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Há poucos meses, um grupo de jovens franceses cercou Davi Kopenawa nas ruas de Cannes, no sul da França. Estavam impactados pela presença do xamã e líder Yanomami no continente europeu, encantados com suas palavras e queriam escutá-lo mais. Durante as três horas anteriores, estiveram com ele em uma sala de cinema, onde assistiram ao recém-estreado documentário A Queda do Céu, e participaram de uma conversa sobre o filme. Mas aqueles 180 minutos não tinham sido suficientes para saciar a curiosidade gestada pela pergunta que guiou o encontro.
– Vocês já ouviram falar sobre a queda do céu?
Kopenawa estava no sul da França para apresentar o longa-metragem na Quinzena de Realizadores, uma mostra de cinema paralela ao Festival de Cannes. Dirigido pelos cineastas Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, o filme é baseado no livro homônimo (Companhia das Letras, 2015) escrito pelo xamã e pelo antropólogo francês Bruce Albert em que eles trazem um relato excepcional e um testemunho autobiográfico sobre a vida Yanomami e a luta contra a ameaça constante a seu povo desde os anos 1960 pelos napë (homens brancos). Escritos há mais de uma década, os pensamentos trazidos pelo livro e, agora, pelo filme, seguem ainda mais atuais.
O documentário A Queda do Céu foi inspirado no livro homônimo, escrito por Albert e Kopenawa. Fotos: Reprodução e cartaz do documentário
“Depois que o primeiro céu caiu, os grandes espíritos xapiri voltaram a sustentar o céu. Mas isso acontecerá novamente. (…)”, afirma Kopenawa no filme. “Hoje, os garimpeiros e os fazendeiros destroem a terra-floresta por toda parte. Então estes seres antigos ficam de novo cada vez mais com raiva. Porém, enquanto existirem os xamãs, eles irão segurar o céu. Mas até quando?”
Nesta nova andança pelo mundo para denunciar a persistente destruição da Floresta Amazônica, Kopenawa participou, ao lado de Bruce Albert e dos cineastas, das apresentações do documentário. Ao todo, foram cinco exibições durante o festival, todas finalizadas com aplausos dos espectadores. Mas naquela noite em que os jovens cercaram Davi Kopenawa, o xamã teve a certeza de que seu recado estava sendo escutado. “Eram jovens de 13, 14 anos. No final, durante o bate-papo ainda dentro do cinema, Davi defendeu a tese de que era preciso saber ver e respeitar o que eles estavam assistindo”, lembra Gabriela.
O documentário, narrado por Kopenawa, é estruturado em torno da festa reahu, o ritual funerário dos Yanomami que reúne parentes dos mortos para apagar seus rastros, conduzi-los ao esquecimento e, assim, deixar com que seu espectro possa se fixar no mundo dos mortos. Tanto o livro quanto o filme convidam os napë a experimentar as rotinas, os movimentos e a cosmologia Yanomami, em uma estratégia de sensibilizar as pessoas não Indígenas sobre os valores enraizados nos povos da floresta. E, quem sabe assim, sensibilizar também para a urgência de frear o processo de destruição da Natureza.
“Os Yanomami têm uma relação muito tranquila com a morte, eles são muito conscientes da impermanência, da ideia de que isso [a vida] é uma transmissão [de conhecimento] de uma geração para a outra. Por isso é que são tão alegres e tão desprovidos de egoísmo, de narcisismo excessivo. Sabem que cada um deve transmitir para os filhos uma direção no mundo, dar um chão, e assim são as coisas. Não enchem muito a cabeça com a própria pessoa. Da mesma forma que não gostam de possuir muitas coisas”, comentou Albert em conversa com Kopenawa, Eryk e Gabriela depois de uma das exibições do filme em Cannes. “Uma vez que você chorou, apagou os rastros, o morto foi embora e você está livre. Eles não são amarrados aos mortos como nós, que temos cemitérios etc. Isso deixa uma carga muito pesada em nós. Eles têm essa naturalidade com a morte, e por isso dão um valor muito intenso para a vida, em particular para a generosidade da transmissão de conhecimento.”
Essa ideia de mergulhar na relação entre mães, filhos e xamãs Yanomami foi abraçada pelos diretores do filme, que respeitaram o tempo da floresta e levaram sete anos para concluir a obra. Só assim conseguiram captar importantes momentos da vida dos Indígenas, como a série de etapas do apagamento de uma pessoa morta, os processos de pintura corporal, os rituais de inalação do pó alucinógeno de yãkoana e algumas conversas de rádio entre povos para alertar sobre a aproximação de garimpeiros.
O filme mostra cenas em que os Yanomami enfrentam ameaças de invasões de garimpeiros. Foto: Reprodução do documentário
O xamã é o narrador do longa, que ainda não tem data de estreia no Brasil, mas Eryk explica que, durante o processo de montagem, aos poucos eles foram “esvaziando as palavras para chegar ao que era essencial de ser dito e para que o filme pudesse respirar. Para que a voz de Davi pudesse ser uma voz, um personagem amalgamado com todos os outros, com essa polifonia, essa multiplicidade de seres. [A ideia era] conseguir dar uma força, uma potência para essa floresta poliglota. A voz do Davi Kopenawa estar com a dos pássaros, dos ventos, do trovão, do igarapé”.
A diretora conta que, após o término daquela exibição que tinha uma audiência majoritariamente jovem, ela, Eryk e Davi Kopenawa conversavam na calçada quando um grupo com cerca de 60 meninos e meninas se aproximou do xamã na rua e começou a aplaudi-lo fortemente. “Eles quiseram continuar o bate-papo ali mesmo. Foi um momento muito forte, porque Cannes é o maior festival de cinema do mundo, mas é também um lugar por onde passam muitas estrelas internacionais. Então ver essa admiração dos jovens europeus pelo Davi, querendo ouvi-lo, vê-lo, querendo continuar aquela troca no meio da rua, foi muito especial. Ele sentiu que sua palavra estava sendo acolhida.”
Jovens franceses encantados com Davi Kopenawa pediram para continuar escutando o xamã nas ruas de Cannes. Foto: arquivo pessoal
As exibições do filme em Cannes ocorreram semanas depois de países asiáticos terem vivido ondas letais de calor extremo e enquanto as enchentes afundavam o extremo sul do Brasil. A Terra recém-completava seus 12 meses mais quentes já registrados pela ciência, e a França, então, estava prestes a entrar em mais uma temporada de temperaturas bem acima da média, o que tem se tornado cada vez mais frequente durante o verão europeu. Talvez por isso o tom premonitório das falas de Davi Kopenawa durante o longa-metragem tenha deixado os espectadores tão impactados. Vestindo um smoking preto, gravata-borboleta, camisa branca, colar de miçanga e cocar – que traziam a cultura Yanomami para o tapete vermelho –, Kopenawa arrancou aplausos e atraiu olhares de respeito por onde passou.
O filme detalha que na cosmologia Yanomami espíritos xapiri há muito sustentam o céu, que em outros tempos havia caído após uma série de transgressões cometidas pelos yaroripë (ancestrais animais). Em entrevista a SUMAÚMA, Kopenawa explicou que naquele tempo “a chuva não parava, o tempo era sempre coberto. Então os xamãs daquele primeiro tempo mandaram seus xapiri para conter o ser do caos. (…)”. Mas no documentário ele alerta sobre o fato de que isso pode voltar a acontecer, a partir de um processo liderado pela destruição do planeta pelos não Indígenas. “É isso que os sonhos dizem para nós, xamãs, tomadores de yãkoana. Quando a Terra se transformar de forma inesperada, vocês podem ter o dinheiro que for, vocês podem correr com o dinheiro, pois, quando o vento da tempestade chegar, vocês não poderão silenciá-lo. Vocês irão se questionar sobre o que está acontecendo, e virá o tempo do lamento”, diz o xamã no filme. O alerta se torna ainda mais assustador quando assistimos às imagens de cidades como Porto Alegre arrasadas pelas chuvas torrenciais agravadas pela crise climática – ou as vivemos.
É por esse futuro que começa a virar presente e que aparece como ameaça nos sonhos do xamã, é pela realidade da invasão garimpeira que há anos vem causando o genocídio dos Yanomami que Kopenawa segue na missão de transmitir ao não Indígena a visão de mundo compartilhada por seu povo. “A lei ainda é fraca com garimpeiros, fazendeiros, com o agronegócio e as grandes mineradoras. Por isso continua a destruição. Se espalharmos nossas imagens e nossas palavras por todas partes com o filme, na Europa, no Brasil e em outros lugares, muita gente vai entender e vai ajudar para que o governo aqui seja mais firme com essa lei para impedir de destruir a terra-floresta do Brasil”, disse Kopenawa a SUMAÚMA.
A fórmula do sucesso tanto do livro, escrito em francês e traduzido para pelo menos cinco idiomas, quanto do documentário está em aproximar o leitor/espectador do modo de vida Yanomami. Para Davi Kopenawa esta experiência mais recente no continente europeu, de onde saíram os primeiros napë que subjugaram e exploraram seu povo, se traduz em devolver com arte o que lhes foi oferecido com violência. “Outrora os portugueses vieram da Europa dizendo que descobriram essa terra onde viviam os povos Indígenas e chamaram de Brasil. Mas não descobriram nada, só invadiram! Agora somos nós que levamos nosso filme A Queda do Céu para a Europa para que seja visto e ouvido para o tanto que tem de não Indígenas morando por lá! Queremos espalhar nossa palavra Yanomami agora de volta até os confins do mundo deles! Queremos, assim, que acabem ficando mais espertos e pensem que devem ajudar para que os brancos parem de destruir nossa terra-floresta!”
As palavras, como flechas, foram lançadas e parecem ter atingido ao menos os jovens, que já entendem o futuro que os espreita no presente.
A Queda do Céu traz um alerta sobre as ameaças que os Yanomami vêm sofrendo ao longo das últimas décadas. Foto: reprodução do documentário
Reportagem e texto: Jaqueline Sordi
Edição: Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Douglas Maia e Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Maria Jacqueline
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Chefa de reportagem: Malu Delgado
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum