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Uma das casas do indígena Tanaru. Foto: Acervo OPI

Há uma disputa pela Terra Indígena Tanaru – e uma das partes interessadas já não pode se defender. O indígena Tanaru, conhecido como “Índio do Buraco” e encontrado morto em sua casa no dia 23 de agosto de 2022, sobreviveu sozinho durante 26 anos ao genocídio perpetrado contra seu povo. Enquanto esteve vivo, fazendeiros e grileiros vizinhos esperavam que morresse para poder reivindicar na justiça dos brancos os mais de 8 mil hectares da Amazônia protegidos por sua existência. Depois de morto, Tanaru conquistou uma primeira vitória. Mas ela ainda é provisória.

O indígena isolado partiu, mas há pessoas não humanas como testemunhas de que a terra ancestral é ocupada por povos originários que preferem não ter contato com brancos. A Terra Indígena Tanaru, no sul do estado de Rondônia, na Amazônia brasileira, é um lugar onde rios ainda percorrem o curso natural da vida, pássaros cantam livremente e porcos-do-mato, antas e tatus não estão ameaçados de extinção.

A floresta está conservada, porque nos últimos 26 anos Tanaru cuidou de si e de todos que habitam aquele espaço. O nome atribuído ao indígena é uma homenagem a um dos rios que fazem pulsar o território em que ele – o único sobrevivente de um genocídio – existiu, protegido por uma portaria da Funai que restringia o uso da terra e respeitava sua vontade de não fazer contato. Com sua morte, porém, todos aqueles que defendem a floresta e seus povos temiam o fim da proteção, ainda que ela tenha validade até 2025.

Tanaru era um homem de cabelos lisos, olhos puxados e bigode, o que chamava a atenção, já que é incomum ver indígenas com pelos no rosto. O trabalho na roça, as casas que construiu para si mesmo e os quilômetros que percorreu ao longo da vida deram ao seu corpo uma constituição atlética. Apesar da companhia diária de pessoas não humanas, ele viveu apartado de outros indígenas e, principalmente, dos brancos.

Não é possível afirmar quantas pessoas do povo de Tanaru estavam vivas nos anos 1990. Essa falta de precisão tem justificativa. Os indígenas só passaram a ser percebidos como seres dotados de direitos a partir da Constituição de 1988. Na ditadura empresarial-militar (1964-1985), o extermínio de indígenas era normalizado em nome do desenvolvimento econômico – ou do “progresso”. Dados da Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontam que ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, remoções forçadas de seus territórios, doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e extermínios, todos vítimas dos governos militares. Tudo indica, porém, que o número de mortos é muito maior.

Há outras lacunas, a exemplo de quando e como os parentes de Tanaru morreram. O que se sabe é que esses familiares existiram, porque, em 1995, foram achados vestígios de casas, roças e utensílios em maior quantidade do que os que seriam vistos com ele nos anos seguintes. Até então, segundo os pesquisadores, Tanaru vivia cercado por no máximo 5 pessoas de uma mesma etnia.

Em 1995, uma equipe da Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé, da Fundação Nacional do Índio (Funai), acompanhava o cineasta Vincent Carelli – autor do documentário Corumbiara –, quando encontrou um novo desmatamento em uma área de Rondônia ameaçada pela grilagem. Em um espaço de mais ou menos 1 quilômetro quadrado, havia uma plantação de banana destruída, uma casa que media 4 por 5 metros e, dentro dela, um grande buraco.

Ao redor da roça, que aparentava ter entre de 3 a 4 anos, havia vários outros buracos, muitos escondidos por folhagem seca ou troncos de árvore. O lugar tinha aspecto de terra arrasada, atacada com violência. Em meio aos vestígios do crime, restavam madeiras queimadas e fragmentos do cotidiano.

Foram encontrados utensílios do dia a dia e até uma flauta deixada para trás na urgência de abandonar o local onde aquelas pessoas plantavam, dormiam, amavam e entoavam suas músicas. Depois dessa descoberta, os funcionários da Funai procuraram os indígenas por anos, mas somente um foi encontrado. Tanaru. O único sinal de que ele não estava sozinho no mundo – até então – era a casa grande que media 4 por 5 metros. Todas as outras eram menores, mostrando que, daquele povo, só restava um.

Há suspeitas de que uma parte dos indígenas tenha sido envenenada com uma mistura de chumbinho e açúcar, mas nunca foi possível provar que os familiares diretos de Tanaru foram vítimas dessa atrocidade. O homem que sobreviveu possivelmente guardou na memória a lembrança da casa destruída pelos brancos, o que o fez decidir viver ao lado somente dos que confiava: as pessoas não humanas, que, como ele, eram natureza.

O primeiro contato de Tanaru com a equipe da Funai, registrado no documentário Corumbiara, foi tenso. Além de tentar se proteger com uma flecha, ele negou qualquer contato visual. Em uma das imagens, ele deu sinais explícitos de que não queria proximidade. Depois de ver seu povo inteiro ser exterminado, essa reação aos brancos era mais do que previsível.

O buraco que Tanaru cavava em suas casas, e que acabou por nomeá-lo, era o ponto central da construção. Antes mesmo de paredes ou portas, havia um buraco. Com o passar dos anos, os funcionários da Funai descartaram um sentido prático – como o de se proteger de um inimigo ou guardar coisas. Existe a hipótese de um significado espiritual ou religioso, mas não há como saber. Tanaru se recusou a contar o que sentia, acreditava e vivia aos autores do genocídio de seu povo.

Durante os 26 anos em que foi acompanhado pela Funai, o indígena isolado construiu 53 casas – estas foram as monitoradas; é possível que ele tenha erguido muitas outras. Além do buraco, as moradias – feitas de palha e madeira – tinham uma única porta e eram habitadas por até 3 anos. Depois, se deterioravam. Nos períodos de conflito com grileiros que ameaçavam sua vida, Tanaru chegou a manter até 3 casas simultaneamente. Ele costumava construir e, ao terminar, se mudava com suas ferramentas, a rede, 2 panelas, o arco e a flecha. Nos últimos anos, passou também a transportar um pilão.

Plantava mamão, milho e, às vezes, mandioca, cará e até amendoim. Na caça, priorizava animais de pequeno porte, a exemplo de queixada (porco-do-mato), tatu e aves, como mutum e jacu. Para saciar a sede, o rio lhe cedia um pouco de suas águas. Da semente e da polpa do jatobá, uma árvore que tem em média 40 metros de altura, e que, na Amazônia brasileira, já alcançou os 95 metros, Tanaru fazia suco.

Por viver sem a companhia de seu povo, foi preciso se reinventar e aprimorar técnicas. A rede, essa cama suspensa feita de diversos tipos de fibra, em muitas comunidades indígenas é tecida por mulheres. A de Tanaru era de embira, um material resistente obtido da casca de algumas árvores. Depois de extraída, a casca é desfiada e tecida para dar corpo a cordas grossas e finas, que, entrelaçadas, se transformam em várias coisas, entre elas, uma rede.

Nas primeiras habitações analisadas pela equipe da Funai, era possível identificar a pouca habilidade de Tanaru para trabalhar o material. No início, ele só extraía a embira, sem transformá-la em cordas – estendia as fibras e dormia sobre elas. Depois, passou a tecê-las e, por fim, deitou-se para morrer em uma rede fabricada por ele mesmo.

Enquanto viveu, Tanaru conseguiu escapar da fúria dos brancos. E resistiu na floresta de seus ancestrais. A disputa judicial pela Terra Indígena Tanaru, que chegou ao Supremo Tribunal Federal, tem também como testemunha o passado genocida do Brasil contra os povos originários.

Desde a época da invasão dos europeus às terras que chamariam de Brasil, centenas de povos indígenas desapareceram, vítimas do genocídio praticado pelo Estado e por invasores, em especial grileiros, madeireiros e garimpeiros. Entre 1500 e 1957, foram exterminados 97% dos indígenas que viviam no território usurpado. Hoje há mais de 300 povos, que falam mais de 270 línguas diferentes, e são alvo constante de ataques, do agronegócio predatório a uma Funai comandada por anti-indígenas, como no atual governo.

Tanaru e seu povo foram vítimas desse processo que, ao longo dos últimos 5 séculos, oscilou entre políticas de assimilação e de extermínio físico. Ao conseguir morrer em vez de ser morto, o “Índio do Buraco” se tornou um símbolo de resistência.

Analisando as fotos feitas por câmeras de monitoramento da Funai é possível ver Tanaru perdendo as forças, talvez por um processo de adoecimento. Durante 2 meses, o homem vigoroso mudou seus hábitos: o arco, usado para caça, foi encontrado coberto de fuligem. Algumas flechas já tinham sido guardadas. Nos últimos tempos, ele caçava somente com armadilhas.

Tanaru sabia que a morte estava à espreita e, para esperar, pôs na cabeça um chapéu amarrado com cordas de embira. Sobre o corpo, usou um singelo feixe de plumas de arara. Ele também sabia que era monitorado e seria encontrado. Pelo estado de decomposição do corpo, calcula-se que estivesse morto há quase 40 dias.

A última vez que foi visto com vida, em abril de 2020, a expedição de monitoramento da Funai constatou que Tanaru estava bem de saúde, porque construía uma casa. Mais de 2 anos depois, porém, em 23 de agosto de 2022, uma nova inspeção encontrou mato alto na roça – sinal de que há pelo menos 1 mês ela não era trabalhada. Ao cruzarem um igarapé, os servidores passaram por uma plantação de mamão e, na sequência, viram um machado jogado no chão. Tanaru nunca largava uma ferramenta para trás. A porta da casa aberta e o entra e sai de moscas e abelhas fizeram com que os funcionários se aproximassem.

Tanaru foi descoberto pouco mais de 1 mês antes do primeiro turno da eleição presidencial mais importante para o futuro dos povos originários. A notícia de sua morte repercutiu no mundo todo. O destino de seu corpo se tornou o centro de uma disputa pela sua terra. A data inicial prevista para o enterro era 14 de outubro de 2022, mas ela foi adiada, a mando do coordenador da Funai, Marcelo Xavier, sem qualquer justificativa plausível. Xavier é notório por colecionar posições contra os indígenas e a favor dos ruralistas.

Entre as alegações para a postergação, estava a necessidade de coleta de material genético, a exemplo de uma mecha de cabelo, para que pudesse ser feita uma análise do grupo étnico ao qual Tanaru pertencia. Mas a conclusão é que a identificação não seria possível porque o acervo genético de indígenas de posse da Polícia Federal é reduzido. Suspeita-se que Xavier tinha a intenção de atrasar o sepultamento de Tanaru em sua terra ancestral para dar tempo de ela ser invadida pelos grileiros e fazendeiros que a disputam. Procurado por meio da assessoria de imprensa, o coordenador da Funai não deu resposta até a publicação desta reportagem. SUMAÚMA se mantém aberta para sua manifestação.

Foi preciso atuar rápido para desmascarar a manobra de Xavier e garantir que o corpo de Tanaru fosse acolhido pela terra que ele ajudou a manter viva. O desejo do indígena de ser sepultado no espaço em que viveu, manifestado pela forma como se preparou para morrer, só foi respeitado mais de 3 meses depois, por determinação da Justiça Federal, após um pedido urgente do Ministério Público Federal. Por 3 meses, seus restos mortais ficaram amontoados em 2 caixas guardadas pela Polícia Federal, em Brasília, o que violenta o ritual fúnebre de todos os povos originários conhecidos.

Depois de finalmente ser liberado, o sepultamento foi planejado por indígenas de etnias que acompanharam Tanaru de longe enquanto vivia, como os Kanoé, os Sabanê, os Aikanã, os Tupari e os Akuntsu, da Terra Indígena Rio Omerê, e também pelos próprios funcionários da Funai. Houve muito diálogo, porque, apesar de eventuais semelhanças, o ritual funerário é um ato muito próprio de cada povo, em geral conduzido por pessoas próximas ao morto.

Tanaru foi homenageado seguindo o rito tradicional de povos da região. Houve, porém, um impasse em relação a seus pertences. Para os Kanoé, os objetos devem ser enterrados junto ao corpo. Entre os Akuntsu, uma única peça é guardada pelos parentes e o restante é queimado antes do sepultamento. Ao final, todos concordaram que os itens fossem levados a um museu, como prova de que Tanaru existiu – e de que seu povo foi extinto pela violência dos brancos.

O indígena Purá Kanoé foi escolhido para conduzir a cerimônia. Nos últimos 26 anos, ele acompanhou muitas expedições de monitoramento da Funai e, no início, chegou a sugerir que Tanaru fosse “resgatado”. Mas logo percebeu que o desejo daquele homem era viver sem a presença humana, e isso foi respeitado por todos os povos. Em 4 de novembro de 2022, uma cova foi feita em sua casa e o corpo de Tanaru, da mesma forma em que foi encontrado, de peito para cima, foi coberto com terra. Sobre a sepultura fez-se o fogo. O ritual funerário se completou 74 dias depois de o corpo ter sido encontrado.

Em 21 de novembro, Tanaru conquistou outra vitória na justiça dos brancos. O ministro Edson Fachin determinou que as restrições de acesso à Terra Indígena Tanaru sejam mantidas, assim como a proteção de territórios onde vivem índios isolados em todo o Brasil. Fachin julgou a ação movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que chegou a ser contestada pela presidência de Jair Bolsonaro. O ministro ficou ao lado dos indígenas, da floresta e da justiça. Ainda não é uma decisão definitiva, mas é uma vitória tardia depois de um massacre que custou a extinção de um povo. Tanaru, o último homem, se tornou um símbolo da capacidade de destruição que colocou o planeta em colapso climático. O que acontecer com a floresta de Tanaru determinará o futuro de todos nós.

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