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Após um ano de ação emergencial, crianças Yanomami ainda sofrem com desnutrição e morrem sem tratamento no território. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Em um domingo de agosto de 2023, sete meses depois de o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ter declarado emergência sanitária, os profissionais de saúde que trabalhavam na região de Awaris, na Terra Indígena Yanomami, viram chegar por uma trilha um homem exausto, faminto, carregando vários cestos de palha feitos pela sua comunidade para oferecer em troca de comida. Ele havia caminhado por um dia inteiro na floresta em busca de socorro. Seus parentes estavam morrendo, doentes. E tinham fome. Muita.

Na aldeia dele, Koraimatiu, e em ao menos outras três ao redor, dezenas de crianças, jovens, adultos e velhos estavam com malária, febre, diarreia, dores na barriga e, entre as mulheres, havia sangramentos, contou. Não tinha médico ou enfermeiro fixo perto, nem rádio para chamar ajuda. Por isso, mesmo fraco, ele caminhou pela floresta, na esperança de que o helicóptero da equipe de resgate estivesse disponível. Cada segundo sem ajuda poderia custar uma vida. Mas o homem tinha a feição resignada de quem já havia feito a peregrinação muitas vezes. E, em todas, escutado desculpas. Muitas.

Naquela tarde, ele ditou aos profissionais de saúde uma lista com 13 de seus parentes mortos nos últimos dois meses, entre adultos e crianças, nas aldeias de Momoipu (4), Silipi (6) e Katanã (3). Na manhã seguinte, fez o caminho de volta. “Quando acordei, ele já não estava”, conta um dos profissionais que acompanharam o caso e se emociona ao lembrar. “Só o que ele tinha era o artesanato dele. Certamente alguém deu alguma coisa, uns 2 quilos de arroz, e ele foi embora com 2 quilos de arroz e fome.” O helicóptero ainda demoraria semanas.

A região de Awaris tem uma das situações mais graves no território. Foi de lá que veio parte das fotos que comoveram o país em janeiro de 2023, quando SUMAÚMA divulgou que 570 crianças Yanomami com menos de 5 anos morreram durante os quatro anos do governo do extremista de direita Jair Bolsonaro (PL) por falta de atendimento básico de saúde. Após a publicação da reportagem, Lula decretou situação de emergência em saúde pública na Terra Indígena. Desde então o governo petista investiu mais de 1 bilhão de reais nas ações emergenciais, sendo 220 milhões de reais para reestruturar o acesso à saúde Yanomami: 122% a mais do que o governo anterior, segundo o Ministério da Saúde. Também mobilizou quase 2 mil profissionais de saúde e ampliou o número de médicos fixos disponíveis na área, de nove para 28, com o Programa Mais Médicos.

Em janeiro de 2023 fotos de Yanomami desnutridos e doentes, publicadas por SUMAÚMA, chocaram o mundo; governo Lula decretou situação de emergência

Algo, porém, não funcionou como deveria. É o que evidenciam depoimentos de pessoas que atuaram na área ouvidas por SUMAÚMA e as estatísticas de 2023 – que ainda estão incompletas, sem os dados de dezembro. Em 2023, primeiro ano do governo Lula e da declaração de emergência sanitária, 308 Yanomami morreram nos primeiros 11 meses – 104 deles tinham menos de 1 ano. Um número próximo aos 343 óbitos do ano de 2022 completo, o último do governo de Jair Bolsonaro.

Os indicadores divulgados pelo governo mostram melhoria em alguns dos índices de saúde no território e a retomada de serviços que estavam fechados por conta da ação garimpeira. Mas demonstram que a explosão de casos de malária não foi solucionada ao longo desse primeiro ano. Segundo o Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Malária, até o fim de novembro foram 26.641 ocorrências na área, que tem pouco mais de 31 mil Indígenas. O número é 70% maior que o de 2022 inteiro (15.665) e maior, inclusive, que o registrado em 2020, até então recorde de casos da doença desde ao menos 2014, com 21.983 infectados.

O governo afirma que essa alta se deve à maior quantidade de testes, feitos por meio de busca ativa, o que não acontecia no governo anterior. Mas dados obtidos por SUMAÚMA via Lei de Acesso à Informação (LAI) comprovam que, enquanto no pico de casos de 2020 a malária matou três crianças Yanomami de até 5 anos, em 2023 foram 15 vítimas fatais nessa faixa etária – um número cinco vezes maior. Em 2022 foram cinco crianças mortas.

A malária é transmitida pela picada de um mosquito que se prolifera em água parada, como as poças provocadas pela extração garimpeira. É uma doença altamente incapacitante, que necessita de medicação contínua e, por isso, de uma equipe de saúde qualificada para atender os pacientes de perto por todo o tempo do tratamento. Além disso, ela pode contribuir para piorar muitos outros indicadores de saúde. Nos corpos debilitados, qualquer outra doença, como um vírus que provoca gripe ou diarreia, pode se tornar letal rapidamente, o que exige socorro imediato.

Em 2023 foram registrados 9.550 casos de doenças diarreicas agudas no território até o começo de outubro, um número que supera os 5.902 de todo o ano anterior. Foram 20.524 registros de síndrome gripal, diante dos 3.203 de 2022. Conforme dados obtidos por SUMAÚMA via Lei de Acesso à Informação, nos primeiros 11 meses do governo Lula, 14 crianças menores de 5 anos morreram por desnutrição (foram 9 em 2022), 30 por pneumonia (56 em 2022) e 9 por diarreia (17 em 2022). Embora tenha havido subnotificação durante os anos do governo Bolsonaro, o que impossibilita uma comparação mais precisa entre 2022 e 2023, é indiscutível que, diante de tamanho investimento neste primeiro ano do governo Lula, era de esperar que os indicadores fossem melhores.

O governo Lula investiu, não há dúvida, em recursos e em número de pessoas, o que demonstra vontade política efetiva de enfrentar o genocídio Yanomami. O que, então, aconteceu? SUMAÚMA ouviu trabalhadores da saúde e lideranças indígenas de diferentes partes do território para entender como o governo gastou 1 bilhão de reais e mobilizou quase 2 mil profissionais de saúde – e, mesmo assim, fracassou. A maioria deles pediu para não ser identificada por temer ser retirada do atendimento aos Yanomami.

Lula e ministros estiveram em janeiro de 2023 em Boa Vista para decretar emergência na área Yanomami; após todo investimento, situação ainda é grave. Foto: Ricardo Stuckert

É unânime nos depoimentos que houve um problema de gestão. E gestão, numa emergência, é a diferença entre a vida e a morte daqueles que estão em risco. É também a gestão que faz a logística, coração da emergência. Depoimentos e dados levantados por SUMAÚMA revelam que o governo não agiu de forma adequada a uma situação emergencial e o território ainda permanece em situação de calamidade. “Foi uma gestão de amadores. Com muitos títulos acadêmicos, mas pouca ou nenhuma experiência de campo”, disse um profissional da saúde. “Acabou sendo um dinheiro de faz de conta, de aparência. Porque o que importa não são quantos coletes a gente consegue colocar no território, mas quantas pessoas de verdade a gente cuida.”

Entre os motivos apontados estão ações descoordenadas montadas às pressas sem o conhecimento da realidade do território; pouca abertura para adotar protocolos bem-sucedidos de organizações não governamentais com vasta experiência em emergências; escassa disponibilidade para escutar e trabalhar em parceria com antropólogos, geógrafos e outros indigenistas que atuam com os Yanomami há décadas, assim como lideranças dos povos afetados; ausência de um trabalho fixo de atenção básica dentro das aldeias; dificuldade de expulsar o garimpo de algumas áreas e de manter longe os criminosos que saíram de outras, com evidente falta de cooperação das Forças Armadas.

Até agora, por exemplo, o governo não agiu para reabrir o polo de saúde de Kayanau, uma comunidade degradada pela presença do garimpo ilegal, onde há relatos de abusos sexuais, prostituição infantil, tráfico de drogas, e a presença de armamentos pesados que impactam a vida e a saúde dos Indígenas, conforme SUMAÚMA mostrou em uma reportagem de fevereiro de 2023. Apenas missões pontuais de saúde foram realizadas no local, mas elas foram interrompidas pelo garimpo – o mesmo aconteceu na região de Xitei, que tem polo, mas os criminosos vêm impedindo as missões.

O Hospital de Surucucu atende Indígenas baleados, vítimas da violência dentro do território. Foto: Antonio Alvarado/Urihi Associação Yanomami/AFP

Quando questionada por profissionais de saúde sobre a ida ao local, a Força Nacional de Segurança responde a eles que não tem como garantir a segurança da equipe. Enquanto o Estado não faz sua obrigação legal de tornar a área segura para a retomada do trabalho, os Yanomami dali continuam a morrer, às sombras das estatísticas, já que não há quem as registre. Outros Polos-Base no território, que também haviam sido fechados ao longo do governo Bolsonaro por ameaças de criminosos, foram reabertos entre março e outubro. Em dois deles, as unidades de saúde estão em áreas de lona improvisadas, construídas com a ajuda dos Indígenas.

Informações de um relatório produzido pela Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) neste mês, obtidas por SUMAÚMA, revelam que três polos reabertos correm o risco de fechar pelo aumento da invasão criminosa nos arredores. Atualmente, por uma questão de segurança, eles já funcionam apenas parcialmente. No documento, a Sesai pedia o apoio da Força Nacional de Segurança Pública.

“A situação tá complicada porque tá continuando a malária. Tá continuando perdendo nossos filhos. Esse mês morreram dois na [aldeia] Õkiola”, afirma Mateus Sanöma, liderança da região de Awaris. Ele ressalta que o maior número de mortes e doenças está nas comunidades onde não há postos de saúde e não há pista de pouso e, por isso, só é possível chegar de helicóptero – uma dificuldade estrutural crônica que ainda não foi resolvida pelo governo. “Continua diarreia nas crianças. Verme tá aumentando também. É muita preocupação, meu povo tá lá sofrendo ainda.”

Lideranças de regiões mais ao centro do território também descrevem que a situação em suas comunidades é grave. “Ainda não melhorou. Continua as doenças, malária, diarreia, pneumonia. Começou parente a morrer muito, novamente. Minha família, meu povo Yanomami, está morrendo até hoje. Estou muito zangado. O Lula dizendo que ia melhorar a nossa saúde e ainda não melhorou. Falta muitas coisas”, diz uma liderança Yanomami do Papiu. “Tá continuando os garimpos, rio poluído de novo, tá muita xawara [doenças e epidemias]. Malária, diarreia, vômito, verminose”, conta outra liderança, do Palimiu.

Garimpo e pistas de pouso clandestinas ainda permanecem em algumas áreas do território Yanomami. Foto: Lalo de Almeida/Folhapress

A malária também contribui para a situação de insegurança alimentar. Ao deixar o corpo fraco, impede que os Yanomami façam roças no tempo certo ou que saiam para caçar. Fragilizados, pais e mães não conseguem comer nem alimentar os filhos. Com a força-tarefa, o governo passou a usar aeronaves para lançar pacotes de cestas básicas nas aldeias, na tentativa de reduzir a fome. Mas a estratégia não garantiu a distribuição aos que mais precisavam dentro de cada comunidade, segundo relatos de dois profissionais de saúde. “Eu vi as cestas chegarem em uma comunidade e ficarem ali, perto do posto de saúde. Quem estava mais distante não recebeu”, conta um deles.

A distribuição também esbarrou na ineficiência – deliberada ou não – das Forças Armadas. O órgão de defesa do governo brasileiro, que afirma ter entregue 36,6 mil cestas de alimentos nesse período – o que, na média, não dá nem duas unidades para cada um dos 31 mil habitantes do território durante o ano todo –, não forneceu todas as horas de voo necessárias para que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) distribuísse os alimentos comprados, prejudicando a chegada da comida às aldeias. “O governo mandou as cestas básicas, mas parou já está com dois meses. Nossas roças tão pequenas ainda. Continua aquela desnutrição”, relata Mateus Sanöma. Enquanto na floresta os Indígenas passam fome, existem, atualmente, 28 mil cestas básicas esperando a distribuição em Boa Vista, segundo reportagem do programa Fantástico, da TV Globo.

A mesma estratégia de atirar pacotes de comida do céu – condição que muitas vezes faz com que eles explodam ao se chocar com o solo – foi adotada em várias áreas do território, inclusive nas mais estruturadas, como o polo de Surucucu, que virou o cartão-postal do trabalho do governo por concentrar um hospital de referência. A pista de pouso de Surucucu estava praticamente destruída em janeiro de 2023 e isso impedia os aviões maiores do Exército, os que levam as cestas básicas, de descer. A reforma da pista seria feita pelo Exército e, em fevereiro do ano passado, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, afirmou que havia o compromisso do início da obra. Até hoje, um ano depois, a pista recebeu apenas reparos e ainda não está adequada para aeronaves maiores.

Pistas não foram arrumadas e aviões maiores do Exército não conseguem descer com alimentos. Lançados no ar, pacotes se rompem. Fotos: Fernando Frazão/Agência Brasil e Wanderson Gontijo/SVSA/MS

Começou mal – e seguiu… mal

“Enxugar gelo” é uma expressão usada por mais de um profissional de saúde ao definir o trabalho realizado sob o comando do Centro de Operações de Emergências (COE), o grande cérebro da operação na TI Yanomami. Com experiência de décadas em atendimentos de emergência, um deles ficou horrorizado quando, um mês depois de o centro ser formado, participou de uma reunião interna e se deparou com uma enorme desorganização. Não havia sequer um mapeamento da real situação de emergência que precisava ser atendida, algo que nessas situações precisa ser feito em até 72 horas. “Era como se todo mundo fosse principiante, mas com a autoestima exacerbada”, diz. “Não tinha ancoramento científico, não tinha um ancoramento da prática, mesmo, do cotidiano. Isso, pra mim, é grave. Como que eu acho que isso poderia ter sido resolvido? Colocando pessoas com experiência de campo, com experiência em emergência. Não duas ou três experiências, mas muitas. E essas pessoas existem. Não só existem, como foram escanteadas. Todas as pessoas que alertaram para os erros que estavam sendo cometidos, que bateram de frente, foram escanteadas”, afirma.

Quem sentava na cabeceira da mesa de decisões do COE até julho do ano passado era Ana Lúcia Pontes, uma profissional acadêmica exemplar que veio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), um centro de excelência em pesquisa com uma longa ficha de serviços prestados ao público na área da saúde. Apesar de o tema do doutorado de Ana Lúcia ser sobre a Política de Saúde Indígena e ela ser ligada ao grupo de pesquisa “Saúde, Epidemiologia e Antropologia dos Povos Indígenas”, seus críticos alegam que ela não tinha experiência consolidada nem de atendimento direto às populações indígenas nem em situações de emergência.

O COE funciona em uma sala em Boa Vista, de onde coordena os atendimentos no território. Fotos: Ministério da Saúde e Fernando Frazão/Agência Brasil

“Geralmente, numa urgência, emergência, o tomador de decisão é a pessoa com maior número de experiências em campo. Só que não era esse o caso na coordenação do COE”, afirma outro profissional de saúde. “Então ali já começava um erro bem grave: você escolher um pesquisador ou alguém de academia para um lugar de tomador de decisão numa urgência. Por que isso é grave? Porque você tem pouco tempo. Se você quiser realmente salvar pessoas e fazer a diferença, você precisará saber articular logística, que é o coração de uma estrutura humanitária. É aquela pessoa que vai tomar as decisões de qual o perfil mais adequado para aquela tipologia de desastre, e a partir daí é que se desenvolvem os outros cargos”, ressalta. “Mas, em vez de escolher o logístico, o administrador, pessoas com experiência em desastres ou em emergências em saúde pública, eles escolheram outros pesquisadores. Foi uma gestão de amadores, mas amadores com muitos títulos acadêmicos, que não admitiam ser contestados.”

Procurada por SUMAÚMA, Ana Lúcia Pontes afirmou que desde o início de sua trajetória trabalhou com comunidades indígenas e era a pessoa de referência na Fiocruz no contexto de saúde indígena na pandemia. Também trabalhou na construção e articulação do plano emergencial da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Entrei [no comando do COE] porque fui uma referência técnica da Apib nos últimos anos. E por conta dessa confiança dos movimentos indígenas é que fui chamada”, diz. “Qual é a pessoa ideal? Não vai existir essa pessoa com todas as experiências necessárias, o que fizemos foi articular áreas técnicas do Ministério da Saúde e instituições, como Fiocruz e Opas [Organização Pan-Americana da Saúde], com experiências diversas e em emergências em saúde pública.”

Ela afirma que existiam no COE, desde o início, pessoas que atuavam em campo nas áreas de atendimento necessárias, como a malária. E cita a presença do médico Marcos Antonio Pellegrini, que atuou na região de Surucucu nas décadas de 1980 e 1990 e hoje está à frente do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Yanomami. A coordenadora do COE entre janeiro e julho de 2023 também diz que, desde o início, ligou para todas as entidades que atuam na região e lideranças para que participassem do trabalho. Ela afirma que a solução para a situação passa por enfrentar dificuldades sistêmicas de um serviço de saúde desestruturado há anos.

Na visão das pessoas escutadas por SUMAÚMA, porém, a falta de avaliação correta da situação e de profissionais que conheciam o trabalho de emergência e a Terra Indígena teria levado a decisões equivocadas, não considerando as especificidades do contexto Yanomami, que exige conhecimentos culturais, sociossanitários e geográficos complexos.

“Uma emergência é feita dos detalhes. E por isso que só vão os especialistas numa emergência, porque você tem que entender muito de determinado assunto para conseguir ser rápido, preciso. Ser muito cirúrgico no que vai fazer. Quando alguém não tem experiência com emergência, a pessoa utiliza a métrica que ela tem na vida dela, de rotina. Isso não serve para uma emergência. Por isso, o maior equívoco inicial que eles tiveram foi enviar para uma emergência de saúde pública pessoas que só tinham trabalhado com rotina. A forma de trabalhar deles continuava sendo a da rotina”, analisa o profissional. “Sem ter um COE [eficiente], não adiantava mandar centenas de milhares de trabalhadores, porque é enxugar gelo.”

No começo de fevereiro, equipes da Força Nacional do SUS, profissionais de saúde voluntários do país inteiro, foram enviadas ao território Yanomami. Eles chegavam a Boa Vista, permaneciam em alojamentos com várias camas e depois eram enviados para a área indígena. Faziam testes de covid-19, mas não havia quarentena. Como eram enviados para diversas partes do território, corriam o risco de positivar em campo e espalhar a doença para uma população já muito fragilizada. Vários voltaram do trabalho do território com covid-19, mostrando que a contaminação pode ter acontecido. Além disso, profissionais ouvidos pela reportagem afirmam que muitos não tinham experiência alguma nas áreas necessárias de atendimento. Também não entendiam da realidade Yanomami. Eram preparados durante um ou dois dias, no total. Sua participação durava cerca de 15 dias – desde a saída de seus lugares de origem até a volta para casa. Às vezes havia demora nos voos, e houve grupos que ficaram apenas uma semana em campo.

Os profissionais também foram enviados para alguns lugares sem que houvesse avaliação prévia de segurança. “Trabalhamos sob muita pressão. Todo mundo ficou abalado”, relatou um trabalhador que foi enviado a um polo logo no início. Em alguns casos, a equipe de coordenação passava informações incorretas: dizia que um local tinha malária, mas não tinha. Ou dizia que um local não tinha malária, mas tinha. Guiados pela informação inicial, os agentes entravam sem testes nem medicamentos suficientes para combater a doença onde era preciso. E voltavam com os medicamentos e testes de lugares onde a malária não existia.

Vida e morte de um hospital

“Nós já sabíamos dessa crise fazia quase dois anos”, conta Ricardo Affonso Ferreira, presidente e fundador da ONG Expedicionários da Saúde (EDS). O médico de fala firme e direta gerencia uma instituição que montou por seis meses um hospital de campanha após o terremoto de 2010 no Haiti, participou de especializações em catástrofes em Genebra e Oslo, instalou 260 enfermarias de campanha em comunidades indígenas durante a pandemia de covid-19 e já promoveu inúmeros mutirões de cirurgia em áreas indígenas brasileiras. Durante a inércia criminosa da gestão Bolsonaro na TI Yanomami, a EDS fez três expedições ao território em 2022 e atuou num esquema quase de guerrilha para tentar salvar as vidas ignoradas pelo governo.

A ONG Expedicionários da Saúde reformou o atendimento em Surucucu. Um quadriciclo levava pacientes até a pista de pouso. Fotos: Marcelo Moraes e acervo de imagens da EDS

“Mandamos infectologistas e pediatras para cuidar de tudo que estava acontecendo, da fome, da malária, pois estava muito difícil a administração anterior do Dsei [Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami]”, relembra. Para fazer com que os remédios comprados pela instituição chegassem às aldeias onde eram necessários e não ficassem perdidos na administração burocrática em Boa Vista, a EDS os entregava diretamente aos médicos que iam para as comunidades. “A gente começou a montar mochilas especiais de salvamento e dava aos profissionais de área”, conta Marcia Abdala, diretora-geral da instituição. A organização distribuiu também geradores, painéis solares e levou médicos de aldeia em aldeia prestando atendimento. Naquele momento de crise, a ONG foi uma das poucas ajudas efetivas aos Yanomami, diante de um quadro agudo de desassistência.

Não foi surpresa, portanto, que eles tivessem sido procurados pelo COE logo no início da implementação da força-tarefa, para que os funcionários recém-enviados pelo governo Lula pudessem entender as características do trabalho no território. A EDS ofereceu fazer o centro de emergência no Surucucu, para trabalhar como já havia feito em outros lugares, usando a experiência acumulada em anos. “Mas não foi aceito”, conta Ricardo. “Tínhamos um centro cirúrgico, estávamos acostumados a trabalhar na área. A primeira expedição cirúrgica que fizemos no Surucucu foi há dez anos. A gente conhecia toda a região, as lideranças”, diz Marcia.

A justificativa dada pelo COE, afirmam eles, era que seria uma ação de governo, e as Forças Armadas montariam um hospital de campanha no Surucucu, além de outro dentro da Casa de Saúde Indígena (Casai). A unidade é um local de apoio em Boa Vista para onde os Yanomami são levados depois de deixarem o hospital na capital até a recuperação completa. Mas isso na teoria. Na prática, com frequência eles acabam ficando por meses depois de terem alta, porque não há voos de volta para suas aldeias. Nessa longa espera, contaminam-se com outras doenças ou sofrem até violência sexual, no caso das mulheres. Foi lá que esteve o presidente Lula em janeiro de 2023. Depois da visita, ele deixou o local horrorizado com a superlotação: mais de 700 Indígenas em um espaço com capacidade para menos da metade disso. Hoje, ainda há mais pessoas do que o lugar comportaria com alguma dignidade.

Passaram-se 15 dias, entretanto, até que a EDS fosse procurada outra vez. Com apenas o hospital de campanha da Casai em funcionamento, o governo agora pedia ajuda. Em 12 de fevereiro de 2023, a equipe de logística da EDS estava em Surucucu para verificar as instalações de uma enfermaria que eles mesmos haviam reformado dez anos antes, com o apoio da Funai. “Chegamos lá e não tinha água, esgoto, alojamento, cozinha ou banheiro. O lugar dos pacientes estava um nojo, tudo estava abandonado, destruído”, relembram. Sem o mínimo para manter qualquer equipe, seria impossível montar o hospital. Por isso, a EDS iniciou a reforma da estrutura. “No início pedimos apoio do Exército, da Força Aérea, porque tínhamos que levar materiais, pedra, cimento, madeira. Mas a gente não conseguiu. A única que nos ajudou logo no início foi a equipe do IBGE que estava fazendo o censo, que nos encaixou nos voos quando havia espaço, até que o COE se organizasse para fretar uma aeronave e nos ajudasse a levar o resto do material para lá, uns 45 dias depois”, diz Marcia.

No fim de março, a área do polo já estava adequada. Então foi possível montar ao lado uma outra estrutura, em tendas, que passou a funcionar como hospital, com ambulatório, sala de emergência, laboratório, e que foi chamada pelo governo de Centro de Referência em Saúde Indígena. Pacientes das aldeias do entorno que precisavam de internação agora eram levados para lá, sem precisarem ser removidos para os hospitais de Boa Vista, o que também ajudou a diminuir o fluxo de doentes Yanomami que acabavam na Casai.

As estruturas de lona no Surucucu funcionavam como hospitais, mas foram desativadas após a saída da EDS. Fotos: acervo de imagens da EDS e Marcelo Moraes

“Começamos, então, a levar as nossas equipes de saúde para Surucucu: pediatras, clínicos, infectologistas, tudo que a gente achava que era necessário para atender a essas emergências mais graves. Mas, aí, foi tudo muito confuso”, conta Marcia. “Não tinha uma coordenação que acolhia todos esses profissionais e dizia: ‘Vocês vão para as comunidades, vocês ficam aqui’. Tinha que ter uma linha de trabalho”, diz a diretora da ONG Expedicionários da Saúde. “Tinha que ter uma coisa de hospital: faz primeiro a triagem, os exames, isola quem está com suspeita de tuberculose, de covid-19, coloca uma pulseirinha. E isso não foi feito”, ressalta. Um dia, um paciente com sintomas gripais foi colocado no mesmo ambiente que uma série de outros doentes debilitados, sem o teste para covid. Ele estava com a doença e contaminou os outros enfermos, contam.

Outra falha que ocorreu nesse momento de atendimento foi a ausência de um trabalho sistematizado dentro das aldeias, apontam os médicos. “Era preciso entrar nas comunidades, levar a equipe para ver como estava a malária lá, tratar da malária lá. Mas isso foi pouquíssimo feito. Ficava naquilo de enxugar gelo”, ressalta Ricardo. “A gente queria ir, mas eles diziam que só a equipe do Dsei podia entrar”, afirma.

Em junho, eles escutaram da coordenação do polo que Surucucu não precisava de médicos especialistas, como os pediatras e infectologistas que eles haviam levado. E, sim, de socorristas. “Então não tinha mais o que a gente fazer lá. Éramos todos especialistas. Fomos embora”, relembra a diretora da EDS. A instituição retirou seus médicos do território, mas deixou o hospital de campanha ali. Uma equipe de manutenção e um técnico de laboratório também ficaram até o fim de agosto. Depois, afirmam eles, não houve mais manutenção por parte do governo e a estrutura começou a se deteriorar, tornando-se perigosa, o que fez com que eles a removessem.

No fim de outubro, o Centro de Referência em Saúde Indígena, inaugurado com orgulho pelo governo federal no início do ano, deixou de funcionar. Até hoje não foi substituído. A Casai passou a receber um maior fluxo de pessoas novamente, relata um profissional que atuou lá no segundo semestre de 2023.

A pele que cobre os ossos

As imagens que chocaram o Brasil em janeiro do ano passado davam rosto a um quadro de saúde nutricional gravíssimo. Dados enviados a SUMAÚMA no início daquele ano pelo Ministério da Saúde do próprio governo Lula evidenciavam que, em 2022, das 4.367 crianças com menos de 5 anos acompanhadas pelas equipes de saúde no território, metade estava abaixo do peso – destas, 1.239 apresentavam um quadro severo de desnutrição. SUMAÚMA pediu à assessoria de imprensa do Ministério da Saúde a atualização desses dados, mas eles não foram enviados. No último boletim divulgado pelo COE, a informação é que 416 crianças foram tratadas por desnutrição e tiveram alta até o momento. No fim de novembro, 56 estariam em acompanhamento, 34 delas com desnutrição grave.

A falta dos dados impede uma análise comparativa real de como evoluiu a situação da desnutrição no primeiro ano da força-tarefa. Mas imagens divulgadas pelo site G1 na semana passada mostraram crianças ainda em pele e osso resgatadas por equipes de saúde no polo de Awaris. Três dos profissionais ouvidos por SUMAÚMA para esta reportagem contam que a estratégia de combate à desnutrição adotada pelo governo também pode ter atrasado a recuperação dos pequenos Yanomami, mais uma vez por falta de conhecimento inicial da cultura local.

Imagens obtidas pelo site G1 mostram como a desnutrição, agravada por doenças e falta de equipe médica, ainda assola regiões como Awaris. Fotos: reprodução/Fantástico/TV Globo

Em fevereiro, o Ministério da Saúde passou a distribuir às crianças um leite terapêutico constituído de leite em pó, óleo, açúcar e micronutrientes com vitaminas. Uma forma rápida e fácil de aumentar a ingestão calórica. No entanto, parte dos Yanomami não está acostumada ao consumo de leite, além do materno, e a substância não foi bem aceita entre os Indígenas. A equipe de nutrição do COE adicionou, então, banana e açaí à fórmula, alimentos que fazem parte da cultura local, para tentar aumentar o consumo. Mas a aceitação ainda é difícil e a quantidade de vezes que a substância precisa ser ministrada é um desafio, especialmente nas aldeias.

Três profissionais ouvidos por SUMAÚMA afirmam que a distribuição do leite e a insistência do governo na estratégia causaram um mal-estar com a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF), que, assim como a EDS, foi chamada pelo COE para atuar no território. A ONG, que tem experiência com recuperação de crianças desnutridas em cenários graves da África subsaariana, por exemplo, queria introduzir o chamado Alimento Terapêutico Pronto para Uso (ATPU), uma substância pastosa ou sólida à base de amendoim ou grão-de-bico, que vem em forma de sachê. Ele poderia ter mais aceitação e seria mais prático para a utilização em áreas remotas, especialmente por não depender do uso de água, o que diminui o risco de contaminação. Em poucos dias, diz um profissional que atuou em quadros graves de desnutrição, as crianças ganham peso. A proposta está até agora parada na Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, causando alguns atritos.

Procurado, o MSF afirmou que seus porta-vozes não tinham agenda para dar entrevista. Mas uma notícia de 2006 publicada em seu site conta sobre a experiência bem-sucedida do uso desses alimentos preparados em regiões do Níger. “Há alguns anos, todos os desnutridos agudos severos eram internados nos centros nutricionais terapêuticos. A base do tratamento nutricional consistia em leite terapêutico em pó [diferente do usado na TI Yanomami] e o tempo médio de internação era de 30 dias. Esse sistema apresentava alguns problemas, como maiores taxas de abandono, menor cobertura, necessidade de mais recursos humanos e maior risco de contágio de doenças associadas à desnutrição”, dizia a entidade.

Segundo um profissional que acompanhou o trabalho de atendimento aos desnutridos em campo, esse cenário se repete na TI Yanomami. “Há uma triagem na comunidade, as crianças desnutridas vão para o posto de saúde e de lá são removidas [de avião] para o Polo-Base, onde é feita a recuperação nutricional [com o leite]. É uma recuperação muito duvidosa, demorada, custosa, precisa de muitos funcionários e, outra vez, centralizada em Polo-Base [longe das aldeias e das comunidades de origem]. Isso não tem dado respostas de fato significativas”, afirma.

Segundo a notícia do MSF de 2006, o emprego do Alimento Terapêutico Pronto para Uso permitia tratar a maioria das crianças em suas próprias comunidades com um acompanhamento médico convencional, minimizando as internações. “É o que se utiliza nas emergências nutricionais no mundo, mas aqui no Brasil eles decidiram que não era isso”, indigna-se um dos profissionais. Atualmente está em teste a Mistura da Floresta, que inclui farinhas de babaçu, castanha-do-brasil, cacau, leite e açúcar mascavo, muitos desses ingredientes provenientes da agricultura indígena e familiar.

A volta dos que não foram

Os anos de abandono deliberado do Estado brasileiro durante o governo Bolsonaro permitiram que o garimpo fincasse seus tentáculos de maneira profunda e perigosa no território, com a presença de homens altamente armados e membros de facções criminosas. Isso aumentou a dificuldade de retirada dos grupos. Mas a falta de um plano efetivo para atacar o problema por parte do novo governo também contribuiu para que nem todos os criminosos deixassem o território e, em muitos lugares de onde eles saíram, começassem a voltar a partir do segundo semestre.

Imagem de fevereiro de 2023 mostra a fuga de garimpeiros com a chegada das forças de segurança. No segundo semestre a fiscalização diminuiu e eles voltaram. Foto: Lalo de Almeida/Folhapress

“O plano do governo se dividia em duas fases. A primeira voltada à desintrusão [expulsão] de garimpeiros ilegais e à garantia do seu não retorno ao território”, explica o procurador da República Alisson Marugal, titular do ofício de defesa dos direitos dos povos indígenas e minorias, em Boa Vista, capital do estado de Roraima. Foi do gabinete dele que, nos últimos anos, saiu uma série de pedidos de explicação ao governo brasileiro sobre a situação de abandono dos Indígenas no território. No último ano, ele também acompanhou de perto o trabalho do governo Lula. “A segunda fase do trabalho”, acrescenta, “foi iniciada junto com a primeira, mas se completaria com a saída integral dos garimpeiros ilegais e o restabelecimento da condição de segurança pública no território para a retomada dos serviços públicos, como saúde e educação”, diz. “Mas jamais foi restabelecida a segurança pública no território de modo a garantir a eficiência do serviço público de saúde”, afirma.

Entre os exemplos, o procurador cita a situação do polo de saúde de Kayanau. “O Kayanau, com toda aquela tragédia que envolve o garimpo ilegal, jamais foi reaberto. E agora a unidade de saúde de lá foi incendiada por revolta dos Indígenas. Kayanau continua sendo uma tragédia. O governo diz que atende, mas o que ele faz ali é remoção de emergência, que é o mesmo que o governo Bolsonaro fazia.”

Entre fevereiro e dezembro de 2023, o sistema da Polícia Federal que monitora as novas áreas de desmatamento apontou uma redução de 81% nesses alertas. Nesse período de 2022, último ano de Bolsonaro, foram 2.137. Em 2023, 400. A redução é significativa em uma área em que o nível de desmatamento crescia. Mas os dados não são capazes de demonstrar o retorno dos garimpeiros para as mesmas áreas que antes ocupavam, cujas clareiras ficaram abertas e abandonadas na floresta. Nesses casos, não é preciso derrubar uma nova área de mata, que é a alteração que o sistema capta para emitir o alerta. “Mesmo que tenha havido a redução dos alertas [de desmatamento] no território, fato é que há ainda alguns pontos em que os garimpeiros continuaram a atuar. Ou não saíram, ou saíram e retornaram muito rapidamente”, ressalta Marugal. Relatos de lideranças indígenas também atestam que os garimpeiros que permaneceram começaram a usar estratégias para não serem descobertos pela fiscalização, como trabalhar durante a noite ou montar estruturas embaixo de árvores.

Em junho de 2023, o decreto presidencial assinado por Lula em janeiro, que determinava as medidas para o enfrentamento do combate ao garimpo no território, teve uma alteração. A nova redação autorizou as Forças Armadas a executar ações preventivas e repressivas contra os crimes no território, com ações de patrulhamento, revista de pessoas, embarcações e aeronaves e prisões em flagrante. “O decreto atribuiu às Forças Armadas a possibilidade de atuar diretamente nas incursões contra garimpo, o que não era possível antes, porque elas estavam limitadas ao apoio logístico”, explica o procurador. “A partir daí houve um certo consenso de que as Forças Armadas assumiriam a operação. E a Polícia Federal e o Ibama acompanhariam [apenas] as ações de destruição de maquinário, que seria atribuição deles. Só que a questão é que não deu certo porque, em um determinado momento, ali perto de outubro, as Forças Armadas começaram a desembarcar da operação”, destaca Marugal. Segundo ele, o órgão de defesa iniciou a retirada de seu efetivo com a argumentação de falta de recursos. “Isso paulatinamente foi criando um ambiente de estímulo ao retorno do garimpo no território Yanomami e, a partir daí, a gente começa a receber também muitas informações de que garimpeiros estariam voltando às comunidades.”

O procurador enfatiza ainda que a entrada das Forças Armadas na operação fez com que o Ibama transferisse seus recursos para outras regiões do Brasil. “Agora em dezembro é que ele [Ibama] começou a voltar”, afirma.

O exército deveria ter reformado a pista de Surucucu, mas só fez reparos. Isso impede o pouso de aviões maiores. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A resposta de Lula

Às vésperas do aniversário de um ano do escândalo que escancarou ao mundo o genocídio Yanomami, o presidente Lula sentiu a cobrança pelo tempo desperdiçado no território. Como fez naquele 20 de janeiro de 2023, diante da persistência das mortes mais uma vez chamou seu primeiro escalão. Lula cobrou um plano mais efetivo da equipe. “A gente vai decidir tratar a questão de Roraima e a questão indígena e a questão Yanomami como uma questão de Estado. Não é possível que a gente possa perder uma guerra para garimpo ilegal”, disse em 9 de janeiro. “E essa reunião aqui é para definir de uma vez por todas o que nosso governo vai fazer para evitar que os Indígenas brasileiros continuem sendo vítimas de massacre.”

No dia seguinte, 10 de janeiro, ministros voltaram ao território Yanomami para avaliar a situação. Entre eles, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida. Também estava presente a presidenta da Funai, Joenia Wapichana, que é de Roraima. A ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima, não integrava a comitiva, tampouco o ministro da Defesa, José Múcio. Marina Silva afirmou que o governo quer “transparência” e “realidade” – e não o “autoengano”.

Com mortes ainda em alta, em janeiro deste ano ministros, como Marina Silva, retornam ao território para novos anúncios. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Para profissionais envolvidos na área de saúde, o discurso presidencial soou como uma volta ao mesmo lugar de um ano atrás. “Parece o Dia da Marmota, me sinto como se estivesse vivendo o mesmo dia de um ano atrás”, disse um deles, referindo-se ao popular filme Feitiço do Tempo, em que o personagem de Bill Murray acorda sempre no mesmo dia, até que consegue se aprimorar e finalmente se tornar uma pessoa melhor. Afinal, assunto de Estado os Yanomami são desde sempre, pela Constituição – e resolver a situação foi a promessa de janeiro de 2023. Lula tampouco mencionou os problemas mais do que evidentes da operação de emergência sanitária, transferindo toda a responsabilidade pelo fracasso da operação de saúde à dificuldade em expulsar os garimpeiros.

O presidente anunciou um investimento de 1,2 bilhão de reais para o ano de 2024 na região e a instalação de uma “Casa de Governo”, que reunirá os órgãos federais envolvidos. “Vamos migrar de um conjunto de ações emergenciais para ações estruturais em 2024. Isso inclusive na área de controle de território e segurança pública”, afirmou publicamente o ministro da Casa Civil, Rui Costa, que coordena as ações. Segundo ele, o cerco aos invasores não será mais por meio de operações, como no ano passado, mas uma ação permanente, com novas estruturas de fiscalização – algo que era cobrado pelos especialistas, inclusive do Ibama, desde a gestão Bolsonaro. O novo plano de ação tira das Forças Armadas a responsabilidade pela logística de distribuição das cestas básicas a partir de abril.

Na floresta, os Yanomami, acostumados com promessas desde que foram forçados ao contato com os napepë (não indígenas), sonham com uma vida livre, sem xawara (doenças e epidemias) e violência. Assim resume, sob o pseudônimo Inoque Irana, uma liderança da região do Papiu e importante porta-voz da resistência desde a primeira invasão garimpeira na década de 1990:

“Queremos voltar a viver somente nós. Não queremos os garimpeiros. Antes vivíamos somente nós aqui, é a nossa terra. Não aceitamos que destruam sempre a nossa terra. Essa é a terra que foi colocada por Omama, nosso criador. Não foi o governo que criou essa terra-floresta, não foram os garimpeiros que criaram essa terra-floresta. Eles não têm suas esposas e seus filhos aqui, não têm suas mães, nem seus pais ou sogros aqui. Somente nós, Yanomami, moramos aqui.

Comunidades como Xaruna, na região do Parima, estão entre as que seguem severamente impactadas pela crise humanitária (2023)

Vivemos onde a floresta está inteira. Por que é que os napepë (não indígenas) ficam sempre voltando e nos fazendo sofrer? Se por acaso tiver somente a [equipe de] saúde, remédios, será bom, se tiver somente vacina, é o que queremos. Queremos profissionais da saúde que saibam nos curar, que trabalhem com microscópios. Em tempos passados nós já desaparecemos, então dessa vez não iremos mais desaparecer.

Se [os garimpeiros] ficarem vindo sempre na floresta, nossas crianças irão sofrer por fome. A floresta passou a ficar toda tomada por maquinários. Não tem mais o perfume da floresta, não sinto mais o cheiro das flores. Tudo se tornou cheiro de gasolina, e assim os animais de caça fugiram. Agora, estamos com muita fome”.

Para que os Yanomami possam voltar a viver na “floresta inteira”, porém, será necessário que o governo vença não só as forças do outro lado da trincheira, mas também os problemas graves no lado de dentro, que custaram vidas que jamais poderão ser recuperadas. E isso só se faz com transparência, realidade – e sem autoengano.

Em 2023, ao menos 14 crianças Yanomami morreram de desnutrição, mas as estatísticas do período ainda estão incompletas. Foto: Reprodução/Fantástico/TV Globo


O QUE O GOVERNO BRASILEIRO DIZ:

O Ministério da Saúde afirma que “retomou as políticas de saúde e de cuidado após a desassistência e abandono que causaram graves danos à saúde da população indígena nos últimos anos”. Destaca que a ação montada pelo governo federal aumentou o efetivo de profissionais e mais que dobrou o investimento em ações de saúde e trabalhou para garantir a assistência e combater as principais doenças, como a malária e a desnutrição, no território Yanomami.

“Para enfrentar a situação de emergência foi montada imediatamente uma ação interministerial de logística e operação complexa diante da situação do território indígena no início do ano passado. Sob a coordenação do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE) Yanomami foram mobilizados enfermeiros, pediatras, nutricionistas, emergencistas e clínicos, além da Força Nacional do SUS e de profissionais capacitados, com reconhecimento das lideranças locais e com conhecimento técnico e experiência na saúde indígena”, afirma em nota.

O órgão diz ainda que o papel do COE é de organização, planejamento e monitoramento, além da articulação com outras entidades, como organizações governamentais e não governamentais que foram convidadas a contribuir com as ações do governo federal. “Com relação à parceria com ONGs e especialistas da região, vale destacar que a equipe da Secretaria de Saúde Indígena fez reuniões com Médicos Sem Fronteiras, Unicef, Expedicionários da Saúde, Instituto Socioambiental, além de contatar profissionais envolvidos na criação do Distrito Sanitário Yanomami.” A nota da pasta ressalta que as ONGs e os especialistas foram convidados a compor o COE e puderam participar das reuniões desde o início. E que as lideranças Yanomami também foram consultadas.

A Presidência da República informou, por meio de nota, que desde janeiro de 2023 o governo investiu mais de 1 bilhão de reais na tarefa, tanto em recursos do orçamento ordinário como em crédito extraordinário (não previsto inicialmente no orçamento).

“Em 2023 foi investido em saúde um valor 122% maior que no ano de 2022. Houve também um aumento de 40% no efetivo da saúde, saltando de 690 para 960 profissionais. Como um dos resultados, 307 crianças diagnosticadas com desnutrição grave ou moderada foram recuperadas ao longo do ano e mais de 21 mil atendimentos médicos foram realizados.” O órgão destaca ainda que foi feita busca ativa para a detecção de malária, com 140.042 exames.

A pasta, assim como o Ministério da Saúde, enfatizou que o número de óbitos no território está em constante atualização porque requer investigação das notificações. “Dessa forma, considerando que há subnotificação até o ano de 2023, isso pode levar a um número ainda maior de óbitos ocorridos até 2022, após consolidação dos dados”, apontou a Presidência.

O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) afirmou que “a crise do território Yanomami é complexa e piorou nos últimos anos, quando as políticas públicas de proteção aos Indígenas foram severamente afetadas”. Enfatizou que no ano passado foram realizadas 400 operações na área indígena Yanomami, que apreenderam 600 milhões de reais relacionados a patrimônio e recursos financeiros de grupos ilegais. Destacou ainda que a Polícia Federal deflagrou 13 operações ao longo de 2023, resultando em 114 mandados de busca e apreensão e 175 prisões em flagrante. “Há 387 investigações em andamento, incluindo aquelas focadas nos grandes patrocinadores do comércio ilegal de ouro, com o objetivo de apurar a responsabilidade criminal dos maiores financiadores [dos garimpos].”

GARIMPO

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) afirmou à reportagem que, após a retirada da maioria dos garimpeiros ilegais na Terra Indígena, os fiscais do órgão constataram que alguns grupos retornaram e começaram a atuar durante a noite, em áreas mais afastadas e próximas à fronteira com a Venezuela, na tentativa de driblar a fiscalização. Ainda assim, assegura que houve uma redução de 85% das áreas usadas para mineração ilegal entre fevereiro, quando começou a força-tarefa, e dezembro de 2023, em relação ao mesmo período do ano anterior. “A redução coincide com os locais onde o Ibama atuou para destruir equipamentos e acampamentos de garimpeiros.”

O órgão destaca que bloqueou o fluxo de suprimentos, como combustível, alimentos e peças de reposição para a mineração ilegal, e que realizou 310 ações de fiscalização, em que foram apreendidos ou destruídos 362 acampamentos e 151 estruturas logísticas e portos de apoio, 34 aeronaves, 32 balsas, 43 barcos, três tratores, seis veículos e 45 motosserras. Também foram feitas 205 vistorias em pistas de pouso na Terra Indígena e no entorno dela e 209 foram monitoradas. O Ibama ressalta ainda que seus fiscais foram atacados com armas de fogo dentro da TI pelo menos dez vezes.

Questionado, o Ministério da Defesa não respondeu por qual motivo as forças de segurança brasileiras até agora não conseguiram a retirada completa dos criminosos do território protegido e nem por que não agiu para reaver prédios de unidades de saúde, estruturas de Estado, fechados por garimpeiros, como o de Kayanau.

FISCALIZAÇÃO

Sobre o enfraquecimento das ações de combate ao garimpo após o decreto de Lula, em junho, que autorizou as Forças Armadas a atuarem na repressão de crimes no território, o Comando Militar da Amazônia respondeu que o decreto “estabelece que o Ministério da Defesa, por meio do Comando Conjunto Ágata, tem a responsabilidade de executar ações preventivas e repressivas contra delitos transfronteiriços e ambientais”. E continua: “No entanto, é importante ressaltar que o texto do decreto não menciona explicitamente ações de desintrusão de garimpeiros.” “Apesar disso”, diz, “realizou, com outros órgãos do governo, ações significativas na região, que resultaram na redução de 90% dos voos ilícitos e em 80% a presença de garimpeiros.”

DESNUTRIÇÃO

O Ministério da Saúde afirmou que criou, no início das operações, um Centro de Recuperação Nutricional para tratamento de crianças com desnutrição na Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista, o que reduziu o número de óbitos por desnutrição de 44, em 2022, para 29, até novembro de 2023 (os dados se referem à população total. Dentre as crianças de menos de 5 anos, houve aumento, como mostraram os dados obtidos por SUMAÚMA por meio da Lei de Acesso à Informação).

“Vale destacar que no início da emergência o protocolo do Ministério da Saúde para desnutrição grave preconizava a atenção em nível hospitalar, como era necessário devido à gravidade dos casos encontrados. Nesse sentido, a equipe do Ministério da Saúde estabeleceu critérios e procedimentos para identificação de crianças em risco nutricional grave, a implementação de um plano de tratamento e critérios de evolução baseados nas diretrizes da pasta. A fórmula fornecida era compatível com a alimentação natural do povo Yanomami, composta, por exemplo, de banana e açaí, diferente das fórmulas sugeridas por outras instituições”, ressaltou.

KAYANAU

Sobre a não abertura do Polo-Base de Kayanau, o Ministério da Saúde assegura que isso aconteceu em decorrência das atividades do garimpo ilegal no local. A pasta diz que abriu sete Polos-Base, e outros três funcionam apenas parcialmente, durante o dia, devido à insegurança causada pelas atividades criminosas aos profissionais de saúde: Awaris, Surucucu e Xitei.

“Nos locais onde a assistência médica consegue acessar com segurança, é possível prestar os atendimentos necessários de emergência e de acompanhamento de saúde dos Indígenas. Para garantir o acesso aos locais onde não há segurança, o Ministério da Saúde segue trabalhando de forma conjunta com as Forças de Segurança Pública”, destacou a pasta.

CESTAS BÁSICAS E APOIO MILITAR

O Ministério da Defesa respondeu, por meio de sua assessoria, que “desde o início da força-tarefa do governo federal, em janeiro de 2023, o apoio logístico das Forças Armadas em auxílio aos Yanomami resultou na distribuição de cerca de 766 toneladas de alimentos e materiais transportados, o que ultrapassou a marca de 36,6 mil cestas de alimentos distribuídas. Além disso, foram realizados 3.029 atendimentos médicos e 205 evacuações aeromédicas”. Também afirmou que os militares, em operações de combate ao garimpo ilegal, detiveram 165 suspeitos. “Para as ações foi empregado, aproximadamente, 1,4 mil militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. O esforço aéreo somou cerca de 7,4 mil horas de voo, o que equivale a mais de 40 voltas na Terra.”

SURUCUCU

Sobre a pista de pouso e decolagem do Polo-Base de Surucucu, que deveria ter sido reformada pelo Exército, o Comando Militar da Amazônia respondeu que ela é de propriedade da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), com a responsabilidade de manutenção compartilhada com a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero). Contudo, “tendo em vista a urgência da missão de apoio às comunidades indígenas na Terra Indígena Yanomami”, seus militares trabalharam desde dezembro de 2022 até julho de 2023 na manutenção emergencial da pista, possibilitando, atualmente, “o pouso e decolagem de aeronaves de pequeno e médio porte”. “Destaca-se que a inexistência de acesso fluvial ou terrestre por estradas, aliada às condições climáticas características da Amazônia Ocidental, torna o trabalho bastante restrito em termos de materiais e insumos empregados na operação”, concluiu. Também declarou que não há registro de solicitações formais da ONG Expedicionários da Saúde (EDS) ao Exército Brasileiro para o empréstimo de aeronaves para levar materiais de construção para a implementação do hospital em Surucucu.

O Ministério dos Povos Indígenas afirmou que, junto à Funai, destinou recursos de crédito extraordinário para um acordo de cooperação com a Infraero para reformar as pistas de pouso no interior da Terra Indígena Yanomami. “A equipe da Infraero já está em Roraima dando início aos trabalhos. Houve um pequeno atraso com a mobilização da equipe, mas as atividades já estão em curso.”

PRÓXIMAS AÇÕES

O Ministério dos Povos Indígenas destacou que, entre as ações estruturantes de 2024 na região, 1,2 bilhão de reais serão direcionados a investimentos. Haverá uma “Casa de Governo” em Roraima, composta por representantes de diversos órgãos, que terá ações como o estímulo à retomada do modo de vida para restabelecer a pesca e o cultivo e garantir, de forma permanente, que a segurança alimentar não dependa da chegada de cestas básicas.

“Enquanto isso não ocorre, o programa de distribuição de cestas básicas continuará ativo”, diz. O órgão destaca ainda que a Casa de Governo dará maior celeridade às ações, incluindo as de desintrusão do território, com a presença permanente das forças de segurança. O governo também anunciou os planos para a construção do primeiro hospital indígena do Brasil em Boa Vista.


Texto e reportagem: Talita Bedinelli, Eliane Brum e Ana Maria Machado
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Diane Whitty e Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Viviane Zandonadi (fluxo de edição e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum

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