Jornalismo do centro do mundo

No Paraguai, berço da erva-mate, encontrá-la pode ser uma odisseia, consumi-la, um prazer e um ato de resistência

Para os Guarani, a erva-mate é a planta-mãe, a mais sagrada. Mas no Paraguai, berço da bebida não alcoólica mais popular do Cone Sul, encontrá-la pode ser uma odisseia; consumi-la, um prazer e um ato de resistência

Vinte anos se passaram desde o dia em que, ao redor de uma fogueira, Victoria disse ao marido Ernesto que não beberia mais erva-mate

Ainda não são 4 horas da manhã em Tekoha Y’apy (território de manancial, nascente ou origem, em Guarani), um vilarejo no norte do Paraguai a menos de 200 quilômetros da fronteira com o Brasil. Um homem velho sai com agilidade de uma casa feita de tijolos e sem pintura. É outubro de 2022, primavera austral, mas está frio. Há um cheiro de terra úmida e folhas frescas de hortelã e sálvia. O nome do madrugador é Ernesto Vera. Ele veste um casaco cinza dois números maior do que seu corpo de 1,60 metro de altura necessitaria – o capuz revela apenas uma franja de cabelo preto, um nariz largo e maçãs do rosto redondas. O tamoi (líder espiritual, em Guarani) caminha sobre pequenos galhos, úmidos a ponto de não fazerem barulho quando pisados. Depois de entrar no oga guasu, a grande casa comunal, uma construção retangular com telhado de juncos amarelos, ele se agacha e usa fósforos para fazer uma fogueira, onde ferve água em uma panela desgastada pelo tempo. Seus olhos e mãos, de uma cor parecida com a da terra que se vê sob suas sandálias, reluzem. Enquanto espera a água atingir o ponto de ebulição, Ernesto Vera coloca a erva-mate moída em uma cuia oca e esculpida, depois acrescenta água quente e, segurando-a com as duas mãos, sorve a bebida por meio de um canudo de madeira, um junco fino ou uma taquara. Não passa um dia, “se houver tempo”, ressalta ele, sem que beba mate. Quando oferece a erva a Victoria, sua mulher, já está amanhecendo. No círculo ao redor da fogueira também estão duas de suas filhas e duas netas. O canto dos pássaros acompanha os cânticos e os tambores da família.

Os Guarani realizam cerimônias semelhantes nessa terra tropical, o berço da erva-mate, há pelo menos mil anos, de acordo com alguns autores, como o argentino Pau Navajas (Caá Porã – El Espíritu de la Yerba Mate, 2013). Estudiosos europeus lhe deram o nome de Ilex paraguariensis. Embora o mundo talvez a conheça melhor por causa do jogador de futebol Lionel Messi ou do papa Francisco, ela faz parte da identidade Guarani desde que esse povo e seu idioma (Tupi-Guarani) se espalharam por meio dos rios americanos: das florestas amazônicas ao Caribe (Panamá é uma palavra Tupi) ou às cataratas de Yguasu (Iguaçu, a água gigante); continua a ser assim hoje, quando umas 225 mil pessoas – no Brasil (60 mil), no Paraguai (60 mil), na Argentina (25 mil) e na Bolívia (80 mil) – formam esse povo-nação sem Estado.

Ernesto Vera em frente ao tatuapé, um forno feito de galhos, em forma de esqueleto de tatu, onde centenas de quilos de erva-mate secam ao calor de línguas de fogo

Todas as plantas são sagradas para os Guarani: há cerimônias para o milho (avatikyry) e para novas plantas (ñemongarai), mas a erva-mate, ka’a, é a mais sagrada de todas, explica o tamoi. Ela é considerada a planta-mãe. A maneira mais antiga de usá-la é colocá-la na boca, mordê-la com os dentes e beber água do rio com as mãos. Isso é suficiente para sentir seu sabor e suas propriedades estimulantes. Em rituais importantes, como o do ano pyahu (novo) ou o mitakarai (cerimônia do povo Avá-Guarani em que cada jovem da comunidade recebe seu nome espiritual), a erva-mate deve ser bebida para fins de purificação, preparação, fortalecimento, recuperação da saúde e para garantir a conexão com a terra. E, no entanto, um dia, há vinte anos, quase no mesmo horário da manhã e ao redor de uma fogueira no mesmo lugar em que estamos agora, Victoria, professora e cuidadora das crianças e do jardim, disse ao marido, Ernesto, que não beberia mais erva-mate.

Mba’e? [o quê?] Que mal o ka’a pode lhe fazer?”, perguntou Ernesto em Guarani.

“Acho que me dá enjoo no estômago. Toda vez que bebo, fico com azia.”

E’a!”, repetiu Ernesto, surpreso.

Victoria, uma mulher de fala mansa com longos cabelos escuros presos em um coque, geralmente aponta seus olhos negros para o chão quando responde ao pai de seus quatro filhos, mas naquele dia, diz Ernesto, ela falou com ele olhos nos olhos.

Ernesto ficou chocado, mas as palavras de Victoria o fizeram pensar: fazia mais de vinte anos que eles não bebiam ka’aite, a verdadeira erva-mate, em sua forma silvestre. Porque se trata de uma planta florestal e havia cada vez menos florestas, tornou-se impossível encontrá-la. Apesar de ser uma planta essencial para a dieta e os rituais espirituais dos Guarani, ela havia se tornado quase um luxo. A prioridade era plantar milho, mandioca e feijão. Alimentar as galinhas e trabalhar para dar comida à família: colocar as cercas das fazendas de um karaí guasu (grande senhor), que, por menos de 100 dólares, envia um caminhão para transportar trabalhadores que não voltam antes de um mês ou sabe-se lá quando; ocasionalmente, carregando madeira para fazer carvão e outras vezes domando uma vaca que tenha escapado do proprietário.

Ernesto e Victoria, dedicados à agricultura e com renda quase zero, compravam erva-mate em uma loja. Levavam-na para casa já moída e embalada em um papel, em formato de tijolo. Por mais de 20 anos, consumiram a versão industrial da erva, de marcas comerciais que controlam grandes monoculturas de erva-mate e, com elas, o destino dos pequenos agricultores. São as empresas de erva-mate que coletam as folhas, que usam agrotóxicos, que aceleram os processos, rompendo com a tradição, baixando o preço para os produtores e vendendo mais barato aos consumidores. Até que o estômago de Victoria disse basta.

Depois do anúncio de sua esposa, Ernesto se refugiou sob o oga guasu, o mesmo onde ele cantava para nós naquela manhã de primavera. Rezou e cantou para Tupã, um dos maiores deuses dos Guarani. Fumava seu cachimbo enquanto meditava, preocupado com a saúde de sua mulher. E foi assim, lembra ele, que teve uma ideia: sairia em busca de um tesouro. Ele atravessaria as grandes fazendas para enfrentar os desafios da floresta onde as árvores selvagens de ka’a crescem. Traria para Victoria as folhas mais tenras e naturais que existem.

Bienvenida Vera Ortiz colhe uma abóbora: as famílias Avá Guarani da comunidade indígena Y’apy produzem vegetais para consumo próprio

Em busca de um tesouro

Em Tekoha Y’apy, 1.800 agricultores preservam 850 hectares de floresta tropical e vivem em outros 650, que dedicam a suas casas e jardins. A poucos quilômetros de distância, três proprietários são donos de cerca de 300 mil hectares no mesmo departamento, o de San Pedro, que eles desmataram quase completamente. O Paraguai é um dos países com a propriedade de terra mais desigual do planeta – 2% da população possui cerca de 80% das terras aráveis –, e 80% de suas florestas estão dentro de propriedades privadas, na maioria latifúndios. Dezenas de milhares de hectares de terras férteis, rios, montanhas, mananciais e vales, área equivalente à de diversos países europeus, estão em mãos de uma única pessoa, como o brasileiro Tranquilo Favero, o ex-presidente paraguaio Horacio Cartes ou o descendente de argentinos e espanhóis Carlos Casado, que são como que senhores feudais do século 21 em terras que um dia pertenceram aos povos indígenas.

O avô de Ernesto Vera ensinou ao neto os caminhos para encontrar o ka’aete, que cresce sob as robustas árvores de lapacho [ipê-rosa ou tabebuia], com flores cor-de-rosa, ou entre as yvyra pyta [cambuís], cobertas de musgo e cercadas por samambaias gigantes. São árvores fortes e altas, com até 15 metros, que dois homens podem escalar ao mesmo tempo sem que elas se movam. A erva-mate, recorda Ernesto, costumava crescer muito perto de Tekoha Y’apy. Bastava caminhar por uma hora para chegar até ela, apreciando o perfume das orquídeas e a terra encharcada de água do riacho, a orquestra de pássaros, macacos e grilos.

“Eram parte da floresta, assim como os jaguaretês [onças-pintadas]”, ele diz. Jaguareté, em Guarani, vem de jaguá, como eles chamavam os felinos antes da chegada dos espanhóis e seus cães. Mais tarde, foi acrescentado o sufixo eté, que significa autêntico.

Mas quando Ernesto partiu em busca do ka’aite para Victoria sua comunidade já havia se tornado uma ilha de mata escura e exuberante cercada por um mar de pastos e vacas, propriedade de grandes criadores de gado. Desde 1950, o Paraguai desmatou 8 milhões dos 9 milhões de hectares de sua Floresta Atlântica do Alto Paraná, o nome acadêmico oficial para essa mata subtropical, uma região de bosques, de vegetação rica, que também se estende pela Argentina, Uruguai e Brasil. No Paraguai, um dos dez maiores produtores de carne bovina do mundo, já existem quase duas vezes mais vacas (cerca de 14 milhões) do que pessoas.

Em sua busca, Ernesto Vera se deparou com novos portões de madeira das fazendas de gado, mais pastos para vacas e cavalos, novas cercas de arame e até mesmo guardas armados. Cada vez menos floresta, menos “monte”, como os bosques são chamados no Paraguai, embora não haja montanhas, e cada vez mais barulho: o canto da araponga (Procnias nudicollis) substituído pelo motor de uma escavadeira, o rugido do jaguaretê mutilado pelo baque surdo da pá de aço contra a base de uma árvore centenária, o tráfego interminável de carros e motocicletas se sobrepondo ao canto das cigarras.

Fernando Vera obteve permissão dos proprietários dessa fazenda para fazer a colheita. Muitas das florestas nativas de erva-mate estão agora em propriedades privadas

“Havia muito mais coisas no mato, em geral. Mais tipos de árvores, animais… Havia mais de tudo – mais plantas medicinais, mais frutas – Antes da chegada dos estrangeiros. O mato era muito fresco, então. O mato acabou e veio o calor”, disse Ernesto em Guarani enquanto caminhávamos ao redor de sua casa em companhia de seu neto Fernando, de 19 anos, que está prestes a entrar na universidade graças a uma bolsa de estudos e que se tornou meu tradutor.

Durante vários dias, no início dos anos 2000, Ernesto cruzou as terras dessas fazendas de gado, desviando-se de novas cercas e guardas armados. Perto de um riacho, encontrou o que estava procurando. Ele subiu na árvore de mate sem olhar para baixo, até ter uma centena de folhas em seus bolsos e dezenas de galhos inteiros sobre seu ombro.

Emañami, dê uma olhada, meu amor. Este não vai te fazer mal”, ele disse a Victoria, repousando o tesouro no chão.

Eles secaram a erva no fogo, guardaram-na por alguns dias, moeram-na e em seguida experimentaram o mate. Sentiram o verdadeiro sabor, que perdura no paladar, a folha defumada, verde, doce e amarga ao mesmo tempo. O sabor permanecia mesmo depois de múltiplos usos. Quando Victoria começou a beber a erva de Ernesto, não sentiu mais azia.

‘Este não vai te fazer mal, meu amor’

Argentina, Paraguai e Uruguai comemoram seus dias nacionais da erva-mate em datas diferentes, e o Paraguai tem ainda outra data comemorativa para o tereré, a mesma erva, bebida fria mas com igual paixão. Em cada um desses países, há mais de 200 marcas de mate: com ou sem palitos, de moagem grossa ou fina, com hortelã ou com stevia, com limão ou puro… O mate continua sendo a bebida não alcoólica mais consumida na Argentina, no Paraguai, no Uruguai, no Chile e no sul do Brasil. Cada uruguaio – os maiores consumidores, superando os argentinos – pode consumir cerca de 8 quilos por ano. Como um bom símbolo nacional, o mate é notícia na mídia e tópico central nas conversas de amigos. Para um estrangeiro que pensa sobre o Cone Sul, a primeira imagem que talvez lhe venha à mente será a de um jogador de futebol e provavelmente a segunda será a de pessoas andando com garrafas térmicas debaixo do braço.

As folhas de mate têm cafeína como princípio psicoativo e contêm xantinas, alcaloides também encontrados no café e no chocolate. Elas têm virtudes estimulantes, purificadoras e antioxidantes. Mas, para os habitantes desses países, são muito mais do que isso: o mate é uma cerimônia. O termo usado para o preparo do mate é ceba, ou seja, ele é alimentado. Em muitos momentos de afeto compartilhado, o encontro acontece em torno de um mate ou de um tereré. Esse “círculo da palavra” ainda hoje é ensinado pelos Guarani e por quase todos os povos indígenas da América, em face do individualismo feroz de nossos tempos. Mesmo quando a pessoa o bebe sozinha, há um diálogo consigo mesma: cada matero se lembra da primeira vez em que consumiu o mate sozinho, em companhia de seus pensamentos. Beber mate é usar as mesmas folhas de uma planta, e um pouco de água, por horas. Não é para consumir, não é para comprar, não é para gastar compulsivamente. É um símbolo e um sinal. O mate é identidade.

Mariano e Fernando Vera fazem uma primeira tostagem das folhas de erva-mate diretamente sobre as brasas. O processo continua no tatuape

Sem saber isso tudo, fica difícil explicar por que o mate é consumido diariamente na Síria e no Líbano. Após a Primeira Guerra Mundial e a queda do Império Otomano, muitos habitantes do Oriente Médio vieram para a América para começar uma nova vida. Eles adquiriram amor pela terra e se tornaram parte essencial de seu desenvolvimento. Centenas de milhares ficaram. Aqueles que retornaram a seus países de origem levaram consigo o costume do mate e o transmitiram a seus filhos e netos, como um símbolo e uma lembrança de sua odisseia. Eu mesmo, filho de uma família de imigrantes argentinos na Espanha, lembro-me de meu pai perguntando, a caminho do aeroporto de Madri, quanta erva-mate os avós, tios ou a madrinha haviam trazido. E eu roendo as unhas ao lado de uma mala repleta de pacotes da erva, como se fosse um Natal antecipado. Minha família gritando, chorando e rindo, tudo ao mesmo tempo, em torno do mate.

O mundo está consumindo cada vez mais erva-mate. Nos Estados Unidos e na Europa, ela está começando a ser encontrada em formas incomuns, como latas de refrigerante ou saquinhos de chá nos supermercados. O mate é vendido como uma alternativa mais natural aos superestimulantes como o Red Bull, mas essas variedades são altamente processadas. Um exemplo: o Club-Mate, o produto mais difundido na Europa, é uma bebida alemã que contém cafeína extraída do mate, mas tem 10 gramas de açúcar em cada 33 centilitros, além de 23 outros ingredientes. O maior produtor e exportador é a Argentina, com uma média anual de 35.000 toneladas, sendo os principais destinos a Síria (72%), o Chile (14%), o Líbano e os Estados Unidos (2%), segundo o Instituto Nacional de la Yerba Mate, da Argentina.

Enquanto o hemisfério norte do planeta só precisava ir ao Walmart ou ao Carrefour para consumir um derivado de mate, Ernesto Vera, tamoi, Guarani, prosseguia em sua aventura em busca da autêntica erva-mate e da felicidade de Victoria.

Por que reviver um trauma?

A floresta de Tekoha Y’apy já não está cercada apenas por vacas. A partir da primeira década do século 21, o Paraguai se tornou um país de vacas e soja. Grande parte das pastagens foi convertida em plantações de soja geneticamente modificada, grãos de altíssimo teor proteico que se tornaram uma matéria-prima indispensável para a alimentação do gado na Europa e na China. Os campos de soja do Paraguai cresceram e ocupam cerca de 3,5 milhões de hectares; oceanos verdes onde não resta uma única árvore cercam os últimos povos indígenas e as florestas do Paraguai, Brasil e Argentina.

Com isso, a busca de Ernesto pelo ka’a para Victoria se tornou ainda mais complicada. O tamoi começou a percorrer outras comunidades e a perguntar onde poderia haver uma ilha de floresta na qual a erva-mate ainda pudesse crescer. Em suas caminhadas, havia uma palavra que ele ouvia repetidamente: permissão. Ernesto Vera tinha que pedir permissão a um fazendeiro, permissão a uma das famílias ou grandes empresas que possuíam a terra. Permissão para abrir o portão da fazenda sem levar um tiro, permissão para andar entre as vacas, permissão para apanhar algumas folhas e galhos. Permissão para atravessar os grandes campos de soja onde uma única pessoa, dirigindo um trator equipado com tela de toque e ar-condicionado, pode realizar a colheita de centenas de hectares de grãos em uma tarde ou pulverizar agroquímicos tóxicos em torno de sua comunidade.

A situação o fez lembrar demais dos castigos que seus ancestrais haviam sofrido por centenas de anos. Os colonizadores europeus observaram o primeiro consumo de erva-mate no século 16, no que hoje é o Paraguai e na época era o Vice-Reino do Peru. E, assim que o viram, o proibiram. Em 1610, a Inquisição do Reino de Castela proibiu o uso da planta e, em Assunção, impôs penas de 100 chicotadas aos indígenas e 100 pesos em multas aos espanhóis que consumissem ou traficassem erva-mate, de acordo com o argentino Jerónimo Lagier em seu livro La Aventura de la Yerba Mate.

Apenas 20 anos depois, os espanhóis a legalizariam e fariam dela a base de sua expansão econômica e territorial na região, dando origem à “Província Paraquaria”, uma espécie de Estado jesuítico que passou a incluir parte da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, na época em que Espanha e Portugal ainda dividiam o território americano por meio de tratados. Esse ramo da Igreja Católica, juntamente com os franciscanos e dominicanos, mantinha relações diplomáticas, militares e religiosas com quase todos os povos Guarani. Por cerca de dois séculos, os jesuítas impuseram sua religião e seus costumes aos nativos, enquanto absorviam seu conhecimento, sua força de trabalho e não apenas sua erva-mate como também suas terras. Suas florestas. Os jesuítas foram os primeiros europeus a cultivar monoculturas para exportação na América do Sul.

“E o grande capitão Duiy, que veio outro dia, também diante de nossos olhos espancou com as próprias mãos um índio que acabava de chegar de Mbaracayú, querendo levá-lo de volta a Mbaracayú”, diz um manuscrito arquivado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e intitulado Respuesta que dieron los indios a las Reales Providencias en las que se manda no sirvan los Indios de las Reducciones más que dos meses como S.M. lo manda y no sean llevados a Maracayú en tiempo enfermo (em tradução livre: Resposta que deram os índios às Reais Providências nas quais se ordena que os índios das Reduções não sirvam mais de dois meses, como manda V.M., e não sejam levados a Maracayú em tempo de doença). O documento é datado de 25 de agosto de 1630 e o conhecemos graças ao trabalho do linguista jesuíta espanhol Bartomeu Melià.

Tortura, assassinato, fome, estupro e espancamento. As mesmas coisas continuavam a acontecer 200 anos mais tarde. Isso não mudou quando os jesuítas foram expulsos pelos monarcas católicos nem quando, mais tarde, os espanhóis foram expulsos pelos criollos [filhos de europeus nascidos na América] que proclamaram a independência do Paraguai. Os descendentes dos Guarani, os camponeses meio indígenas, meio espanhóis, meio afrodescendentes e meio portugueses, continuaram a produzir erva-mate em regime de escravidão. Eles eram chamados de mensús porque supostamente recebiam uma mensalidade, embora isso nunca tenha acontecido. Uma única empresa, a Industrial Paraguaya, concentrava o controle de uma das maiores áreas de terra do Paraguai.

“Aquele não é mais um homem; mas ainda é um peão da erva-mate. Talvez haja nele rebeldia e lágrimas. Mineiros foram vistos chorando com suas costas dilaceradas. Outros, impotentes para cometer suicídio, sonham em fugir. Pense que muitos deles são apenas adolescentes. Seus salários são ilusórios. Os criminosos podem ganhar dinheiro, em algumas prisões. Eles não podem. Têm de comprar da empresa aquilo que comem e os trapos que vestem.”

Isso foi escrito em 1909 por Rafael Barrett, um jornalista e poeta anarquista espanhol que viveu algum tempo em quase todos os países da erva-mate. E de quase todos eles foi expulso.

Hoje a situação melhorou, mas as atuais empresas de erva-mate pagam tão pouco que somente com a formação de cooperativas os agricultores paraguaios podem obter remuneração justa. Esse é o caso da marca Oñoirũ, um modelo de produção orgânica camponesa que beneficia e representa muitas famílias da região de Itapúa.

Bienvenida Vera e Daina Ortiz brincam perto de um riacho. A preservação da natureza é essencial para a cultura de seu povo. Seu território é cercado por florestas e água doce

A história manteve Ernesto Vera, e quase todos os Guarani, distante da produção de erva-mate. Por que plantar ka’a se eles podiam comprá-la por algumas moedas? Por que reviver o trauma de seus pais e avós? Mas, cansado de procurar uma floresta que não existia mais e na qual a erva-mate mal crescia, em lugares que ele podia contar nos dedos de uma mão, Ernesto Vera fez a si mesmo outra pergunta: “Por quanto tempo eles me darão permissão?”. E então, assim como aconteceu quando Victoria lhe disse que não consumiria mais erva-mate, Ernesto Vera refletiu e teve outra ideia: se ele não podia sair em busca da erva-mate, a erva-mate cresceria na comunidade.

“E graças a Deus consegui!”, exclama ele, agora em frente ao grande tatuape, um forno feito de galhos, em forma de esqueleto de tatu, onde centenas de quilos de erva-mate secam ao calor de línguas de fogo vindas de um poço.

Cansado de procurar, Ernesto plantou

Eles se conheceram há dez anos, durante um mitakarai. Ernesto Vera dançava ao ritmo que sua esposa, Victoria, e outras mulheres batiam no chão com paus ocos de taquara. Ele movia o maracá em suas mãos enquanto entoava uma melodia. Parecia um transe. Norma Ávila, cantora e artista, tinha chegado de Assunção, capital do Paraguai, e foi convidada a visitar o oga guasu. Ela se deixou levar pela música, em comunhão com os outros. Surgiu uma relação de amizade e, para surpresa de Norma, um relacionamento comercial.

Ernesto Vera havia se juntado a outras famílias que plantavam erva por conta própria e continuava convidando pessoas a voltar a cultivá-la. Quando Norma chegou, Tekoha Y’apy e comunidades vizinhas haviam acumulado várias centenas de quilos de erva. Se o tamoi teve a ideia de buscar folhas para Victoria e cultivar a erva-mate na comunidade, foi Victoria quem pensou em oferecer à visitante a planta local, da maneira como era produzida no passado, para que a vendesse na capital.

Ernesto e Victoria mostraram o processo a Norma. A comunidade de Tekoha Y’apy reúne os galhos carregados de folhas e acende uma fogueira para fazer o sapecado, um primeiro processo de secagem que consiste em expor os galhos muito brevemente às chamas até que eles parecem gritar em coro quando a água que contêm se evapora. Em seguida, eles são secos por vários dias no tatuape, uma estrutura de cerca de 3 metros de altura cuidadosamente amarrada com raízes do guembé [filodendro], as mesmas usadas para arcos de caça, sem um único prego ou parafuso. O forno, que Ernesto Vera escala sem esforço, pode sustentar o peso de centenas de quilos de galhos e folhas de erva, e o de várias pessoas. Logo abaixo, um poço escavado na areia vermelha e argilosa abriga uma fogueira projetada e preparada para durar vários dias. A madeira queima ali, defumando e cozinhando lentamente as folhas de erva-mate. Cerca de três semanas depois, começa o processo de moagem manual, em enormes almofarizes feitos de troncos de árvores, e quando a erva está pronta é armazenada por um ano para que possa atingir seu sabor ideal.

Ernesto Vera costuma descansar sob o tatuape, uma espécie de forno artesanal feito de galhos que seguram as folhas de erva-mate enquanto elas torram e exalam um aroma suave. Sob essa estrutura semelhante a um esqueleto de tatu está a chaminé que distribui o calor de uma fogueira subterrânea alimentada por madeira colhida na floresta

Da comunhão entre Ernesto e Norma nasceu a SEA. Em sua embalagem, de papel pardo, um texto de um parágrafo lembra os tempos da Inquisição: “PROIBIDA A YERBA: Voz e erva do demônio. Será queimada em praça pública, excomunhão para quem a beber, 15 dias de prisão para quem a trouxer para a cidade, 100 chicotadas para quem for encontrado de posse da erva”.

A SEA se transformou na talvez melhor erva-mate do mundo. É a única presente na Arca do Gosto, uma lista de 5 mil alimentos que a humanidade deveria preservar para seu próprio bem, de acordo com a Fundação Slow Food, que vem promovendo esse catálogo mundial desde 1986.

Hoje, Norma Ávila produz, promove, distribui e vende a erva em Assunção e no mundo, que está se abrindo gradualmente para o produto; embalada em pacotes de meio quilo, a erva-mate também está sendo vendida em feiras agroecológicas locais, como a que acontece nas manhãs de sábado na Plaza Italia, meu bairro, em Assunção. Norma oferece a erva e a história. Ela conta de onde a erva-mate vem, como é produzida e quem é o tamoi Ernesto. É uma excelente contadora de histórias, e os clientes se tornam ouvintes e fãs.

Com uma mala cheia de pacotes de erva-mate cultivada pelos Avá-Guarani, Norma viajou recentemente para Berlim, de onde participa de mais feiras, divulgando o produto e a importância da preservação do meio ambiente. Ela criou seu “ritual do mate”, uma cerimônia própria que mistura a história e a mitologia Guarani com suas próprias canções. É uma degustação de mate para homenagear as pessoas que o criaram e a natureza que o permitiu. “Como uma pequena viagem pelas histórias e pelo sabor ancestral, aquele gosto da mata. É isso que estou tentando fazer com a cerimônia do mate, alcançar um pouco os corações”, diz.

Enquanto sua erva viaja pelo mundo, um novo dia de primavera nasce em Tekoha Y’apy. Victoria vai até a plantação para verificar o milho, a mandioca, o amendoim, o abacaxi e a batata-doce. Outros se revezam para cuidar do tatuape ou colher mais galhos. Ernesto Vera, empoleirado na montanha gigante de galhos e folhas, coordena o trabalho, tendo nas mãos um grande tridente de madeira. Ele é o responsável por saber quando a erva está suficientemente torrada. É uma especialidade da cadeia de trabalho familiar e comunitária que transcendeu a moderna indústria da erva-mate. Mesmo nas grandes empresas, essas pessoas são chamadas de urú, que em Guarani significa mestre da erva-mate. Mas antes de tudo isso, por volta das 4 da manhã, todos já estão acordados. Ernesto Vera vai até a casa comunal e acende uma fogueira para esquentar água. Ainda não havia amanhecido quando ele tomou seus primeiros goles de mate naquele reduto florestal, um dos únicos lugares do Paraguai onde às vezes ainda faz frio.

Santi Carneri Tamaryn, nascido na Argentina, (mal)criado na Espanha e crescido no Paraguai, é jornalista, fotógrafo e documentarista. Vive em Assunção há dez anos, cercado por quase 400 plantas e vasos de flores. Bebe mate quente todos os dias, apesar de no Paraguai sempre fazer calor.

Esta reportagem faz parte do projeto Colapso, da Dromómanos, uma produtora de jornalismo independente sediada no México.


Sobre a Dromómanos
A Dromómanos é uma produtora mexicana de jornalismo independente que investiga, treina e conduz experiências para contar a história da América Latina, com jornalistas de toda a região. O projeto nasceu em 2011, quando seus fundadores, Alejandra S. Inzunza e José Luis Pardo Veiras, viajaram pelo continente a bordo de um Volkswagen Pointer de terceira mão, tentando criar um novo modelo jornalístico de cobertura continental e documentando, com mais de 20 reportagens longas e o livro Narcoamérica, a maneira pela qual o tráfico de drogas afeta a vida de nossas sociedades em toda a América Latina. Nesses doze anos, a Dromómanos trabalhou com mais de 100 colaboradores e se aliou a 60 meios de comunicação nacionais e internacionais para narrar as questões mais urgentes para os latino-americanos, como a violência, a crise do clima, o autoritarismo, a migração e a corrupção.

Sobre o projeto Colapso
O que acontece quando a força da natureza encontra as misérias da humanidade? Em poucos lugares é possível obter uma resposta mais contundente a essa pergunta sobre nosso presente e futuro do que na América Latina, a região mais desigual e uma das mais biodiversas do mundo. Colapso se aprofunda nas selvas, montanhas, ilhas, florestas, desertos, oceanos e cidades da região para contar, de perto, a história dos sintomas e das consequências da crise do clima.

Texto: Santi Carneri Tamaryn
Fotos: Mayeli Villalba
Checagem: Dromómanos
Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o português: Paulo Migliacci
Tradução para o inglês: Charlotte Coombe
Edição visual e montagem de página: Lela Beltrão e Érica Saboya

Victoria e Ernesto cultivam a erva-mate silvestre que viaja o mundo na mesma chácara em que plantam os alimentos para a família

© Direitos reservados. Não reproduza o conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita de SUMAÚMA