Jornalismo do centro do mundo

Dos 69 municípios prioritários para a redução do desmatamento que tiveram a eleição definida no primeiro turno, a esquerda só venceu a prefeitura em dois deles. Foto: Antonio Pereira/AGIF/Folhapress

Na sala de reuniões do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, em Brasília, Gelson Dill tentava convencer um grupo de jornalistas de que é “justo” dar títulos de propriedade a invasores de terras públicas dentro da Floresta Nacional do Jamanxim, uma área protegida no sudoeste do Pará. Dill, filiado ao MDB, é o prefeito de Novo Progresso, município onde está Jamanxim e que surgiu na esteira do garimpo ilegal, do roubo de madeira e da invasão de terras públicas na Amazônia. Naquele dia, ao lado dele estava Luiz Helfenstein, um homem alto, magro e de cabelos embranquecidos, presidente de uma associação que defende a regularização de terras invadidas da floresta nacional. A cena aconteceu em maio de 2024. Cinco meses depois, no primeiro domingo de outubro, Dill recebeu 8 de cada 10 votos válidos do município. Foi reeleito. Helfenstein, que na urna era o “Luizão da Flona do Jamanxim”, teve 512 votos e conquistou uma das 11 cadeiras de vereadores.

Nos meses que antecederam as eleições municipais, a Amazônia atravessou a maior seca dos últimos anos, muitos rios se transformaram em lama e áreas inteiras queimaram como não se via fazia quase 20 anos. Novo Progresso registrou, apenas nos dois primeiros dias de setembro de 2024, 508 focos de incêndio. Sob a fumaça das queimadas, Dill atravessou a disputa sem sobressaltos. Filiado ao sindicato rural local, ele apoia fazendeiros e grileiros de terras públicas que usam fogo para derrubar a mata e limpar pastagens.

Um quadro eleitoral semelhante ao de Novo Progresso se repetiu em todos os municípios-símbolo da destruição da Amazônia. Segundo um levantamento do site ((o))eco, dos 69 municípios no topo da lista de maiores desmatadores que tiveram a eleição definida no primeiro turno, somente dois elegeram partidos de esquerda. Políticos de direita e de extrema direita – para quem conservar o meio ambiente não é e nem será prioridade – também venceram em Altamira, Itaituba e São Félix do Xingu, por exemplo. Itaituba é conhecida como a capital da lavagem do ouro; São Félix é a cidade com o maior rebanho bovino do Brasil, com pelo menos 37 bois para cada habitante; Altamira está entre os campeões de desmatamento da Amazônia Legal.

Gelson Dill, reeleito em Novo Progresso, exibe como trunfo a bandeira do Brasil autografada pelo ex-presidente Bolsonaro. Foto: Avener Prado/SUMAÚMA

As eleições municipais de 2024 repetiram o cenário do pleito nacional de 2022, quando o então candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, extremista de direita do PL, foi o grande vitorioso nos municípios do chamado Arco do Desmatamento da Amazônia. “Bolsonaro venceu [em 2022] em 265 municípios (34,7%) que concentram 70% da perda de floresta na Amazônia nos 36 anos anteriores às eleições”, aponta o estudo “Forças Políticas de Extrema Direita no Brasil Podem Levar a Amazônia ao Ponto de Não Retorno”, assinado por 14 pesquisadores de diferentes universidades e institutos de pesquisa – como o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o Observatório do Clima e o Instituto Kaingáng – e publicado na semana anterior ao primeiro turno de 2024. “Houve uma perda média de 19,9% da área de vegetação nativa nos municípios [da Amazônia Legal] onde Bolsonaro venceu. Isso é cerca de três vezes maior do que a perda média [de vegetação] nos municípios [amazônicos] onde Lula venceu”, compara.

Um dos coautores do texto, Gustavo Canale, professor e pesquisador no Instituto de Ciências Naturais, Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso, afirma: “A extrema direita se consolidou onde o desmatamento é historicamente muito alto, em municípios associados à grilagem de terras, ao trabalho escravo, ao uso desenfreado de agroquímicos”. O predomínio de candidaturas de extrema direita provocou o que ele chama de “cegueira política”, em que pouco ou nada se debateu sobre a emergência climática, apesar de o próprio agronegócio estar sentindo os efeitos do aquecimento global. “Os municípios do Arco do Desmatamento deveriam estar se preparando para enfrentar, por exemplo, uma quebra de safra [agrícola], que é uma realidade provável num futuro próximo”, observa o pesquisador, se referindo às lavouras perdidas por causa da seca. É algo com que a cientista política Camila Rocha, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, também se deparou ao fazer pesquisas com produtores rurais na região. “Me chamou bastante a atenção como eles tinham uma visão de curtíssimo prazo da produção [agropecuária] e do uso da terra”, enfatiza.

A destruição da floresta pelo agronegócio predatório não tem sido barrada nas eleições, ainda que, em pesquisa, os amazônidas critiquem o desmatamento. Foto: Avener Prado/SUMAÚMA

Eleitor rejeita desmatamento e garimpo, mas…

Esse cenário eleitoral é ainda mais perturbador diante de algumas evidências. A maioria dos amazônidas, 58,7%, aponta as questões ambientais – desmatamento, queimadas, secas, enchentes e alagamentos e calor extremo, nesta ordem – como os principais problemas da região. Entre as pessoas que vivem no Norte do país, 82,2% acham que o garimpo e a mineração são atividades negativas para a região; 82,7% acham o mesmo em relação à extração de madeira. Os dados foram revelados na “Pesquisa de Valores Ambientais e Atitudes sobre a Amazônia”, projeto coordenado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), divulgada em julho deste ano. “As pessoas acham que o principal problema da Amazônia é ambiental. Agora, quando eu pergunto se o agronegócio é positivo ou negativo, quase 70% acham que é positivo”, explica Gustavo Ribeiro, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA e coordenador do levantamento.

Quando os dados da pesquisa são confrontados com o resultado das urnas, as contradições entre o discurso e a prática são evidentes. O professor busca explicitar essas disparidades no comportamento do eleitor. Esses políticos que se fortalecem nas disputas eleitorais em fronteiras agrícolas, explica Gustavo Ribeiro, dependem do apoio financeiro do setor. Por isso, como o agronegócio predatório não se interessa pela questão ambiental, ela desaparece das campanhas e da agenda política. Os representantes da extrema direita também criam “carreiras”, percorrendo com êxito o percurso das Câmaras Municipais aos Executivos locais e estaduais, com recursos do agronegócio para as suas campanhas. Existe, ainda, uma articulação de discurso desses segmentos políticos, disseminada sobretudo nas redes sociais por grupos de extrema direita e da direita, de ataque aos temas ambientais, muitas vezes com desinformação.

‘Algo mudou na Amazônia após Bolsonaro’

Altamira é o maior município do Brasil em extensão. É, também, o que mais perdeu cobertura florestal na Amazônia desde 2008, segundo o Prodes, sistema que monitora o desmatamento por imagens de satélite. Nesse período, foram mortos 6.445 quilômetros quadrados de floresta, o equivalente a quase 15 vezes o tamanho de Curitiba, capital do Paraná. O prefeito eleito, o médico Loredan de Andrade Mello, é uma espécie de “bolsonarista moderado”. Ele é do PSD, partido criado por Gilberto Kassab em 2011 com um slogan que hoje faz muito sentido aos que fogem da polarização: “Não é de direita, nem de esquerda, nem de centro”.

Loredan Mello foi eleito em Altamira, no Pará, onde mais se perdeu cobertura florestal desde 2008. Fotos: Reprodução/Instagram e Christian Braga/Greenpeace

Loredan é fazendeiro. À Justiça Eleitoral declarou possuir 100 vacas e duas propriedades rurais que, juntas, estima valerem 1,8 milhão de reais. O vereador mais votado do PSD na cidade, Chesther Luchetti Pedro, presidente da Cooperativa dos Garimpeiros do Norte, é cotado para assumir a Secretaria Municipal de Meio Ambiente a partir de 2025.

“Algo mudou após o governo Bolsonaro”, avalia o cientista social Mauricio Torres, professor e pesquisador na Universidade Federal do Pará. “Parte significativa dos moradores dessas cidades vive da madeira roubada, de gado criado ilegalmente em unidades de conservação e Terras Indígenas, da grilagem de terras públicas, do garimpo ilegal. Com Bolsonaro, o presidente da República passou a defender isso tudo. Essa defesa aberta e impune do que todos tinham como absurdo empoderou elites locais que vivem de atividades ilegais”, afirma Torres, que há anos pesquisa os conflitos por terra no Pará.

É uma percepção compartilhada por Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o Ipam. “​As elites locais, que conseguem recursos explorando terras, madeira, ouro, coisas ilícitas, são quem tem dinheiro nesses municípios. E assim acabam se elegendo ou apoiando os representantes eleitos. Queira ou não, essas pessoas dão emprego, em madeireiras ilegais, nas barcaças de garimpo”, afirma Alencar, que também assina o artigo que associa o avanço da extrema direita com a destruição da Amazônia publicado na revista Campo-Território.

É o caso, por exemplo, de Itaituba, de onde em 2022 se extraíam 12,4 toneladas de ouro – mais da metade delas de forma irregular. Ali não houve alternância no poder. Nicodemos Aguiar, do MDB, foi eleito prefeito com 48% dos votos válidos. Ele é o atual vice-prefeito da cidade, comandada por Valmir Climaco, também do MDB, condenado por crimes ambientais e dono de garimpos. Em 2019, numa fazenda dele, a polícia apreendeu 580 quilos de cocaína e armamento pesado. Nada disso o impediu de conquistar dois mandatos e fazer o sucessor.

Em Itaituba, onde mais da metade da extração de ouro é ilegal, Nicodemos Aguiar, atual vice, foi eleito. Fotos: Reprodução/Instagram e Lalo de Almeida/Folhapress

Já em São Félix do Xingu, município em que o rebanho chega a 2,5 milhões de bois pastando onde antes era floresta, o prefeito eleito, Fabricio Batista, do Podemos, é um pecuarista que teve como cabo eleitoral um dos mais notórios bolsonaristas do Pará, o senador Zequinha Marinho, do mesmo partido. Marinho é um ardoroso apoiador dos grileiros das Terras Indígenas Ituna/Itatá e Apyterewa, a mais desmatada do Brasil, que em 2023 foi alvo de uma operação federal de desintrusão – remoção de não Indígenas do território. Três candidatos Indígenas disputaram a eleição para vereador em São Félix do Xingu, todos pelo PT. Nenhum se elegeu.

Para Mauricio Torres, a falta de implementação efetiva de programas de reforma agrária na Amazônia alimenta as elites que vivem do crime ambiental na região. “Isso empurra muita gente para uma relação de dependência com esses criminosos, obriga [as pessoas] a trabalhar em situação de escravidão no roubo de madeira, ou no garimpo”, afirma. “A exploração acaba sendo vista como alternativa de vida. E aí esse discurso da extrema direita passa a colar, pois um estado de direito, que cumpra a Constituição, toma ares de ameaça à subsistência.”

O pecuarista Fabricio Batista (à dir.) chegou ao poder em São Félix do Xingu com o apoio do senador Zequinha Marinho. Fotos: Lela Beltrão/SUMAÚMA e Reprodução/Instagram

Quatro fatores que explicam o fenômeno

Ainda que a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 tenha dado fôlego a essa elite política agropredatória, é preciso entender o avanço gradual da extrema direita como algo gestado bem antes da disputa presidencial e causado por múltiplos fatores. Há pelo menos cinco anos o professor de ciência política Ivan Henrique de Mattos e Silva, da Universidade Federal do Amapá, estuda o fenômeno. Ele é também vice-coordenador do Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal, que pesquisa indicadores políticos, econômicos e sociais nos nove estados que integram a região.

“É preciso compreender a ascensão desses novos grupos de direita na Amazônia Legal num escopo mais amplo”, diz o pesquisador. Segundo Silva, esse fenômeno é um “subproduto da crise da Nova República”. O pacto social construído durante a redemocratização, explica ele, tinha dois pilares contraditórios: a macroeconomia neoliberal e as políticas compensatórias. Se no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006) foi possível garantir a prosperidade social a partir da explosão da demanda chinesa por produtos agrícolas e matérias-primas, como minérios, importados do Brasil, “depois o cobertor ficou mais curto, o conflito social se agudizou e o pacto se rompeu”, diz o professor. Segundo o professor, durante o primeiro mandato de Lula o governo teve recursos econômicos mais abundantes e foi possível ampliar as políticas públicas na área social e a transferência de renda. Após alguns anos, porém, essa fórmula de prosperidade econômica não foi mais possível, sobretudo com os efeitos da crise econômica global, e a desigualdade econômica voltou a ficar mais aguda e visível no país. A incapacidade gradual de investimento do Estado desconectou de candidaturas de esquerda segmentos eleitorais importantes, como a classe média e até setores em situação de vulnerabilidade.

Além de ser um processo gradual e em escalada, a ascensão da extrema direita, diz Ivan Silva, pode ser mais bem  compreendida a partir de quatro fatores principais. O primeiro deles tem relação com a militarização na Amazônia, especialmente durante a ditadura empresarial-militar (1964-1985). Alguns  estados que integram a região foram territórios federais – que eram administrados diretamente pela União, casos de Acre, Amapá, Rondônia e Roraima – ou são áreas de fronteira. Somente com a Constituição de 1988 foram abolidos os últimos territórios federais. “No imaginário brasileiro mais amplo, e das Forças Armadas de forma mais específica, é o escopo do vazio demográfico, em que é preciso ocupar a Amazônia para não entregar a região a potências internacionais”, esclarece ele, referindo-se a uma visão que desconsidera que a floresta era habitada mais de 10 mil anos atrás por inúmeros Povos Indígenas. “Como o peso militar ainda é grande nessas regiões, isso tende a dar à dinâmica política um perfil mais conservador”, justifica.

Um segundo fator é a correlação entre o voto evangélico, sobretudo neopentecostal, e o voto de direita, o que tem sido extremamente forte em Rondônia e também no Amapá, observa Ivan Silva. O entrelaçamento da extrema direita com a religião evangélica, em especial a neopentecostal, se dá a partir da pauta de costumes, conservadora, como a oposição ao aborto ou a questões de gênero, por exemplo. O testemunho de Cassiano Luz, diretor-executivo da Aliança Evangélica Brasileira, ajuda a entender a influência religiosa. Luz morou por nove anos na Amazônia, no final dos anos 1990 até 2007, e atuou em trabalhos sociais, como na Terra Indígena Yanomami. “O que predomina na Região Norte é a Assembleia de Deus, que é de longe a maior denominação evangélica no Brasil. Ela tem essa característica de estar nos lugares mais remotos e distantes. Geralmente chega primeiro. É muito forte na Região Norte, é uma força tremenda. E essa força acaba se traduzindo também em força política”, afirma o religioso.

O elo da extrema direita com o conservadorismo evangélico e a visão ideológica dos militares ajudam a explicar a ascensão desses grupos. Fotos: Gabriela Portilho/SUMAÚMA e Força Aérea Brasileira

Outro elemento importante para compreender a ascensão desses políticos extremistas é o aumento de crimes violentos na Amazônia. Diz o professor Ivan Silva: “A dinâmica de agudização do crime no Norte se explica por esse imbricamento entre crimes ambientais e crimes violentos, com três instâncias: o grande capital [empresários do agro, transnacionais etc.], as famílias com poder econômico da região; na ponta tem o criminoso de crimes comuns e imediatos, desde desmatamento até pistolagem, grilagem, queimadas; e quem faz o elo entre o grande capital e a ponta são as facções criminosas”. Ou seja, as atividades criminosas na floresta, como o desmatamento e o garimpo, estão cada vez mais associadas ao crime organizado nessas áreas de fronteira, e contribuem com práticas de lavagem de dinheiro do tráfico de drogas, por exemplo. Essa nova realidade da Amazônia aumenta a violência local. A insegurança favorece o discurso, muito comum na extrema direita, que coloca o “cidadão de bem” de um lado, que merece proteção, e o “marginal” do outro, que “merece um tiro nas costas”, pontua o pesquisador.

Por fim, o aspecto-chave que explica o poder desse tipo de político na Amazônia é, obviamente, a mudança de perfil social nos territórios por conta do avanço do agronegócio e da conversão à direita. “Rondônia já é, fundamentalmente, o polo desse discurso do agronegócio. No Amapá, cada vez mais tem senador dizendo que a solução para a região é explorar petróleo na margem equatorial ou levar a soja. Tudo isso nessa lógica de perceber a Amazônia como zona de expansão produtiva”, observa Ivan Silva. “Majoritariamente, a Região Norte tende a seguir essa trajetória à direita. Os mapas de votação na Amazônia Legal, tirando o Maranhão e o Pará, de 2010 para a frente, têm cada vez mais votos à direita. Parece uma tendência difícil de ser revertida”, avalia.

Ivan Silva observa ainda “que a esquerda segue pensando como única saída para 2026, por ora, lançar Lula de novo para evitar o retorno do bolsonarismo e de várias facetas do fascismo brasileiro”. Lula, obviamente, tem a seu favor um grande capital eleitoral, indicadores econômicos que melhoram paulatinamente e a máquina pública. Porém, pode não ser candidato e, até o momento, não há outro nome de esquerda forte para assumir seu lugar. “Aí a possibilidade de votos da direita é muito maior”, diz.

Bolsonaro está inelegível até 2030, depois de ter sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral por uso indevido dos meios de comunicação nas acusações infundadas que fez sobre as urnas eletrônicas. Seus apoiadores buscam anistiá-lo pela via legislativa – ou seja, no Congresso Nacional, onde há maioria de políticos da direita tradicional, fisiológica, e da extrema direita. Enquanto isso, há uma disputa – por enquanto nos bastidores – pelo apoio e pelos votos do ex-presidente de extrema direita, liderada pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que foi ministro de Bolsonaro e hoje é filiado ao Republicanos, partido ligado à Igreja Universal do Reino de Deus.

O governador Tarcísio de Freitas é um dos nomes da direita para a Presidência em 2026, já que Bolsonaro não poderá disputar. Foto: Zanone Fraissat/Folhapress

Outro extremista de direita que ganhou força na disputa municipal foi Pablo Marçal, do nanico PRTB, que chegou, inclusive, a romper com Bolsonaro. Por fora, no campo da direita, correm o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, do União Brasil; o mineiro Romeu Zema, do Novo; e o paranaense Ratinho Junior, do PSD, filho do apresentador do SBT. Os Ratinho, pai e filho, são latifundiários no Acre – e parte de suas fazendas invade as Terras Indígenas Kaxinawa Praia do Carapanã e Rio Gregório.

A repetição, em 2024, da vitória da extrema direita na Região Norte, associada ao agronegócio, aumenta o cacife eleitoral dessas forças políticas para a disputa presidencial de 2026. “Prefeitos e vereadores é que encampam as campanhas dos candidatos nas eleições presidenciais. Mas a gente sabe que isso também depende do tamanho dos municípios. Aqui no Pará, por exemplo, em 2022, os municípios do sul do estado foram majoritariamente bolsonaristas, e no norte votaram no Lula e no PT. Só que a parte norte é mais populosa, então, no geral, Lula venceu no estado. Esse dado é importante para avaliarmos, porque não basta só ter o maior número de prefeitos e vereadores, mas ver se governam as cidades mais populosas”, explica o cientista político Carlos Augusto Souza, da Universidade Federal do Pará. Existe “com certeza uma influência” das forças locais nas disputas majoritárias, de presidente e governador, justifica. “Porque essas lideranças locais servem como um canal de comunicação entre as eleições gerais e as demandas de municípios. Mas não sei se seria suficiente para garantir a vitória da extrema direita na eleição presidencial de 2026”, avalia o professor.

A cientista política Camila Rocha lembra da importância das emendas parlamentares – que financiam obras em municípios das bases eleitorais de deputados e senadores – no resultado de 2024, e que terá reflexos daqui a dois anos. “Os partidos do chamado Centrão, principalmente MDB, PSD, PP e União Brasil, tiveram um desempenho muito bom na região da Amazônia. Os deputados federais que se beneficiaram com o resultado da eleição nas prefeituras não somente devem se reeleger como eleger mais candidatos alinhados a interesses, como o do agronegócio, que são danosos ao meio ambiente. Não é uma perspectiva positiva para o meio ambiente, do ponto de vista da eleição para o próximo Congresso, nem a presidencial, pois esses políticos devem apoiar o candidato bolsonarista.”

Não é um caminho novo. É um jeito novo de caminhar

Ainda que as disputas eleitorais de 2024 tenham consolidado o poder crescente da extrema direita, estão se fortalecendo caminhos novos que disputam espaço com as forças do agronegócio predatório e o modelo econômico que empurra  a Amazônia à destruição. Diante da emergência climática, os movimentos sociais Indígenas, Quilombolas e camponeses perceberam a urgência de lutar por vagas nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional. E estão cada vez mais organizados, ainda que os passos sejam lentos.

Candidaturas Indígenas, por exemplo, receberam mais de 1,6 milhão de votos dos eleitores brasileiros em 6 de outubro. Além de lançar mais candidatas e candidatos, e de forma muito mais organizada e unificada pelo país, o movimento Indígena elegeu mais representantes. De 2.508 candidaturas ligadas à Campanha Indígena, iniciativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com representantes de 169 povos, foram eleitos 256 candidatos: 198 vereadores e 36 vereadoras, oito prefeitos e uma prefeita, nove vice-prefeitos e quatro vice-prefeitas. Em 2020, foram eleitos 236 candidatos Indígenas.

“Nós não aceitamos petróleo, nem exploração e mineração nos territórios Indígenas. A gente tem um posicionamento muito firme das pautas que as lideranças Indígenas querem para a Amazônia. Nossas pautas são essas: demarcação das terras e a não exploração de nada dentro dos Territórios Indígenas”, afirma Alana Manchineri, gerente de comunicação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), ligada à articulação nacional dos Povos Indígenas. Os candidatos Indígenas tiveram que se comprometer com um manifesto, em que assumem, por exemplo, que são contra o marco temporal.

Alana Manchineri (de blusa rosa claro) participa de conversas com candidatos Indígenas para deixar claro o compromisso com a vida e os territórios. Foto: Kauri Waiãpi/Coiab

Indígena do Povo Manchineri, no Acre, Alana acompanhou de perto a campanha. Segundo ela, com o crescimento da extrema direita o movimento tem percebido que é nas Câmaras Municipais e nas Assembleias Legislativas que os direitos Indígenas começam a ser ignorados. “Mais do que nunca, sobretudo após a aprovação da Lei 14.701 (do marco temporal), percebemos que é muito importante a gente estar no Legislativo”, diz Alana. Ela reconhece que a disputa ainda é muito desigual, principalmente pelo poder político e econômico das candidaturas ligadas ao agronegócio e à extrema direita. “É muito forte essa enganação, de que [mineração, exploração de petróleo e outras atividades econômicas predatórias] vai trazer riqueza e tudo o mais. A gente pauta as alternativas econômicas, o fortalecimento da economia Indígena”, explica.

A Campanha Indígena andou sintonizada com os movimentos negros, Quilombolas e com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), diz Alana. “A gente está num processo de organização junto com os outros movimentos sociais que padecem das mesmas lutas que nós: terra e território. É o que nos une”, afirma.

Pablo Neri, membro da direção nacional do MST pelo Pará, conta que o movimento criou grupos regionais para trabalhar, em rede, as questões de comunicação, jurídicas e contábeis de todas as suas candidaturas. “Para conseguir uma reforma agrária popular, só mudando as leis”, diz Neri. “Sempre candidatos da nossa base disputaram eleições. A novidade neste ano foi essa organicidade do movimento, a dimensão nacional para o trabalho eleitoral”, explica ele, que coordenou o grupo de trabalho eleitoral dos sem-terra no mesmo estado.

A articulação eleitoral inédita do MST surtiu resultados: foram 133 candidatos eleitos, entre vereadores e prefeitos, em 19 estados. Pode parecer pouco diante da dimensão territorial do Brasil, mas é simbólico. “Tivemos uma vitória em Parauapebas, aqui no Pará, onde temos mais de 13 mil famílias acampadas na região de Carajás, o que reflete uma agudização de conflitos [agrários]”, comemora o coordenador do MST. Os resultados foram motivadores para o MST, diz ele, mas ninguém está iludido. O movimento elegeu um único vereador no município, onde Aurélio Goiano, do Avante, um partido da direita, foi eleito prefeito com quase 60% dos votos válidos. “Foi uma vitória da extrema direita, foi a confirmação de que as vindas sucessivas de Bolsonaro ao sul e sudeste do Pará não foram em vão. Mas a gente sai vitorioso neste sentido, de ter colocado o bloco na rua, de ter feito o debate abertamente, de ter sido uma força que contrarrestou esse movimento de ampliação da direita e de dominação do barbalhismo [a família Barbalho] no Pará”, conclui.

Não houve um só dia nas campanhas de rua, disse Pablo Neri, que não tivesse a presença da fumaça, do sol escaldante, da poeira. “Como é que tu vai provocando esse rompimento do senso comum que o agronegócio e essa alfabetização à direita constroem, do dinheiro fácil, e vamos construindo outros requisitos para a vida boa, a vida de qualidade, o agir coletivamente no mundo?”, questiona o representante do MST. Práticas como a agroecologia, por exemplo, podem ser massificadas e virar política pública, propõe. Tudo isso, diz ele, só será possível com uma nova “unidade campesina amazônica, dos sem-terra, dos Indígenas, dos Quilombolas”, o que seria crucial para atravessar esses tempos.

Pablo Neri cita um poeta amazonense para dar sentido à esperança e não desistir das articulações eleitorais daqueles que são as maiores vítimas da destruição da vida. “Thiago de Mello já falava: Não é que eu tenha um caminho novo, o que eu tenho de novo é o jeito de caminhar.” O caminho de resistência  segue o mesmo, explica ele, mas é preciso encontrar formas novas de mostrar ao eleitor como esse modelo extrativista do agronegócio significa a deterioração das condições de vida, acelera a emergência climática, gera desconforto permanente, insegurança da vida humana e mais-que-humana, aumenta a ansiedade e o adoecimento coletivo. O filósofo e educador Paulo Freire – não por acaso odiado pela extrema direita –, lembra Neri, pregava que, no Brasil, ter esperança já é um ato revolucionário. Os defensores da floresta sabem o porquê.

Parauapebas, no Pará, onde o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tem um acampamento e luta contra a mineração, elegeu um vereador do MST. Foto: João Laet/SUMAÚMA


Reportagem e texto: Malu Delgado e Rafael Moro Martins
Edição: Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

© Direitos reservados. Não reproduza o conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita de SUMAÚMA