se passar no semáforo fechado num grande cruzamento, não é multado? Por que com o desmatamento não funciona assim?”, questiona André.

O Ibama já apresentou um projeto ao governo federal para automatizar os embargos e multas a partir de dados de sistemas como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia (Prodes). Hoje, mesmo operações como a Controle Remoto exigem que fiscais façam os cruzamentos.

O projeto deve custar aproximadamente 50 milhões de reais, dinheiro que deverá vir do Fundo Amazônia. “Bases de dados como as do CAR, do Incra, das terras indígenas, do Prodes, do Deter e do Sinaflor ainda não dialogam da forma como deveriam. E tem os dados dos governos estaduais, que precisam conversar com os federais, e vice-versa”, diz André. “Ainda estamos nessa fase de integração entre eles, o que é nosso grande desafio.”

Em outra frente está o xodó do secretário, um programa chamado União com os Municípios. Ele prevê 600 milhões de reais do Fundo Amazônia, até 2026, para que as prefeituras amazônicas que mais reduzirem o desmatamento possam investir em iniciativas de regularização ambiental e fundiária. André Lima conta que perguntou a quase 70 prefeitos e secretários dos municípios líderes em desmatamento: “Vocês preferem o Ibama ou o BNDES aí? Então, ajudem a gente a reduzir o desmatamento”.

Pelo menos 27 municípios, segundo o secretário, já informaram que vão aderir ao programa – os demais devem responder até o final de fevereiro. Se der certo, o programa pode ajudar a região a reconhecer o valor da floresta em pé. “O Estado sempre chegou nesses municípios oferecendo dinheiro para o desmatamento”, ele diz. Basta lembrar que até poucos meses atrás, por exemplo, era possível conseguir dinheiro de bancos públicos para financiar a criação de bois ou o plantio de soja em terras embargadas por órgãos ambientais devido ao desmatamento. “Hoje, o Estado tem a obrigação de levar as propostas que possam mudar o jogo”, defende André Lima.

Do próximo capítulo dessa história – uma das poucas de sucesso do atual governo – depende o futuro próximo da Amazônia e também o das novas gerações.


Reportagem e texto: Rafael Moro Martins
Checagem: Douglas Maia e Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Viviane Zandonadi (fluxo de edição e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum

Agentes do Ibama sobrevoam pastagem ilegal na Terra Indígena Ituna/Itatá, no município de Senador José Porfírio, no Pará. Fotos: Lela Beltrão/SUMAÚMA

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