Nenhum apoio a Luiz Inácio Lula da Silva nestas eleições é mais importante do que o de Marina Silva para quem luta pela Amazônia. Se Lula pode afirmar em debates que seu governo reduziu significativamente o desmatamento da maior floresta tropical do planeta é porque teve essa mulher negra e indígena, filha de seringueiros, nascida e criada na floresta amazônica, no estado do Acre, como ministra do Meio Ambiente de 2003 até 2008. Com a imposição total da agenda desenvolvimentista que ditaria o ritmo e as escolhas nos anos seguintes, Marina deixou o ministério e o Partido dos Trabalhadores (PT). Há bem menos para se orgulhar do que veio depois dela na área ambiental dos governos do PT. Se o Brasil brilhava nas Cúpulas do Clima mundo afora, dentro do país, em especial na Amazônia e no Cerrado, vários povos podem contar uma história bem diferente. Que depois de 14 anos Marina tenha superado as discordâncias políticas, de interpretação do Brasil e do momento histórico, para compor a frente ampla de Lula, é um acontecimento com grande significado para quem compreende o que está em jogo nesta eleição: mais do que o destino da democracia, o futuro da vida neste planeta.
Marina Silva chegou para a entrevista em seu escritório no bairro de Pinheiros, na capital paulista, em tons de árvore. Seu estilo é impecável, mas discreto, quase austero. Chegou já como deputada federal eleita por São Paulo, com 237.526 votos. A figura magra, a voz que parece ter algo doloroso raspando nas cordas vocais, o coque apertado, sugere fragilidade. A força de pensamento e de vida que fez de sua trajetória uma das mais extraordinárias da política brasileira só se revela quando a escutamos. Empregada doméstica depois que deixou a floresta para buscar tratamento de saúde na cidade, Marina só conseguiu se alfabetizar aos 16 anos. Partiu do conhecimento sofisticado dos povos indígenas e ribeirinhos do Acre para um diálogo muito particular com os grandes pensadores europeus. Fez também uma travessia pela psicanálise, campo de investigação do inconsciente que marca suas respostas nesta entrevista. No atual cenário brasileiro, Marina é possivelmente a intelectual política – ou a política intelectual – com o pensamento mais complexo no Brasil, independentemente do gênero. Mas, por ser mulher, preta e amazônida, paga um preço alto pela ousadia.
Em um país em transfiguração religiosa, Marina é também a principal política com ideário alinhado mais à esquerda que também professa a ascendente fé evangélica – e uma das poucas que não usa sua crença para manipulações eleitoreiras. Na adolescência queria ser freira, as comunidades eclesiais de base, ligadas ao campo de esquerda da Igreja Católica, tiveram forte influência na sua formação política. Depois, como aconteceu com muitos brasileiros, encontrou mais sentido espiritual na fé evangélica. No passado recente, parte significativa da esquerda não foi capaz ou teve dificuldades para entender a força do que Marina representava ou podia representar. Por um lado, sua fé evangélica foi uma das razões pela qual parte do campo progressista a rejeitou. Por outro, parte dos evangélicos neopentecostais do rebanho dos grandes pastores de mercado ainda a consideram “pouco evangélica” diante do histrionismo messiânico de figuras como Damares Alves.
No corpo corroído por malárias, leishmaniose e contaminação por mercúrio de Marina, ele mesmo violado como a floresta de onde veio, a mulher diante das jornalistas de SUMAÚMA é amálgama do que há de mais novo no Brasil: a hegemonia da natureza na recentralização geopolítica do mundo, o crescente protagonismo das mulheres negras no Brasil patriarcal e estruturalmente racista, o acelerado crescimento da fé evangélica num país onde até o século passado havia domínio quase absoluto do catolicismo. Ao fazer 1% dos votos na eleição presidencial de 2018, porém, Marina Silva foi dada como acabada.
Nada mais longe da realidade para quem vem da Amazônia e sabe que o fim do mundo é meio. É o que ela mostra nesta entrevista em que, por quase duas horas, não deixou de responder a nenhuma pergunta. E algumas delas foram bem duras. Marina se emocionou, chorou pelo menos uma vez, mas principalmente mostrou por que o ato político e de sobrevivência mais importante de nossas vidas, hoje, é votar em Lula – e convencer os indecisos a votar em Lula.
Marina Silva e Lula em setembro de 2022, durante a campanha eleitoral, depois de 14 anos de afastamento político. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação
SUMAÚMA: Como foi sua decisão de se reaproximar do ex-presidente Lula e do PT, depois de uma relação extremamente desrespeitosa com você nas campanhas presidenciais anteriores, quando você também foi candidata?
MARINA SILVA: Foi uma reaproximação política e programática. Muitas pessoas se perguntavam como ficaria meu posicionamento em relação a estas eleições, e eu confesso que trabalhei muito desde o início… Num diálogo com Ciro Gomes, [e com partidos como] o Cidadania, Rede, PV, um esforço muito grande para tentar apresentar uma alternativa à polarização. Mas não prosperou. A gente critica muito os negacionistas, mas a gente também não pode incorrer em negacionismo. A realidade fala, e ela nos deu uma mensagem de que a transformação necessária para o rompimento da polarização ainda não foi possível. A gente não pode ser negacionista diante de uma situação em que Bolsonaro e o bolsonarismo caminham a passos largos para a destruição da nossa democracia, que pode ser em dois níveis. Pode ser uma ruptura democrática abrupta, com ele o tempo todo ameaçando, tentando colocar na cena política as Forças Armadas. Também pode ser uma corrosão endógena, mudando a configuração do Supremo [Tribunal Federal], aprofundando essa mudança para a qual já existe maioria no Congresso e com todo esse aparato de pessoas armadas, numa mistura de polícia com milícia e com sociedade. É uma ameaça muito forte. Deus o livre, ao povo brasileiro, ele ganhar essa eleição. Sempre dizia que estaria aberta ao diálogo, desde que em bases políticas e programáticas. E sempre refutando uma forma, que é muito machista, de abordar essa divergência política que existia, e que existe em muitos aspectos, entre mim, o PT, e o próprio presidente Lula.
Machista como?
Eu saí do PT e fui candidata 3 vezes à presidência, apresentando um programa. Eu ajudei a criar um partido político [Rede Sustentabilidade]. Não era uma abordagem simplista, ou até mesmo machista, de ser uma questão de mágoa, uma questão de rancor, como muitos querem colocar as mulheres nesse lugar. Se é um diálogo com o [Geraldo] Alckmin, é [visto como] “superando divergências políticas”. Se é um diálogo com outro interlocutor, [significa que está] passando por cima de limites, até mesmo programáticos, ideológicos, para poder construir algo maior. Quando se trata de uma mulher, de origem humilde, preta, ambientalista, aí ficava sempre essa abordagem de: “Ah, tem que superar essa mágoa, tem que superar esse rancor”. No tempo certo, da forma certa, esse encontro se viabilizou. A convite do próprio presidente Lula.
Como foi esse diálogo com Lula?
Uma conversa pessoal de 2 horas e uma ação política, apresentando um conjunto de propostas assumidas publicamente com a sociedade brasileira. A única coisa que eu posso dizer é que foi uma conversa tão boa que gerou uma conversa pública, assumindo compromissos públicos na agenda socioambiental. Não por acaso, coloquei o nome de “Resgate atualizado da agenda socioambiental perdida”. Existe uma agenda que vinha dando certo, que conseguiu reduzir o desmatamento em 83% [de 2004 a 2012, depois voltou a crescer], que foi responsável por 80% das áreas protegidas criadas no mundo de 2003 a 2008 — enquanto Bolsonaro já é responsável por um terço das florestas virgens destruídas no mundo. Essa foi a agenda que conseguiu que evitássemos lançar na atmosfera 5 bilhões de toneladas de gás carbônico, a maior contribuição já dada até hoje por um país no contexto das ações de combate às mudanças climáticas. Ninguém melhor do que o ex-presidente Lula para fazer esse resgate. Porque isso aconteceu no governo dele.
Qual é a estratégia para que isso realmente possa acontecer, já que neste segundo turno Lula fez aliança com muitos predadores da Amazônia e de outros biomas? Até que ponto foi discutido se você vai ter uma participação mais ativa no seu governo, como por exemplo no Ministério do Meio Ambiente?
Não surgiu absolutamente qualquer coisa que tenha a ver com cargo. Foi uma conversa pessoal de duas pessoas que estavam há 14 anos sem falar de política, mas que nunca tinham perdido o vínculo do ponto de vista pessoal. Temos uma vivência de quase 30 anos, desde que nos conhecemos, quando eu ainda era muito jovem, nem era do PT ainda. Mas ajudei a criar o PT e nunca perdemos esse vínculo. Isso se expressou em momentos dramáticos de nossas vidas, que foi a morte do meu pai, a morte da dona Marisa, o câncer que ele teve, e que eu fui visitá-lo. O laço social que se estabelece tem uma base que não pode ser rompida, pelo menos quando não se trata de questões extremas. Acho que foi isso que garantiu que essa conversa política, altamente importante para o momento dramático da vida social, ambiental, civilizatória do Brasil, pudesse acontecer.
Igarapé próximo à aldeia do Demini, na Terra Indígena Yanomami, no estado do Amazonas. Foto: Pablo Albarenga/SUMAÚMA
Você representa também uma parcela significativa de brasileiros que têm muita dificuldade de apoiar o Lula por conta do que foi feito na área ambiental após sua saída. Como foi essa conversa interna, com você mesma? Por que as pessoas podem acreditar que esse compromisso programático, que já foi quebrado antes, será respeitado?
A política é um processo vivo, não pode ser repetido. Boa parte dos problemas que nós estamos vivendo tem a ver com a política [tratada] como mera repetição, o que leva sempre à estagnação. Faço esse movimento a partir da certeza de que será feito o pior que se possa imaginar se o Bolsonaro for eleito. Nossa democracia ainda tem muitas fragilidades. E tem fortalezas. Essa musculatura institucional, que já foi estressada em 4 anos, talvez não tenha músculos para sustentar mais 4 anos de Bolsonaro. Este é um risco que não podemos correr. Numa perspectiva, tenho o elemento da esperança e da crença. Hannah Arendt [filósofa alemã de origem judaica] disse que, diante do imprevisível, só existe uma coisa: o valor da promessa. E de uma promessa que não foi feita para uma pessoa, foi feita para um povo. Sinto que o presidente Lula está em paz com esse reencontro. Eu me sinto em paz. [Mas] terá disputa, sim. Com certeza é uma aliança ampla, mas é uma frente com os que querem também fazer a mediação pró–sustentabilidade. Sejam socialistas ou capitalistas, conservadores ou progressistas. Antes nós éramos os fora da curva.
Isso realmente mudou?
Agora o problema da mudança climática, da perda de biodiversidade, tudo o que está acontecendo no mundo se impõe pela ciência, pela razão, pelo bom senso, pela ética e até pela estética. E impõe que todos sejam “sustentabilistas”. Não é mais o desenvolvimento, é o “sustentabilismo”, [ainda que] uns serão conservadores, outros progressistas. Só os negacionistas não serão “sustentabilistas”. Eles estão dispostos a destruir o planeta.
Queimada criminosa na floresta Amazônica, nas proximidades de Porto Velho, em Rondônia. Foto: Bruno Rocha/Fotoarena/Folhapress
E por quê?
Porque há uma visão fundamentalista por trás de tudo isso, de que sempre que acontece um grande caos, uma grande catástrofe, um dilúvio, você vai ter uma humanidade renovável, um reflorescimento. Eles trabalham com essa lógica. Mesmo sendo conservador, você tem que considerar que se continuar aumentando a temperatura da Terra, não tem Amazônia, não tem água nem agricultura. O mercado não estará preocupado se vai ou não vai preservar a cultura indígena, se vai ou não vai resolver o problema da desigualdade, do racismo, da homofobia. Mas estará preocupado com a natureza.
Você afirma que há um consenso, mesmo entre conservadores, em torno da sustentabilidade. Há, porém, uma crítica ao desenvolvimento sustentável. O próprio Ailton Krenak [intelectual indígena brasileiro] já disse que desenvolvimento sustentável é uma vaidade pessoal. Não seria possível ser sustentável num sistema completamente insustentável…
Eu acho que a gente opera em alguns níveis. De como a gente se comunica com 7 bilhões de pessoas. E já é difícil comunicar nessa frequência do desenvolvimento sustentável, que, a duras penas, foi se colocando materializável para muitas pessoas. Agora, o fato de ter essa frequência compreensível não significa que você tenha que abrir mão da alma. E esta é uma outra frequência. Se você não mantém aquilo que são os princípios do bem viver, que dá suporte para que a gente possa se reinventar numa relação com a gente mesmo, com a natureza e com as outras pessoas, aí é um conceito vazio. A sustentabilidade não é uma maneira de fazer. Tem que ser uma maneira de ser. Não é apenas uma forma técnica. Tem que ser uma visão de mundo, um ideal de vida, estar lastreada no terreno dos ideais identificatórios. Até 400 anos atrás, era o ideal identificatório do ser. Os romanos queriam ser grandes, fortes. Os gregos queriam ser sábios, livres. Os egípcios, imortais. Na Idade Média, as pessoas queriam ser santas. E elas acreditavam que, se elas fossem algo, elas mereceriam ter. Se eu sou sábio, livre, mereço entrar pra história. Isso nos trouxe até aqui, com todas as mazelas do que somos. O mercantilismo entrou na cena há 450 anos e há um deslocamento. Agora, se eu tiver, eu mereço ser. Se eu tenho dinheiro, carro, uma casa, eu mereço ser feliz. Só que a capacidade de desejar do ser humano é infinita, e nós temos 7 bilhões de pessoas desejando ter, e não dá para suportar. Então, dialogando aqui com Ailton Krenak, vamos ter que fazer um deslocamento. Há limites para todos terem um carro, para todos comerem carne. Mas não há limite para fazer a melhor matéria jornalística, para escrever a melhor poesia, para compor a melhor música. Nos limites extensivos, eu estou disputando coisas. Estou disputando ouro, terra, carne. Nos limites intensivos, estou disputando habilidades. É aí que nós vamos sobreviver nesse planeta finito.
Bolsonaro recebeu 51 milhões de votos no primeiro turno e foi eleito um Congresso ainda mais antiambiental. Como vai ser essa batalha, nos dois cenários – se Lula vencer e se Bolsonaro vencer? Como será lidar com figuras como o ex-ministro do meio ambiente de Bolsonaro, Ricardo Salles, por exemplo?
Nós estamos vivendo um grande retrocesso. É uma regressão a um ponto civilizatório anterior. Se antes as pessoas queriam um pai e uma mãe, nós regredimos para ter o messias. É o cúmulo da regressão de uma visão infantil, impotente, assustada, apavorada do mundo. Isso é muito perigoso, porque, aqueles que se apavoram, [que temem] enfrentar o mundo, são capazes de destruir o próprio mundo que os apavora. É isso que o trumpismo faz, e é isso que o bolsonarismo quer fazer aqui no nosso país. É aí que eu encontro a razão: não é para ser otimista, e sim para ser insistente. Um amigo psicanalista tinha uma frase que me capturou: “Aonde for, seja”. Aquilo que está ali, insista para ser. Se nós temos uma raiz que já conseguiu reduzir o desmatamento, vamos insistir nela. Temos que fazer a transição para a agricultura de baixo carbono. Temos que ir para o setor financeiro, que não pode simplesmente fazer o discurso do ESG [sigla, em inglês, para Social, Ambiental e Governança] e emprestar para quem vai fazer destruição de floresta, para quem não respeita a terra indígena. O cerco vai se fechar. Os produtos de carbono intensivo vão ser precificados, vão ser taxados, a União Europeia está fechando o cerco, os Estados Unidos [também]. A China não tem como ficar de fora. Na hora que isso acontecer, a gente não fez o dever de casa?
E se não fizer?
Nós temos aqueles que sempre se moveram pelo coração. E tem alguns que vão se mover pela razão. Os que não se movem nem pela razão e nem pelo coração terão que se haver com os interditos da lei. Uma das propostas [diz respeito aos] 57 milhões de hectares de terras públicas hoje ainda não destinadas. O que chamam de “regularização fundiária” tem sido dar [essas áreas] de presente para quem faz grilagem [roubo de terras públicas]. Esses 57 milhões [de hectares] de áreas têm que ser destinados para unidades de conservação, para demarcação de terras indígenas. Não pode ser mais para corte raso [desmatamento].
Desmatamento recente no município de Apuí, no sul do estado do Amazonas. Foto: Lalo de Almeida/ Folhapress
Você fala da infantilização da política, de sair do pai e da mãe, para o messias. É uma referência à forma paternalista de governar de Lula e da apresentação na campanha de 2010 de Dilma Rousseff como “mãe do PAC” [Programa de Aceleração do Crescimento]?
Não estou vindo com nomes. Estou indo para o imaginário político do povo, esse ethos político que existe no Brasil. Vamos pegar Getúlio Vargas, que foi um grande pai na história [do Brasil]. Quantas vezes as pessoas dizem isso para mim: “Você é a mãe do ambientalismo”. E eu digo: Não. Nós temos uma luta que é nossa, esqueça esse negócio de ter uma mãe, [porque] é uma forma infantilizada. Mas pelo menos essa era uma ideia que ainda estava no terreno do humano, da cultura. A regressão vai para um ponto anterior a esse do pai e da mãe. É a ideia de um messias, de um salvador da pátria. É algo muito mais profundo e, obviamente, muito mais perigoso. Porque aí você tira qualquer potência transformadora da política, né? As pessoas já não se colocam [mais] nesse lugar de sujeito de suas vidas, de suas histórias. E isso tem a ver com a ideia também de que na América Latina as figuras carismáticas têm muita força. Falo isso me colocando na cena. Eu sou uma pessoa carismática e sei o poder que isso tem. Se tem uma coisa para a qual eu quero usar o carisma é para convencer as pessoas de que não dependam dele, que [ao contrário, precisam se] responsabilizar. Isso é difícil, dolorido, a gente não quer isso. A gente quer alguém que brigue pela gente, que fale pela gente. Se responsabilizar é muito doloroso e fazer política com essa compreensão é um lugar incompreendido. Se nós olharmos [para a história], antes a disputa vinha assim: é metrópole ou é colônia? Aí a gente consegue a nossa independência. É República ou Império? A gente consegue ser uma República. É agricultura ou é só extrativismo? É agricultura ou é indústria? É democracia ou ditadura? Sempre a polarização, você está sempre disputando. Mas a polarização também foi regredindo, e ela vai para o terreno dos indivíduos. Sai do modelo político e econômico e vai para a polarização entre os partidos. E depois ela vira uma polarização entre as pessoas. Agora, nós estamos no nível que nós estamos polarizando entre Deus e o Diabo.
Como enfrentar isso?
Quando a gente vai para o limiar desse nonsense, alguma coisa tem que aflorar daí, algum sentido, alguma ressignificação. O que nós estamos fazendo hoje é um movimento para defender algo que é fundamental, que é a base e a superfície de sustentação de todos. É diferente de quando você está na normalidade democrática. Você tem um povo que elege algo que para ele é muito importante. Nós estamos elegendo a democracia, mas não pode ser a democracia solta, ela precisa de um programa. Não [um programa] de um só partido ou de um grupo, mas um mosaico de ideias. É por isso que tem um lugar para as nossas propostas, para a proposta da senadora Simone Tebet [MDB], do Ciro [Gomes, PDT]. É a chance de podermos continuar lutando por aquilo que a gente acredita, pois com o Bolsonaro a chance está muito diminuída.
Como seria sua atuação num segundo governo Bolsonaro, uma vez que esta é uma possibilidade?
Um segundo governo de Bolsonaro é impensável. Porque coloca a Amazônia no mais alto risco e coloca as populações indígenas no mais alto nível de vulnerabilidade. Um impensável que tem que ser pensado. E se a gente não consegue pensar, a gente tem que agir. Neste momento, é atuar com o voto para tornar o Brasil vitorioso. A gente não pode reduzir o que nós estamos fazendo só a derrotar Bolsonaro, do mesmo jeito que a gente não pode reduzir apenas à vitória do Lula. O que nós estamos fazendo é dar vitória para o Brasil. Quando entrou em cena o [Fernando] Haddad e o Bolsonaro [na eleição de 2018], não precisou nem ter conversa programática. Eu sabia o que o Bolsonaro significava. Como agora eu sei tudo o que está em jogo para a democracia, para as políticas sociais, para os direitos humanos, para a Amazônia. Lá atrás, eu disse: o Bolsonaro vai atravessar as fronteiras do que é uma democracia ocidental. E ele atravessou. Agora, ele vai querer atravessar todos os limites por dentro, mudando o Supremo, fazendo impeachment de ministros, com esse parlamentarismo de usurpação, com orçamento secreto para botar dinheiro. Aí você vai ser uma Honduras, uma Nicarágua, uma Venezuela de direita.
Você acredita que existe uma massa mais crítica, hoje, que se entende como sociedade, menos vinculada ao paternalismo?
Sim, e isso está colocado no imaginário. Boa parte das soluções neste país foram produzidas pela sociedade. Essa é a nossa base de esperança, é aí que nós vamos insistir. É “Aonde for, seja”. O SUS vem de sanitaristas, de médicos comprometidos com a saúde pública. De onde vem a ideia de políticas sociais para atender os pobres, os vulneráveis? Da luta do Betinho, de Dom Mauro Morelli, e ganha força com a ciência, com um olhar social de economistas, com Ricardo Paes de Barros, [Anna] Maria Peliano, com Cristovam Buarque. De onde vem a ideia de que se deveria proteger a Amazônia? Vem do Chico Mendes, vem da Aliança dos Povos da Floresta. Quem ajudou a sistematizar isso? Mary Allegretti, Mauro Almeida, Manuela Carneiro da Cunha, Steve Schwartzman. De onde vem essa força potente da população preta, dos jovens nas periferias, das mulheres periféricas? Vem dessa capacidade de se perceber como sujeito. Eu falo e vou ficando emocionada. A gente tem um lado infantil, mas a gente está “adultecendo”. É nesse “adultecer” que vamos nos segurar.
Lula, eleito em dezembro de 2002, e Marina Silva, que seria sua ministra do Meio Ambiente de 2003 a 2008. Foto: Roberto Castro/Estadão Conteúdo
É inegável que a sua atuação no Ministério do Meio Ambiente foi a mais importante e muito do que o PT colhe hoje na área ambiental foi feito naquele momento e degringolou depois da sua saída. Mas é fato que você autorizou as primeiras grandes hidrelétricas na Amazônia, Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, e isso é uma marca. Não foi uma aprovação rápida, mas você aprovou a primeira grande hidrelétrica na floresta depois da ditadura. Isso foi desastroso. Que resposta você dá para as pessoas que estão na Amazônia hoje sofrendo com o impacto das hidrelétricas? Belo Monte ficou mais conhecida porque teve mais cobertura, mas Jirau e Santo Antônio tiveram e têm um impacto absolutamente devastador.
Olha, quando eu cheguei no ministério tinha 45 hidrelétricas que estavam, digamos, paradas. Algumas delas nós conseguimos viabilizar no contexto de todos os cuidados que precisavam ser tomados e tivemos a coragem de dizer não para algumas, coisa que nunca aconteceu no Ministério do Meio Ambiente. À hidrelétrica de Ipueiras, nós dissemos não. Isso às vezes as pessoas não registram. A hidrelétrica de Tijuco Alto, que alagaria aqui em São Paulo uma terra quilombola… Nós dissemos “não”. Era exatamente o empreendimento do Antônio Ermírio de Moraes, e que nenhum governo teve coragem de dizer não, mas nós dissemos. A hidrelétrica de Belo Monte nós dissemos não e reencaminhamos para estudos. Tudo isso tinha impactos políticos muito potentes. As hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau tinham um cronograma para entregar a licença, e nós tomamos todas as medidas que eram necessárias para que os impactos fossem reduzidos. A licença foi dada com 42 condicionantes. Infelizmente, eu saí do ministério em seguida. Essas condicionantes não foram observadas. Era para ter três barramentos. Foi reduzido a um. Era para ter duas eclusas e foram negadas. Para que as eclusas? Deveria ser para destruir floresta e plantar soja. Nós fizemos um licenciamento que mexeu mundos e fundos para diminuir ao máximo os impactos ambientais. Teria impacto, mas com certeza não seriam os impactos que estão colocados. Portanto, eu me responsabilizo pelo projeto como ele foi licenciado e não pela forma como ele foi mudado. Eu lido com a clareza de que foram feitos todos os esforços para que fosse um empreendimento correto, com toda a pressão interna do governo, com toda a pressão da mídia, com toda a pressão da classe empresarial e do estado de Rondônia… Nós fizemos diante do que os técnicos achavam. E no meu governo não era uma licença política, era uma licença técnica. E, exatamente, por ser uma licença técnica, você não vai ter nenhum servidor do Ibama dizendo que a ministra pressionou para que a licença fosse dada. Isso também aconteceu em relação ao rio São Francisco. A do São Francisco foi uma licença dada com muitas cautelas. Era uma retirada de 126 metros cúbicos de água por segundo. Nós reduzimos isso para 46 metros cúbicos por segundo. As pessoas não têm ideia do tamanho que é fazer esses reposicionamentos e encarar todos os questionamentos. Todas as ações no Ministério Público caíram porque a licença estava muito consistente. A licença foi dada com um programa de revitalização do São Francisco. Infelizmente tudo o que era para ser feito para a revitalização foi abandonado depois da minha saída. Eu não posso me responsabilizar por aquilo que infelizmente eu não tinha como continuar. Mas talvez por isso eu tenha saído, porque eu só conseguiria ficar se fosse para fazer como deveria ser feito.
A hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira, no estado de Rondônia, teve um impacto desastroso na floresta e em seus povos. Foto: PAC/Divulgação/2016
Você é a política de religião evangélica, alinhada à esquerda ou centro-esquerda, mais importante do Brasil. Sabemos que evangélico não é um genérico. Mas esse público, majoritariamente, apoia Bolsonaro. Você tem mais dificuldade de diálogo com os evangélicos do que pastores como Silas Malafaia e outros políticos representantes do evangelismo de mercado. Por quê?
Você colocou, já de antemão, que não existe uma condição homogênea do evangélico. Há inúmeras denominações e, mesmo nas que têm uma prevalência majoritária conservadora, há pessoas que não compactuam necessariamente com essas formas reacionárias e às vezes fundamentalistas. Eu sou cristã evangélica da Assembleia de Deus. E não adianta eles dizerem que eu não sou uma evangélica de verdade, porque esse julgamento não cabe a ninguém, cabe única e exclusivamente a Deus. E eu também não digo que eles são falsos crentes. Só posso recorrer aos ensinamentos da fé que eu professo, que é Jesus. O que ele disse: “Você conhece a árvore pelo fruto que ela dá”. Eu não consigo ver numa árvore que quer armar uma população inteira um bom fruto. Não consigo perceber um bom fruto na indiferença com o sofrimento, com a morte, em tripudiar do luto e da dor de quase 700 mil pessoas que perderam seus entes queridos. O que Jesus fez quando Lázaro morreu? Foi lá na casa de Maria, de Marta, e chorou, e olha que ele já sabia que ia ressuscitar Lázaro. Mas a morte é algo tão profundo, tão terrível, que ele chorou. Um Deus homem que chora diante da morte e que vai visitar duas irmãs, numa sociedade que não valorizava as mulheres… Que quando perdem o irmão se transformam em um nada. Não tinham marido, não tinham ninguém para protegê-las. Não consigo, olhando para esse fruto de Jesus que respeita e se solidariza com as mulheres, ver o fruto de desrespeito às mulheres. Não consigo ver comparação com o fruto que traz preconceito, a quem quer que seja, em função da cor, da etnia ou da orientação sexual, com o fruto de Jesus. Não consigo ver como um bom fruto você querer impor a sua fé, quando o próprio texto bíblico diz: “Não é por força nem por violência, é pelo meu espírito”.
Mas por que, então, mesmo sendo esse mau fruto, as pesquisas mostram que a maioria dos evangélicos vota em Bolsonaro?
É preciso ver também o preconceito do evangélico com o não evangélico, e do não evangélico com o evangélico. Vamos aprender a conversar com esse outro. O sagrado tem um lugar na psiquê, na transcendência humana. [Mesmo que] outros não recorram a essa ideia do sagrado, ela vai se impor de alguma forma, na arte, na filosofia. Aprender a conversar com esse outro diferente talvez seja um aprendizado que a gente tenha daqui para frente. [Nas eleições de] 2010 e 2014, uma grande parte das pessoas que estão votando no Bolsonaro votou em mim. E olha que eu não fazia das igrejas um palanque e nem dos palanques um púlpito. E também não caía de chofre na expectativa que alguns tinham de eu assumir uma agenda reacionária, conservadora e fundamentalista. A demanda de participação cidadã de um segmento que é muito mais do que 40 ou 50 milhões, que pode chegar a 80, 70 milhões de pessoas, é legítima, são cidadãos. Do mesmo jeito que é legítimo qualquer outro ter a sua participação política e não ser vetado.
O que aconteceu para essa população mudar a direção do seu voto?
Acho que naquele momento [em que a demanda ficou clara], a gente poderia ter feito uma coisa muito boa no campo democrático com essa força, e ela estaria honrando o nosso legado do Estado laico, que é uma contribuição da Reforma Protestante. É uma contradição os evangélicos estarem nessa visão, porque foi a Reforma Protestante que ajudou a fazer, decisivamente, a separação Estado-Igreja. [O Estado laico] é uma forma de não fazer acepção de pessoas, inclusive para aqueles que fizeram as grandes diásporas religiosas conseguirem a liberdade de poder exercitar a sua fé sem serem perseguidos ou lançados nas fogueiras. A sociedade brasileira deu três grandes sinais de que queria mudanças no campo democrático, de que já estava vivendo um fastio muito grande da polarização PT – PSDB. O Edgar Morin [pensador francês] disse que, no começo, a mudança é apenas um pequeno desvio, e a gente tem que ficar atento para ver qual é o desvio que a gente vai ajudar a prosperar, ou que a gente não quer que prospere.
E quais foram os três sinais dados pela sociedade brasileira?
Em 2010, eu e Guilherme (Leal) [empresário brasileiro, um dos donos da Natura], saímos com uma candidatura defendendo a sustentabilidade. Nós tivemos 19 milhões e 600 mil votos. Em 2014, não vamos nos esquecer que eu estava com 26% das intenções de voto, em primeiro lugar, ganhando de todos os candidatos no segundo turno. A Rede [partido que Marina criou] não foi legalizada por uma ação política. Eu fui então apoiar o Eduardo Campos [PSB, tornando-se vice da chapa], aconteceu aquela tragédia [morte dele em um acidente aéreo] e cheguei a 38% das intenções de voto. [Entre essas duas campanhas] tivemos as manifestações de 2013, que não aconteceram através de uma figura ou de um processo político institucional, mas sim era a própria sociedade se colocando como sujeito político na cena política, dizendo: “Nós queremos mudança”. Foram três grandes sinais. É como se a gente tivesse algo recalcado lá embaixo, muito ruim. E aí você tem um primeiro sinal. Ninguém dá bola. Um segundo sinal. Ninguém dá bola. Um terceiro… Ninguém dá bola. Ficou a última camada. E aí veio o que há de pior do recalque brasileiro. A visão, a raiz escravocrata, patriarcal, a raiz reacionária. E, em 2018, acontece o que aconteceu. A maioria de nós subestimou o Bolsonaro. Só que agora nós não temos como subestimar duas vezes. Se não formos sábios para aprender com o nosso erro, de não ter lido adequadamente a sociedade brasileira, não temos o direito de não ter aprendido com a eleição do Bolsonaro em 2018. Não temos o direito de ser estúpidos.
O Lula faz parte de toda essa trajetória. Depois de 14 anos, em que você falou menos com ele, qual Lula você encontrou?
Olha… Seria prepotente da minha parte, em duas horas de conversa, fazer essa leitura. Mas o que eu posso dizer é do que eu estou sentindo, e não apenas na figura individual do Lula. Quando você é uma figura política com uma força gravitacional muito grande, até mesmo as suas mudanças individuais estarão dentro de um contexto. Ser aquele que tem as melhores e maiores condições de ajudar a derrotar o Bolsonaro é algo muito grande, transformador de uma pessoa. Eu sinto que ele está fazendo muitas inflexões, e que eu espero que elas se firmem. Temos inflexões que precisam de mediações, porque você lida e maneja muitos interesses. É legítimo que as pessoas queiram terra para plantar, mas a nossa Constituição e a ciência estão dizendo que não dá mais para continuar destruindo a Amazônia. Se alguém quer passar por cima desse interesse de preservação da vida, tem alguma coisa que não pode ser aceita. Como diz o [cantor e compositor] Gilberto Gil: “O povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe”. E aquilo que o povo quer e não sabe são os políticos que têm que bancar. Quando eu fui ministra, quando eu era senadora, fiquei 4 anos sem poder andar na metade do meu estado, o Acre. Se eu fosse, seria linchada, por causa da estrada que eu dizia que não podia ser feita sem o estudo de impacto ambiental, sem demarcar a terra dos indígenas. E aí, o que aconteceu? Uma vez, só porque disseram que eu estava dentro de um avião, ia chegar em Cruzeiro do Sul, as pessoas queimaram pneus, botaram trator na pista. O avião não desceu. Uma menina quase foi linchada porque tinha o nome de Marina. A rádio Verdes Florestas, que era a rádio católica, tinha um senhor chamado Brás. Ele ligou para mim, em Brasília, para que eu falasse ao vivo no telefone dando a minha versão. O bispo teve que intervir, queriam linchar o Brás. Eu falo isso e tenho vontade de chorar [a voz embarga]. Essa loucura coletiva da destruição, da pulsão de morte, está em atividade há muito tempo. Foi ela que matou o Chico Mendes, que matou a irmã Dorothy [Stang]. Eu fico emocionada, desculpa.
O líder seringueiro e ativista ambiental Chico Mendes, assassinado em 1988 por sua luta pela floresta, coleta látex no município de Xapuri, no estado do Acre. Foto: Homero Sérgio/Folhapress
Atuando na Amazônia há tantos anos, é bastante claro que não há nenhum outro político no Brasil, com a sua dimensão, com essa base e essa trajetória, de seringueira, ribeirinha, do povo-floresta. Ao mesmo tempo, me parece que a sua base com as populações ribeirinhas, indígenas, com os camponeses, agroecológicas, com os povos-floresta foi fragilizada ou em alguns casos rompida. Eles parecem ter menos identificação com você do que se poderia supor. Faz sentido isso para você, e, caso sim, por que isso teria acontecido?
Não acho que a densidade eleitoral seja um indicativo de vínculo ou de rompimento. Para mim, as minhas bases e a minha relação com o povo da floresta são orgânicas. Mas não necessariamente eu tenho condições objetivas de traduzir isso em voto. Assim como as bases da Soninha [Guajajara] com o povo indígena são orgânicas, altamente verdadeiras, mas infelizmente a realidade que nós enfrentamos, e a disputa que é feita, não nos permite isso. Fui vereadora, deputada, duas vezes senadora pelo Acre, para trabalhar pelo Brasil e pelo mundo, e eu não me preocupei em manter bases eleitorais. Eu me preocupei em usar a oportunidade que tive para fazer tudo que eu podia [Marina fica emocionada], de manhã, de tarde, de noite. Para reduzir o desmatamento da Amazônia, para dobrar as reservas extrativistas, para inibir 35 mil propriedades de grilagem [roubo de terras públicas], para aplicar 4 bilhões em multas, para colocar 725 pessoas na cadeia, para criar 25 milhões de hectares de unidades de conservação, para fazer o primeiro embate institucional com 480 policiais federais no estado do Mato Grosso. E ficar ali durante 5 anos, 5 meses e 13 dias tendo visitado o meu estado, que era a minha base eleitoral, apenas no Natal, para ver minha família. Isso não é um rompimento, é um compromisso [a voz de Marina quebra]. Entre preservar minha base eleitoral e fazer o que era necessário, eu preferi fazer o necessário, porque foi isso que eu aprendi com Chico Mendes, que também nunca foi eleito. Nós queríamos muito que ele fosse eleito deputado estadual, mas o povo não gostava dele. Assim como também a imprensa não falava dele [Marina chora]… E a gente sobreviveu. E às vezes a gente tem que deixar a família, tem que deixar os parentes, para fazer o que é necessário. É profundamente doloroso isso, mas às vezes é preciso fazer. A Soninha [Guajajara] poderia ter sido eleita pelo Maranhão, mas foi São Paulo que a elegeu. Eu tive dois mandatos pelo Acre para trabalhar pelo Brasil, por todos esses resultados. Na luta que eu faço, eu poderia ser candidata por qualquer estado. Mas eu sinto as minhas bases organicamente preservadas, no trabalho que foi feito tanto no legislativo quanto no ministério. Terminado o mandato, é muito difícil, para uma pessoa que renunciou à aposentadoria de senadora, que tem um partido pequeno que não tem fundo partidário, estar presente, como fazem os grandes partidos. Eu sei que as pessoas sentem a minha falta. Elas gostariam que eu estivesse, mas eu trabalho. Eu sou professora associada da Fundação Dom Cabral, eu tenho que dar palestras para sobreviver, para pagar o meu aluguel.
Também me chama a atenção nesta entrevista, já que SUMAÚMA tem como uma de suas missões valorizar os intelectuais da floresta, da natureza, que você tenha citado intelectuais europeus totalmente respeitáveis, mas nenhum intelectual da floresta. Queria escutar você sobre isso.
Em relação aos autores, eu diria que você tem razão. É que quando algo parece tão orgânico em você, às vezes você não cita, e é uma injustiça, porque eu me sinto inteiramente conectada com Ailton Krenak. Eu me sinto, e é como se isso já estivesse aqui. É como se estivesse aqui [aponta para seu corpo]. Então, eu falo do que está fora [emociona-se]. E eu procuro expressar aquilo que está dentro. Mas você agora me chamou a atenção. Talvez eu tenha que nomear o que está dentro. E o nome disso que está dentro se chama Ailton Krenak, se chama Davi [Kopenawa] Yanomami, se chama Joênia Wapichana, se chama Soninha Guajajara, se chama Chico Mendes, se chama… meu tio xamã, Pedro Mendes, se chama minha avó parteira, se chama meu avô, meu pai seringueiro, se chama dona Raimunda, quebradeira de coco. E eu posso nomear, sim [a voz se anima], e acho que a partir de agora eu vou nomear. Mas é que isso está aqui em mim. Talvez da mesma forma que o Ailton [Krenak] não precisa falar da Marina. E eu vejo até que ele fala pouco, porque também já está nele. A gente fez a Aliança dos Povos da Floresta. Eu era muito jovem e ele também, mas um pouco mais maduro do que eu. Estávamos todos ali. E talvez eu, por ser uma pessoa política que tem que dialogar com muitas pessoas, até para que isso possa se expressar também em voto, tenho que falar colocando isso, porque o Edgar Morin foi muito importante na minha vida. A ideia do pensamento complexo foi que deu um lugar para as coisas que vem do meu tio, para as coisas que vem da minha avó parteira, que vem do Ailton Krenak, nesse mundo letrado, que não entende o saber narrativo, que não entende a ciência do saber narrativo, porque só dialoga com os postulados do conhecimento denotativo, do certo, do errado. Eu peço desculpas pela emoção, porque infelizmente a gente vive no mundo, e eu, como fui quase freira e católica, e hoje cristã evangélica, o nosso ethos civilizatório vem de uma cultura sacrificial. E eu me lembro que as pessoas me cobravam: “Você não visita a sua base, você não vai conseguir se reeleger”. E aí eu disse: não vou mais ser candidata. E só voltei agora porque achei que era a única coisa que eu podia fazer neste momento. Aos 64 anos, tendo sido candidata desde 1986, quando eu saí pela primeira vez para tentar me eleger como deputada federal pela Constituinte, para botar todas aquelas coisas que eu acreditava que era melhor para a Amazônia, para os povos indígenas. Fui a quinta mais votada, mas não me elegi. Desta vez, com meu neto, eu pensei: eu não vou mais ser candidata. Eu vou continuar ajudando do meu jeito. Tentando escrever meu livro, que eu nunca consigo tempo para escrever. Mas, em legítima defesa da democracia, da Amazônia, dos povos indígenas, mesmo aqueles que acham que eu não estou mais lá, é em nome deles que eu saí [candidata] de novo.
A raiz escravocrata, que foi cutucada, ela compete com outra, com essa que você trouxe, do Ailton Krenak, da sua avó parteira, do povo-floresta. A gente vai conseguir regar essa outra raiz, fortalecê-la, e fazer de uma vez por todas ela se sobrepor?
Olha, nem sei se é se sobrepor… Como é que a gente processa isso, essa dor escravocrata, ela está aqui, ela é uma cicatriz. Mas ela precisa sarar. A gente não precisa apagar a cicatriz, ela vai ficar aqui. A cicatriz é como um umbigo, sabe? Ele está ali para nos mostrar que a gente já precisou de uma placenta. Mas ela tem que ser ressignificada. E talvez o lugar onde isso seja mais difícil é em relação ao povo preto mesmo, ao povo indígena. De alguma forma, eu tenho as duas coisas. Eu sou uma mulher preta, uma mulher com sangue indígena, mas também com sangue português. E durante muito tempo as pessoas me diziam: “Mas você não é do movimento negro?”. Hoje não, hoje sinto que isso é tranquilo. Teve uma mudança nisso. “Porque você só fala do meio ambiente…” Mas eu sou uma mulher preta, que nasceu na floresta amazônica, que aprendeu tudo com os indígenas, dos mistérios às belezas da mata, com esse meu tio que, desde os 12 anos, foi morar com os indígenas do Alto Rio Madeira. E esse meu tio é uma pessoa muito importante na minha vida. Com ele, eu aprendi a fazer artesanato, fazer um pouco de muita coisa. Não tinha como ser diferente. Mas eu não considero que uma pessoa preta não é ambientalista porque ela não está fazendo o que eu estou fazendo. Assim como ninguém deve considerar que eu não sou uma pessoa preta porque eu lido com agenda ambiental. E que bom que a gente está trabalhando agora muitas categorias do racismo ambiental. Tem muito a ver com isso, e, talvez, eu sempre me coloque nesse lugar. Tem uma hora em que você é arco. Tem uma outra em que você é flecha. E você tem que intercalar essas posições. As coisas como eu faço, como o Ailton Krenak faz, como o Davi Yanomami faz, como outras pessoas fazem, para mim elas não são complementares nem excludentes, elas são suplementares. E cada uma está fazendo aquilo que lhe é possível fazer. Quando é suplementar são dois reais diferentes, que se interpelam, que se conversam, mesmo que seja para aprofundar as diferenças e cada um ir na sua respectiva direção. A gente é suplementar. Agora, a lógica bolsonarista, negacionista, ela é excludente, ela é exclusivista, ela quer eliminar, ela quer que a gente não exista. E aí não tem conversa.