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Crianças da Comunidade Nossa Senhora de Nazaré, a duas horas da cidade de Breves, na Ilha de Marajó. Foto: Jacy Santos/Ondejacyviu/SUMAÚMA

Até 8 de outubro, a maioria dos brasileiros só conhecia o arquipélago amazônico de Marajó pela famosa cerâmica da região. Naquela data, em um culto evangélico na cidade de Goiânia, a população marajoara foi lançada na máquina de fake news do bolsonarismo e ganhou as manchetes da imprensa brasileira e internacional. Em um culto de intenção eleitoral, na Assembleia de Deus Ministério Fama, Damares Alves afirmou, com eloquência de púlpito, que as crianças do arquipélago têm, entre outras torturas, os dentes arrancados para facilitar o sexo oral, vítimas da exploração sexual e do tráfico internacional de pessoas. Ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro, a senadora recém-eleita nem ofereceu provas do que acusava, nem explicou por que nunca denunciou nem enfrentou esse crime nos mais de 3 anos que foi ministra do governo Bolsonaro. Ao contrário. Damares afirmou que o atual presidente está fazendo “o maior programa de desenvolvimento regional na Ilha do Marajó”.

A mensagem era tão explícita quanto a intenção: para salvar as criancinhas de Marajó, sem dentes para fazer sexo oral em adultos, seria preciso reeleger Bolsonaro no próximo 30 de outubro. SUMAÚMA foi até Marajó para checar o discurso de Damares. Descobrimos que há, sim, uma ação bem concreta do governo Bolsonaro no arquipélago: o desmonte dos mecanismos responsáveis pela assistência social da população, com forte impacto sobre as infâncias. A reportagem de SUMAÚMA encontrou crianças com dentes, mas pouco ou nada a mastigar com eles, parte delas entre os 33 milhões de brasileiros que passam fome.

O repasse de recursos, sobretudo na assistência social, caiu em 16 dos 17 municípios do Marajó. Com 100.000 habitantes, Breves é a maior cidade do arquipélago. Em 2019, recebia mais de 790.000 reais. Em 2022, o valor caiu quase pela metade: 405.000 reais. Em Melgaço, que tem o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, o corte foi ainda mais drástico: a verba de 514.000 reais em 2019 caiu para pouco mais de 179.000 reais.

Damares Alves não falou sobre esses horrores reais. Na pregação eleitoral que ganhou o mundo, ela afirmou: “Ele [Bolsonaro] tem uma compreensão espiritual que vocês não têm nem ideia. Fomos pra Ilha do Marajó. E lá nós descobrimos que nossas crianças estavam sendo traficadas por lá. O Marajó faz fronteira com o mundo, Suriname, Guiana [Francesa]. Eu vou contar uma coisa para vocês, que agora eu posso falar. Nós temos imagens de crianças nossas, brasileiras, com 4 anos, 3 anos, que, quando cruzam as fronteiras sequestradas, os seus dentinhos são arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral. Essa é a nação que a gente ainda tem, irmãos”.

Pelo tempo verbal usado em sua pregação eleitoral, Damares Alves “tem as imagens”. Mas, apesar dos detalhes cruéis que relatou, a ex-ministra, até o momento, não apresentou os vídeos, ou qualquer prova. O Ministério Público Federal (MPF) garantiu que, em 30 anos de investigação, nunca recebeu nenhuma denúncia como as que foram narradas pela ex-ministra.

Criança da Comunidade Nossa Senhora de Nazaré, a duas horas da cidade de Breves, na Ilha de Marajó. Foto: Jacy Santos/Ondejacyviu/SUMAÚMA

Marajó é o maior arquipélago do planeta, entre o rio e o mar. Povos originários ali viviam muito antes da invasão dos portugueses, como Aruãs, Sacacas, Marauanás, Anajás e Muanás. A cerâmica refinada em jarros e vasos da região, que se tornou famosa no mundo, é legado dos indígenas. A colonização, que se mostrou desastrosa e mortífera, como em toda a Amazônia, se consolidou com os jesuítas, a partir do século 17. No final do século 18, quase toda a população indígena tinha sido exterminada no processo de invasão, extração e colonização dos europeus.

Hoje, a região é dominada por latifundiários brancos, criadores de búfalos, mas também madeireiros. Há ainda produção de queijos e extrativismo de açaí. Faltam escolas, postos de saúde e tudo o que a Constituição garante como direito básico. “O nosso atual modelo de produção olha para a Amazônia, para o Marajó, e vê apenas o que tem aqui e não quem está aqui”, critica a Irmã Carla Vasconcelos, da Comissão Brasileira de Justiça e Paz. “As pessoas não são pobres ou nascem pobres, elas são empobrecidas pelas condições sociais a que são submetidas.”

Encontramos em Breves uma população revoltada por ter sido cruelmente usada para reeleger o atual presidente. Encontramos mais: uma infância negligenciada por falta de verbas do governo de Bolsonaro. O Sistema Único de Assistência Social (Suas) é responsável pela rede de atendimento aos vulneráveis nos municípios que cuidam da gestão do Cadastro Único (CadÚnico). Este é o primeiro lugar que famílias em insegurança alimentar procuram para se cadastrar para receber o Auxílio Brasil e outros benefícios, como o vale-gás. A projeção é de corte de 95% da verba do Suas no Brasil todo para 2023. O que já é ruim hoje, fica ainda pior para uma cidade como Breves, que tem um dos piores IDHs do país: ocupa a posição 5.520 entre 5.565 cidades.

O programa Abrace o Marajó, que Damares defendeu no culto evangélico de cunho eleitoral, mal saiu do papel. “Essa fala de Damares é irresponsável. O que recebemos são muitas denúncias de pessoas passando fome. Aqui em Breves, quem está segurando a assistência social é o município, porque não há repasse de verbas por parte do governo federal”, afirma Luce Mara Lobato, assistente social e integrante da Comissão Justiça e Paz. “Cuidar das crianças é investir nas pessoas. E isso não está sendo feito.” A assistente social nos recebe num lugar reservado, com medo de ataques de eleitores de Bolsonaro.

A religiosa Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante diz que a fala de Damares é ‘desconectada da realidade’. Foto: Jacy Santos/Ondejacyviu/SUMAÚMA

Ainda em busca de confirmação das denúncias que Damares fez, mas não investigou como ministra, estivemos também na comunidade Nossa Senhora de Nazaré, no distrito Antônio Lemos, às margens do rio Tajapuru, a duas horas de Breves. O governo do Pará instalou ali, em junho deste ano, uma base da Secretaria de Segurança Pública (Segup). O local é um corredor de transporte de drogas, contrabando, pirataria e crimes ambientais. No trajeto de barco, é possível ver muitas balsas transportando madeira, soja e combustível. Há também os navios transportando pessoas e mercadorias. Desde o dia 22 de junho, data da inauguração da Base Integrada, não houve qualquer registro de apreensão por tráfico de pessoas ou prostituição infantil.

Presidente do Instituto de Direitos Humanos Dom José Luís Azcona, a religiosa Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante atua na região há mais de 11 anos. É uma referência no combate à violência sexual, fazendo um trabalho de base entre a população carente. Ajudou a denunciar crimes que geraram uma Comissão Parlamentar de Inquérito em 2012, para tratar dos casos de tráfico de pessoas na fronteira. A missionária vive sob o programa de proteção a testemunhas desde que denunciou a família de um político de Marajó por um caso de estupro. Com toda a sua vivência, jamais ouviu algo parecido ao caso descrito por Damares. “É uma fala desconectada da realidade”, garante. “A população tem uma carência muito grande, mas fazer uma denúncia dessa proporção requer uma materialidade para a gente poder fazer o procedimento, e eu só posso fazer isso se eu tiver provas.”

No púlpito, a senadora eleita no Distrito Federal pelo Republicanos, partido de direita, também deu ênfase a outros detalhes que não se confirmaram em nenhum relato ouvido em nossa reportagem. “Descobrimos crianças que comem comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal. Bolsonaro disse: ‘Nós vamos atrás de todas elas’. E o inferno se levantou contra esse homem”, discursou Damares, evocando uma falsa batalha bíblica para convencer os fiéis evangélicos a reeleger Bolsonaro. “A imprensa levantou [uma guerra contra o presidente], o Supremo levantou, o Congresso levantou. Acreditem, não é uma guerra política, é uma guerra espiritual. E eu estou falando com a minha igreja, e eu tenho um manto constitucional para me expressar dentro da minha igreja. Tem coisas que eu não posso falar lá fora, mas aqui eu tenho a liberdade constitucional de manifestar a minha fé.”

O vice-prefeito da cidade de Breves, Benedito Viana (PSD), diz que houve uma surpresa geral na cidade com as acusações de Damares. “Nunca foi visto e nunca foi ouvido. Todo mundo ficou revoltado e ninguém é sabedor disso nessa parte da ilha”, assegurou. O arquipélago é dividido em dois: Marajó ocidental e oriental. Breves fica no ocidente. No primeiro turno, o ex-presidente Lula da Silva ( PT) obteve 60,26% dos votos no município (32.399 votos), enquanto Jair Bolsonaro, 33,14% (17.819 votos).

José Coaraci Souza, a esposa Michele e os filhos vivem às margens do rio Mucujubim. Eles não conhecem o programa Abrace o Marajó. Jacy Santos/Ondejacyviu

A população de Breves vive do cultivo do açaí, do palmito, do camarão e também do peixe, mas em menor quantidade. O caminho para transporte ou acesso a qualquer serviço público é o rio. Damares já esteve na região 5 vezes. Bolsonaro, uma. Nenhuma das visitas de governo se traduziu em um projeto estruturado para atenuar a vulnerabilidade do local, nem ajudou a tirar municípios da região da lista dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil.

Em março de 2020, Damares Alves lançou o programa Abrace o Marajó, que contém 113 ações com previsão de investimentos de 4 bilhões de reais na região até 2023, segundo dados do próprio governo federal. Mas o plano, que a senadora eleita defende como “maior programa de desenvolvimento feito por Bolsonaro para a região”, recebe críticas desde a sua implantação devido à falta de transparência e de participação popular em sua construção.

Em maio de 2021, a Defensoria Pública da União (DPU) se manifestou para alertar sobre a falta de participação efetiva das comunidades tanto na elaboração quanto na gestão e no monitoramento dos gastos do programa. “O governo do estado do Pará, os municípios e associações de moradores só podem participar na qualidade de convidados”, diz um trecho da nota. Por não ter participação da população e das comunidades tradicionais, o programa viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O vice-prefeito Benedito Viana pontua que até o momento não houve – na atual gestão – repasse de recursos do projeto Abrace o Marajó para qualquer ação que desenvolva a região. “Se foi repassado algum recurso foi via o governo [prefeitura] anterior. Inclusive, o prefeito Toninho Barbosa (Republicanos) tinha um contato direto com a ex-ministra. Se houve repasse foi na época deles. Agora, nada. O Abrace o Marajó nada mais é do que uma fantasia para a gente”, resume ele, que assumiu o cargo em janeiro de 2021.

Neste ano, a previsão de recursos para o programa Abrace o Marajó era de 3 milhões de reais. Segundo dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo Federal (Siop), o governo empenhou apenas 51 mil reais no programa. E nem mesmo esse valor foi efetivamente usado. Até o momento, a apenas 2 meses do fim do ano e do primeiro mandato de Bolsonaro, nada foi gasto com a iniciativa.

Em 2021, o governo teria investido cerca de 2 milhões de reais no Abrace o Marajó. O vice-prefeito de Breves, porém, nega. Conversamos com mais de 13 famílias da região do rio Tajapuru e Macujubim: todas afirmam que não receberam sequer a cesta básica publicizada pelo governo. Outras desconheciam, inclusive, o programa.

Ana Maria Guedes Balieiro, de 43 anos, é uma dessas pessoas. Ela conta que sustenta 4 filhos com a venda de açaí e com o Auxílio Brasil de 600 reais, que substituiu o Bolsa Família. “Na época de verão, a gente consegue ganhar um pouco mais, mas não chega a um salário mínimo. A gente se vira como dá”, diz. Outra moradora, a agente comunitária de saúde Maria de Nazaré de Santos Viegas, 44 anos, também desconhece qualquer benefício. “Eu ouvi [falar], mas ninguém executou nada desse programa aqui”, afirma.

A aposentada dona Delaide, mãe de José, e uma das netas: a família nunca ouviu falar da distribuição de cestas básicas. Foto: Jacy Santos/Ondejacyviu

José Coaraci Souza, a esposa Michele e seus 4 filhos vivem às margens do rio com o dinheiro do Auxílio Brasil, da venda do açaí na época da safra, e farinha que preparam para subsistência. A mãe de José, dona Delaide, que é aposentada, ajuda bastante o filho, a nora e as crianças. Se soubessem das cestas, iriam atrás, mas nunca ouviram falar. “Às vezes falta comida. Com o aumento dos preços, a vida ficou ainda mais difícil”, diz José.

No relatório do programa Abrace o Marajó – exercício 2020, consta uma doação de 19,5 toneladas de proteína animal para 19 mil famílias – 1 quilo e meio por família no ano todo – feita pela Marfrig, além de outras empresas, como o Grupo Carrefour. No total, o programa afirma ter entregue 18.500 cestas para a população de Chaves, Afuá, Breves, Portel e Melgaço. Procuradas para saber se tinham controle da efetividade das doações, para ter certeza de que tinham chegado até a população, a Marfrig não respondeu aos nossos questionamentos. O Carrefour alegou “indisponibilidade de agendas” para responder às perguntas da reportagem.

Sem assistência na vida real, as acusações de Damares sobre a suposta violência contra as crianças de Marajó foram vistas como uma manobra política. Para o sociólogo Alcir Borges, supervisor do escritório regional da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Pará (Emater) no Marajó, a fala de Damares cria uma distração calculada. “Acredito que a Damares sabe o que faz. A fala dela [sobre crianças] foi feita para criar uma cortina de fumaça para a ausência de políticas do Bolsonaro para a região, e ela falou aquilo dentro de um local onde sabia que teria grande repercussão”, afirma. “Aqui, no Marajó, o que as crianças precisam é de escola em tempo integral, de políticas públicas. Se hoje temos atuação é via recursos do governo do estado.”

‘As pessoas não são pobres ou nascem pobres, elas são empobrecidas pelas condições sociais a que são submetidas’, diz irmã Carla Vasconcelos. Foto: Jacy Santos/Ondejacyviu

A Irmã Carla Vasconcelos, da Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CJP), afirma que a região tem graves problemas de direitos humanos que ameaçam as crianças. “Questões sociais que precisam ser solucionadas pela via das políticas públicas, até porque temos uns dos piores IDHs do Brasil”, diz. “Mas não na via do que a Damares narrou.” Luce Mara Lobato, da Comissão de Justiça e Paz, lembra que esta não é a primeira vez que Damares usa Marajó para seus interesses ideológicos. “Ela faz isso para gerar uma comoção no país, para que ela venha a ser a salvadora da pátria, propondo ações mirabolantes”, afirma. “É o mesmo que aconteceu no caso da fábrica de calcinhas.” Em setembro de 2019, no primeiro ano de Damares como ministra, ela fez outra grave denúncia relacionada ao Marajó: a alta ocorrência de estupros na região ocorria porque as crianças marajoaras “não usavam calcinha”. Como solução, propôs instalar uma fábrica de calcinhas na região.

Suena Mourão, conselheira federal da Ordem dos Advogados (OAB) do Pará e vice-presidenta da Comissão Nacional de Igualdade da OAB, diz que se a veracidade das denúncias for confirmada, sem que tenha havido qualquer ação prática do ministério, a ex-ministra pode responder por crime de prevaricação previsto no artigo 319 do Código Penal: “Retardar ou deixar de praticar, praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. “Isso porque Damares, enquanto autoridade ministerial, teria conhecimento das ocorrências, mas só as teria trazido ao público neste momento”, afirma a conselheira.

SUMAÚMA procurou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para ouvir a posição da senadora eleita a respeito das acusações que fez, mas não tivemos resposta até o momento. O espaço continua aberto para sua resposta. Caso Damares não comprove a veracidade das denúncias, ela também poderá ser responsabilizada. “Se comprovado que as denúncias são inverídicas, pode ser considerado crime eleitoral, com objetivo de alimentar discursos de ódio e tumultuar o processo eleitoral, através da propagação de fake news com foco específico na intenção de eleger outra pessoa — no caso, o presidente Jair Bolsonaro”, explica a jurista.

A senadora eleita mostrou que sua atuação pública é, no mínimo, perigosa. “Ela é um risco para tudo aquilo que mulheres negras buscam resguardar: a segurança, a integridade física e emocional e a proteção dos direitos de nossas crianças e adolescentes”, afirma. Para Mourão, os posicionamentos da Damares são totalmente apartados da defesa dos direitos humanos. “As falas dela demonstram profundo racismo, porque sempre se referem às crianças e adolescentes do Marajó com determinado estereótipo”, alerta.

Através do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em 18 de outubro Damares pediu à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão uma prorrogação de mais 30 dias para provar as denúncias que fez. O pedido foi acatado. Assim, Damares Alves, ex-ministra de Bolsonaro e senadora eleita pelo Republicanos, poderá seguir repetindo denúncias graves para beneficiar o candidato Jair Bolsonaro, sem precisar provar o que diz, até o dia da eleição. Usando as palavras dela, desta vez com provas, “essa é a nação que a gente ainda tem, irmãos”.

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