Sentimos nos ossos a exaustão da luta cujo fim não enxergamos no horizonte. O ano de 2023 foi, sob muitos aspectos, mais difícil do que qualquer outro. Nenhum de nós lembra de tantos eventos extremos nem de ondas de calor tão intensas – nove até agora no Brasil. É duro dar notícias preocupantes, compartilhar pesquisas alarmantes, revelar informações assustadoras – mas é necessário. O compromisso de SUMAÚMA é com os fatos, é com os povos humanos e mais-que-humanos na linha de frente dessa guerra movida contra a natureza, é com as crianças que já nasceram e as que ainda nascerão. É com a vida, a nossa e a dos outros seres. Esse compromisso profundo com a restauração da verdade nos obriga a dizer que este ano termina mais complicado do que começou.
Para quem tem recesso no Natal, pode ser um espaço usado para refletir sobre seu papel no cenário que se desenha. Esse tempo é infelizmente um privilégio para poucos, em parte porque muitos estão submetidos a trabalhos precarizados, com pouco ou nenhum acesso a direitos no mundo uberizado. Já nos enclaves de natureza, os defensores da floresta e de outros biomas precisam melhorar suas frágeis proteções ou deixar o território porque é esse o período de maior risco a suas vidas – por conta do recesso das organizações socioambientais e do sistema de plantões dos órgãos de proteção. Muitos passam as “festas” exilados dentro do próprio país. Outros já estão exilados há anos, sem perspectiva de retorno à terra de onde suas raízes foram brutalmente arrancadas.
Um ano atrás, os brasileiros tinham cauteloso otimismo pelo fim do governo do extremista de direita Jair Bolsonaro, responsável por ampliar gravemente a destruição da Amazônia, do Cerrado e de outros biomas, agente ativo nas mais de 700 mil mortes por covid-19 ocorridas no país, e gestor competente da produção do ódio. Não sabíamos que em alguns dias, em 8 de janeiro, viveríamos uma tentativa de golpe de Estado. Nossa esfarrapada democracia, que pouco alcança os mais pobres, os negros e os Indígenas – e nem cogita proteger os direitos das outras espécies –, sobreviveu. Mas submetida ao Congresso mais predatório desde a redemocratização do Brasil, dominado pelos interesses do latifúndio e das corporações nacionais e transnacionais de mineração, agrotóxicos, carne, soja e ultraprocessados e, mais recentemente, do mercado de carbono – a nova corrida colonizatória na Amazônia, com ritmo frequentemente marcado pela tentativa de greenwashing.
Eleito por uma frente ampla que faz jus ao nome, por uma diferença muito pequena de votos, Lula assumiu seu terceiro mandato com o menor cacife de sua trajetória no poder, o que o deixa com estreita possibilidade de ação. Mais uma vez, em nome da “governabilidade”, o projeto de centro-esquerda de Lula e do PT vai ficando menos de esquerda e, em alguns casos, menos de centro. Como estamos apenas no primeiro ano, período em que os governantes costumam ter mais amplitude de ação porque acabaram de ser respaldados pelas urnas, o prognóstico para 2024, um ano de desafiadoras eleições municipais, não é bom – e, ao que tudo indica, haverá mais recuos em temas fundamentais.
Isso sem contar que terminamos o ano, num governo democrático, com menos mulheres no Supremo Tribunal Federal do que quando começamos – e sem nenhuma pessoa negra ligada à luta pelos direitos da igualdade racial. Lula escolheu perder duas oportunidades históricas de aproximar a Corte máxima do conjunto da população brasileira, composta por maioria negra e feminina. A falta de representatividade tem impactos cotidianos tanto na percepção de justiça quanto nas decisões que atingem a vida do conjunto da população. Também o ministério de Lula termina mais masculino do que começou – e com pelo menos um ministro votando a favor do projeto genocida chamado “marco temporal” no Congresso – o que é, no mínimo, brutal.
A COP-28 é o resumo de quanto os tempos são dramáticos. Aponta também quanto estamos adoecidos e, de certo modo, delirantes. Só uma investigação rigorosa no campo da saúde mental poderia explicar como parte significativa de pessoas aparentemente lúcidas e bem informadas pode ter considerado a menção aos combustíveis fósseis no Balanço Global do Acordo de Paris como uma vitória, ainda que parcial. Levou quase 30 anos para que finalmente entrasse no texto a singela convocação da “transição para longe dos combustíveis fósseis”. Foram quase três décadas para que petróleo, carvão e gás, os principais responsáveis pela emergência climática que causou morte e destruição sem precedentes neste ano de 2023, fossem nomeados com brandura. E ainda assim citados sem prazos, metas ou recursos para financiar a transição. Tudo convenientemente vago.
É como se sequestradores que ameaçam a tua vida e já destruíram grande parte da tua casa sejam gentilmente informados de que num dia distante vão precisar parar de ameaçar a tua vida e acabar com a tua casa. Enquanto isso, eles seguem não só destruindo, mas em alguns casos ampliando a destruição para compensar o momento longínquo em que terão que parar. Mesmo assim, você respira agradecido porque pelo menos admitiram que fazem mal a você e a sua casa. Essa é a nossa situação.
A realidade é que as humanidades seguem reféns das corporações de combustíveis fósseis, assim como refém de corporações de carne, soja e palma, dos agrotóxicos e dos produtos ultraprocessados. Na COP-28, havia sete lobistas de combustíveis fósseis para cada Indígena. Além dos 2.456 delegados do setor do petróleo, do carvão e do gás, havia 475 da indústria de captura e armazenamento de carbono e mais de 100 do agronegócio. Todos presentes e ativos para minar qualquer avanço. A menção aos combustíveis fósseis precisou ser arrancada com muito esforço, a ponto de forjar a ilusão de que o quase nada é um tipo de vitória.
Realizada no petroestado de Dubai, a COP-28 soou toda ela como delírio. Tanto que Sultan Al Jaber não economizou autoelogios pela “decisão histórica” de mencionar os combustíveis fósseis no texto final. Presidente da cúpula, ele é também chefe da empresa petrolífera estatal dos Emirados Árabes Unidos, a Adnoc, que produziu mais de 3 milhões de barris por dia em 2022, produção que pretende aumentar para 5 milhões em 2027. É possível concordar que se Sultan Al Jaber está feliz com o resultado da COP, então a maior parte da humanidade está condenada a ser infeliz. Mesmo assim, ele foi ovacionado.
O presidente do maior produtor de petróleo do mundo, Joe Biden, não deu as caras na COP e os representantes dos Estados Unidos dedicaram-se a barrar qualquer avanço. Para o financiamento de países pobres, o país financeiramente mais rico do mundo e um dos principais responsáveis pelo abismo climático prometeu 17,5 milhões de dólares. Há atores de Hollywood que ganham mais do que isso em um único filme.
Se o líder democrata não negacionista age assim, o que esperar caso o assumidamente negacionista de extrema direita Donald Trump voltar à presidência nas próximas eleições nos Estados Unidos, como começa a se desenhar? Já o novo presidente da Argentina, Javier Milei, é um negacionista climático declarado. “Todas as políticas que culpam o ser humano pela mudança climática são falsas”, disse ele em outubro. Que parte de uma cidade na província de Buenos Aires tenha sido destruída, um avião arrastado e pelo menos 13 pessoas tenham morrido por causa de uma tempestade no fim de semana passado é mero detalhe.
E então precisamos voltar a Luiz Inácio Lula da Silva. Ao tomar posse como presidente do Brasil, Lula foi festejado como o novo líder ecológico global. Logo no início de sua primeira COP como presidente em terceiro mandato, porém, anunciou sua entrada na Opep+, composta pelos associados da Organização dos Países Exportadores de Petróleo e seus aliados. Diante das críticas mais do que justas, sua justificativa foi a seguinte: “Precisamos convencer os países produtores de petróleo que eles precisam se preparar para o fim dos combustíveis fósseis”. Está mais fácil acreditar em Papai Noel.
Contradição ambulante: Lula iniciou o ano com a promessa de se tornar uma liderança ecológica global e acabou ganhando o troféu ‘Fóssil do Dia’, na COP-28. Foto: EVARISTO SA/AFP
Tudo ainda piorou. Apenas algumas horas depois do final da COP, o governo de Lula fez o que foi batizado de “leilão do fim do mundo”: mais de 600 blocos de petróleo foram colocados em oferta, parte deles na Amazônia, muitos em áreas de grandes conflitos ambientais. O gesto aponta quanto a menção “para longe dos combustíveis fósseis” do documento final foi levada a sério.
Desde o início do governo ficou claro que a política de ampliar a produção de petróleo no Brasil, em especial para exportação, seguiria. Desde o início do governo, a intenção de abrir uma nova frente de exploração na Amazônia só não foi adiante porque Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, tem respeitado as decisões técnicas, baseadas na ciência, da equipe do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Mas o impensável – petróleo e Amazônia na mesma frase, em pleno colapso climático – é a impossibilidade lógica persistente do governo.
Com 60% da maior floresta tropical do planeta em seu território, o Brasil tinha – e ainda tem, se mudar radicalmente sua política energética – as melhores condições para assumir o papel de liderança ecológica global, garantindo um lugar estratégico na produção de energias renováveis. É verdade que Lula enfrenta uma pressão interna feroz a favor dos combustíveis fósseis – e a Petrobras tem servido muito mais aos interesses de seus acionistas do que da população. Mas seria mais fácil se fosse apenas isso.
O fato é que grande parte da esquerda brasileira, assim como da esquerda global, permaneceu cimentada no século 20. Para Lula e para grande parte do PT, o petróleo é sinônimo de dinheiro para promover programas sociais sem fazer mudanças estruturais na imensamente desigual distribuição de renda. Foi assim com as matérias-primas exportadas para a China, ao custo-natureza, que financiaram os programas que levaram à inclusão de milhões de brasileiros na chamada “classe C” ou “nova classe média”, em seu segundo mandato (2007-2010), sem tocar nos lucros astronômicos dos super-ricos.
Sem o petróleo, num momento de caixa apertado, fica muito difícil para Lula repetir a fórmula. Ele e muitos de seus pares parecem ter dificuldade de compreender que não há nenhuma possibilidade de reduzir a desigualdade sem enfrentar a emergência climática. E não há como enfrentar a emergência climática sem parar de produzir e de usar combustíveis fósseis. O aquecimento global é tanto resultado de desigualdades quanto produtor de desigualdades. Sem compreender isso fica muito difícil governar no e para o século 21.
No Brasil, o desmatamento é o maior emissor de gases do efeito estufa responsáveis pelo aquecimento global. No mesmo caminho, como foi apontado em estudo já mencionado aqui, se o bife brasileiro fosse um país, seria um emissor de carbono maior do que o industrializado Japão. Todas as pesquisas são conhecidas, não há dúvida científica sobre nada disso, mas grande parte da esquerda brasileira que tem Lula como seu maior representante continua achando que promover igualdade é garantir aos trabalhadores churrasco e cerveja no domingo e um carrinho na garagem. Vale lembrar que, em plena crise climática, uma das políticas de Lula foi ampliar o acesso aos carros, priorizando o transporte individual movido a combustível fóssil.
Nunca se deve subestimar o papel das subjetividades nas decisões de quem tem poder. As que movem a vida de Lula, um ex-operário de indústrias que tem no sindicalismo do ABC paulista a sua gênese como liderança, parecem estar cobrando um preço alto e poderão fazer com que o Brasil perca a oportunidade histórica de ser a única potência que (ainda) pode ser: uma potência ecológica. E isso principalmente porque povos originários e populações tradicionais estão lutando na linha de frente para manter a Amazônia e outros biomas em pé, com frequência ao custo de suas vidas. E porque ainda temos Marina Silva resistindo no governo. É da sua equipe talvez a única razão para comemorações em 2023: a queda significativa do desmatamento da Amazônia.
A luta é dura, é nossa e é pela vida. Muito obrigada por apoiar SUMAÚMA, mesmo que o respeito aos fatos e a coragem de contá-los tornem nosso jornalismo indigesto em épocas reservadas a festas. Estaremos com vocês em janeiro. Presentes. E como queremos a floresta: em pé.
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Editoras: Viviane Zandonadi (fluxo de edição e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefe)
Direção: Eliane Brum
Vidas barradas: o barco encalhado em Manaus, devido à seca extrema, é a metáfora do futuro barrado pela incapacidade dos líderes globais de abrir mão dos lucros do petróleo. Foto: Michael Dantas/AFP