A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, foi dormir na terça-feira com a sensação de vitória. Durou pouco. Em 24 horas, ela assistiu a um processo violento de desmatamento de seu ministério. Marina parece estar sozinha, dentro do próprio governo, para barrar os interesses que marcam as tentativas da Petrobras de abrir uma nova frente de exploração de petróleo na Amazônia. E sozinha também para defender, dentro do Congresso e do próprio governo, o compromisso assumido por Luiz Inácio Lula da Silva de proteger a maior floresta tropical do planeta e enfrentar a crise climática.
Na terça, Marina havia considerado que a questão da licença ambiental para a Petrobras perfurar um poço de petróleo na bacia da foz do Amazonas estava pacificada no governo. A pedido de Lula, ela tinha se reunido com o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates (PT), e com os ministros da Casa Civil, Rui Costa (PT), e de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), para apresentar os argumentos técnicos que levaram o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a negar a licença. Na saída, a ministra disse, em entrevista coletiva à imprensa, que a decisão do Ibama estava tomada e seria cumprida. “É uma decisão técnica, e a decisão técnica em um governo republicano, em um governo democrático, ela é cumprida, e é respeitada, com base em evidências”, afirmou.
A ministra anunciou que todos na reunião haviam concordado com uma saída para o impasse: os ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia iriam realizar uma avaliação estratégica de toda a margem equatorial do litoral brasileiro, que vai do Rio Grande do Norte ao Amapá, para analisar a viabilidade e os impactos cumulativos da eventual exploração de petróleo numa área de particular sensibilidade ambiental, com influência sobre o equilíbrio de todo o ecossistema amazônico. A solução já havia sido apontada pelos próprios técnicos do Ibama e por Rodrigo Agostinho, o presidente do órgão ambiental, no despacho em que a licença foi negada, no dia 17 de maio.
Essa análise se chama Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS) e foi instituída em portaria conjunta dos ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia, em 2012. De realização obrigatória antes da abertura de qualquer nova fronteira de exploração petrolífera, a AAAS deveria ter sido feita antes de a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) começar o leilão de blocos de exploração na margem equatorial, em 2013. Na época, porém, foi aberta uma exceção, hoje inaceitável em um ministério responsável pela proteção ambiental. “A partir de agora, o que está estabelecido é o cumprimento da lei de que todas as frentes de exploração de petróleo ou de projetos de alta complexidade passarão pela avaliação ambiental estratégica, ou avaliação ambiental para área sedimentar”, disse Marina. Na afirmação, ela deixa explícito que só depois da AAAS haveria uma decisão sobre qualquer pedido de licença para perfuração na margem equatorial. Sua convicção passava a impressão de que essa visão tinha sido assimilada pelo governo como um todo.
Um dia depois de ter se reunido com Marina Silva e outros integrantes do governo na Casa Civil, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), ignorou o acordo firmado e mudou totalmente o tom em audiência pública no Senado Federal, na quarta-feira (24). Aos senadores, ele disse que os pedidos de licenciamento não podem ser recomeçados e argumentou que as avaliações ambientais de área sedimentar (AAAS) só devem ser exigidas a partir dos próximos leilões. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Na quarta-feira, porém, diante de senadores, o ministro Alexandre Silveira ignorou o acordo que havia sido anunciado por Marina Silva apenas horas antes. Num tom que até então nunca havia usado contra a ministra, disse que a decisão do Ibama era “inadmissível”, que se tratava de mera “questão burocrática” e, num golpe direto no prestígio internacional de Marina, afirmou que “o embaixador ambiental do Brasil, reconhecido mundialmente, é Lula”.
Silveira preferiu reduzir uma decisão técnica, baseada na melhor ciência, elaborada por servidores especializados, a mera formalidade. O ministro de Minas e Energia defendeu a tese de que a AAAS deve valer apenas para os blocos que ainda serão leiloados na margem equatorial, e não para os que já foram concedidos no leilão feito em 2013. Só na bacia da foz do Amazonas – uma das cinco da margem equatorial – há mais oito blocos com pedido de licenciamento ambiental em tramitação no Ibama, sete deles da Petrobras. Em toda a margem equatorial, há mais 21 blocos nessa situação, outros 45 em “oferta permanente” (à venda) pela Agência Nacional do Petróleo e 157 em estudos para serem levados a leilão.
Em sua declaração, o ministro de Minas e Energia comete erros conceituais e jurídicos. “Se recomeçar esse licenciamento, vamos primeiro desrespeitar contrato, e não é só com a Petrobras. Outras petroleiras que ganharam blocos de petróleo ali vão discutir questões de ressarcimento com a União pelos recursos investidos, inclusive de outorga”, alegou Silveira. A realização da AAAS não antecipa a negação de licenças – e sim torna mais seguro o processo de licenciamento, algo que todos deveriam desejar. Esse foi o primeiro erro. O segundo é que as empresas têm o direito de pleitear a licença ambiental para qualquer empreendimento, mas o Ibama não tem obrigação legal de concedê-la. A recusa da licença faz parte do jogo, e, na própria bacia da foz do Amazonas, cinco foram negadas à empresa francesa Total em 2018.
A pergunta que grita é: por que a Petrobras e o Ministério de Minas e Energia estão lutando para não fazer a avaliação ambiental estratégica se afirmam ter tanta certeza de que a exploração de petróleo na margem equatorial é segura? Não deveriam ser os primeiros a querer resolver esse assunto e provar que ela é segura, o que permitiria seguirem adiante não só com o bloco 59 mas com todos os outros, dando tranquilidade ao país e também aos investidores? A questão não é que a ministra do Meio Ambiente e o Ibama peçam que a lei seja cumprida e se faça a avaliação, mas sim que o Ministério de Minas e Energia, a Petrobras e parte do governo relutem em cumprir a lei e peçam à sociedade que confie apenas em sua palavra – e não na avaliação técnica e científica que deve ser feita mas não foi.
O despacho em que o presidente do Ibama negou a licença de operação foi baseado em um parecer unânime dos dez técnicos da Coordenação de Licenciamento Ambiental de Exploração de Petróleo e Gás Offshore do Ibama, que ficou pronto em 20 de abril e foi antecipado por SUMAÚMA. O parecer expunha lacunas na previsão dos impactos da atividade nas três terras indígenas da região do Oiapoque, no Amapá, e incertezas no plano apresentado pela estatal para atendimento à fauna em caso de acidente com derrame de óleo – numa área em que há espécies endêmicas ameaçadas e correntes marítimas particularmente fortes. “A ausência de AAAS dificulta expressivamente a manifestação a respeito da viabilidade ambiental da atividade, considerando que não foram realizados estudos que avaliassem a aptidão das áreas, bem como a adequabilidade da região, de notória sensibilidade socioambiental, para a instalação da cadeia produtiva do petróleo”, afirmou Agostinho no despacho.
A necessidade de abordar o efeito cumulativo da exploração – caso as licenças sejam concedidas e caso seja encontrado petróleo em grande quantidade, o que é incerto – foi mencionada em vários pareceres do Ibama no processo de licenciamento do bloco 59. O licenciamento da prospecção de um só poço “não é capaz de avaliar as transformações socioambientais provocadas pelo desenvolvimento do conjunto de empreendimentos”, diz um parecer de 31 de janeiro deste ano. Não é capaz, ainda, “de prever se o petróleo é uma adequada vocação econômica para a região, compatível com as demais vocações”. E acrescenta: “Não é capaz, portanto, de responder a uma pergunta fundamental: determinada região tem aptidão para o desenvolvimento da exploração e produção de petróleo, considerando toda a cadeia envolvida? Em quais condições?”.
Além da manifestação do ministro de Minas e Energia, uma nota foi divulgada pela Petrobras na quarta-feira para reafirmar que vai pedir a reconsideração da negação da licença. Mais um golpe para Marina e para o meio ambiente. A estatal sabe que a reconsideração será analisada pelo próprio Rodrigo Agostinho e que dificilmente o presidente do Ibama mudará a decisão técnica que tomou, uma vez que o processo se arrastava havia nove anos e mesmo assim se avaliou que não há segurança para o licenciamento. Daí a proposta de fazer a avaliação ambiental estratégica, que poderá demorar no mínimo dois anos, como disse Marina em audiência no Congresso.
O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, também desrespeitou Marina Silva e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima ao dizer que a “discussão continua” e que o “Congresso pode contribuir”. Petista, como o presidente da Petrobras, Padilha é um dos responsáveis pela chamada articulação política do Executivo no Congresso Nacional. No parlamento, foi arquitetado outro golpe, ainda mais agressivo, contra a ministra: o desmatamento de seu ministério. A comissão mista, composta de senadores e deputados, criada para analisar a medida provisória que definiu a organização do governo Lula tirou poderes da pasta de Marina e empoderou o grupo do Centrão. Sem uma base coesa e majoritária, Lula cedeu e rifou o ministério de Marina, que não deve mais ter autonomia para gerir o Cadastro Ambiental Rural (CAR) nem a política nacional de recursos hídricos.
Lula não se pronunciou, ainda, sobre as mudanças costuradas no Congresso na estrutura do ministério que ele montou depois de eleito. Marina está se defendendo sozinha de um ataque a dois dos principais compromissos assumidos pelo presidente: a proteção da Amazônia e dos demais biomas e o enfrentamento da crise climática. No Japão, quando questionado sobre o tema da licença ambiental, o presidente deu alento aos defensores da exploração a qualquer custo ao mencionar um dado sempre citado pela Petrobras, o de que o bloco 59 fica a mais de 500 quilômetros da foz do Amazonas. O dado é malicioso porque no processo de licenciamento não se fala do ponto geográfico em que o rio desemboca no Atlântico, mas da influência ambiental de seus sedimentos.
Um estudo recém-concluído sob a orientação de Luciana Gatti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), mostra a importância da bacia da foz do rio Amazonas, cujos sedimentos se espalham por uma área de 300 mil quilômetros quadrados, para a captura de carbono da atmosfera. E isso no momento em que o desmatamento já torna negativo o saldo, em várias áreas da floresta amazônica, entre a captura e a emissão do principal gás que provoca o aquecimento do planeta.
A medida provisória que vai mudar a correlação de forças dentro do governo e o rumo da agenda ambiental de Lula deve ser votada nesta quinta-feira pela Câmara e pelo Senado. Os líderes governistas, que acompanharam a votação na comissão, na quarta-feira, trataram o tema com resignação, sem mostrar nenhuma resistência. Marina Silva sabia que as negociações para enfraquecer o meio ambiente estavam em curso. O que a ministra ainda não sabe é até onde Lula pretende ceder – e se o rompimento entre eles, que ocorreu em 2008, poderá ser reeditado. A diferença agora, em 2023, é que a preocupação do mundo mudou. Politicamente, num planeta em colapso climático, quem mais vai perder é o próprio Lula. E seu terceiro mandato ainda não completou cinco meses.
Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Mark Murray. Editado por Diane Whitty
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Montagem da página: Érica Saboya