Jornalismo do centro do mundo

Cena da gravação dos vídeos com as crianças do conjunto habitacional Santa Benedita, na periferia de Altamira. Agachado, de boné, o artista Joaka Barros, do coletivo de cultura periférica Reação de Rua.

Querida Comunidade SUMAÚMA,

Nesta sétima edição, temos um furo de reportagem sobre o Censo 2022; a incrível saga de um militante da reforma agrária que precisou fugir por 17 anos; uma matéria que resgata a vida de Tanaru, o último de um povo; uma grande reportagem dos efeitos de uma ferrovia na floresta dos Awa Guajá; e uma análise sobre o tratado das florestas assinado pelas potências da biodiversidade – Brasil, República Democrática do Congo e Indonésia. E há algo que nos honra muito, a voz de Raoni, talvez a raiz mais velha e sábia dos povos originários, que há décadas denuncia a catástrofe climática a partir da floresta amazônica. Em vídeo gravado por seu neto Matsi Txucarramãe, o grande líder Kayapó dá seu recado a Lula.

Temos, ainda, o último capítulo de Natureza no Planalto, uma série em que os povos-floresta fazem suas reivindicações ao presidente eleito, que se comprometeu com eles durante a campanha. Começamos com as lideranças dos povos originários, seguimos com as vozes de quilombolas, ribeirinhos, camponeses e militantes dos movimentos sociais urbanos da Amazônia, e, com especial alegria, introduzimos pela voz dos cientistas as reivindicações das pessoas não humanes (dos mamíferos aos répteis, dos fungos aos insetos), mostrando como pode ser uma democracia capaz de incluir as outras espécies. Encerramos com as reivindicações de crianças e adolescentes de Altamira, vivendo nas periferias pelo processo de expulsão de seus pais e avós tanto da floresta quanto dos baixões urbanos (beira do rio).

Mais atingidas por projetos de governos e corporações, assim como pelo crime organizado, crianças e adolescentes raramente são escutados – nem mesmo pela imprensa. Em nossa matéria, explicamos por que escutá-los é uma das premissas de SUMAÚMA. “Lula, escute a nova geração” é uma parceria com a organização Aldeias, que atua junto às crianças do conjunto habitacional Santa Benedita, e foi realizada por jovens artistas do coletivo urbano e periférico Reação de Rua.

Tem sido frequente nos discursos de autoridades a ideia de que é preciso conservar a floresta amazônica, mas sem esquecer as dezenas de milhões de pessoas que vivem nas cidades dos estados da Amazônia Legal. Nós, de SUMAÚMA, concordamos. Em parte.

Não compreendemos a floresta e a cidade como entidades separadas. Assim como as cidades foram construídas sobre os corpos de árvores e de outras espécies, basta olhar as periferias urbanas para perceber que são habitadas por pessoas expulsas da floresta ou por descendentes de pessoas expulsas da floresta, tanto quanto por migrantes que escalaram o mapa até chegar à Amazônia em busca de alguma das tantas promessas (a maioria falsas) de melhoria de vida. Aqueles nascidos na Amazônia, hoje vivendo nas periferias, foram arrancados tanto da floresta quanto de sua identidade. Sem identidade, foram convertidos no genérico “pobre”.

Acreditamos que só é possível proteger a Amazônia restaurando essas pontes quebradas pela longa sequência de parcerias mortíferas entre governos e iniciativa privada – no caso de Altamira, da Transamazônica da ditadura empresarial-militar à Belo Monte dos governos democráticos do PT. E agora a região também está ameaçada pelo projeto de mineração de ouro da corporação canadense Belo Sun, um empreendimento predatório que depende da decisão do governador reeleito do Pará, Helder Barbalho (MDB).

É preciso reflorestar as cidades e reflorestar as pessoas, mudando a relação com a natureza nas zonas urbanas, hoje dominadas por uma elite vinda da exploração predatória da floresta. Sem reflorestar as pessoas, mesmo as que não vieram da floresta mas acabaram nas cidades amazônicas, a relação com a natureza não muda. É um desafio difícil, bem difícil, mas ele precisa ser enfrentado agora, começando pelas crianças das periferias, muitas tão exiladas da floresta que sequer sabem que vivem na Amazônia. Do contrário, corre-se o risco de mais uma intervenção violenta e colonialista, de fora para dentro. Fazer desde dentro não significa apenas fazer com as pessoas locais, mas também fazer a partir de outro tipo de pensamento/entendimento e com outra linguagem.

SUMAÚMA busca restaurar essas pontes com jornalismo.

Tudo indica que o governo Bolsonaro fará maldades contra a natureza e os povos-natureza até o último dia. A mais recente foi descoberta por Talita Bedinelli, editora especial de SUMAÚMA: milhares de indígenas poderão ficar de fora do Censo 2022. Isso significa que, se a sociedade não se mobilizar para reverter esse escândalo, não saberemos o que aconteceu em mais de uma década com os Yanomami, violentamente atingidos pelo garimpo ilegal, nem será possível planejar e executar políticas públicas consistentes para essa população durante uma década inteira. Vale a pena lembrar que o apagão estatístico é outra face do genocídio.

A autora desta matéria exclusiva é também a jornalista que fez a reportagem de estreia de SUMAÚMA: “Por que os garimpeiros comem a vagina das mulheres Yanomami?“. Este extraordinário trabalho, feito por Talita Bedinelli em parceria com a indigenista e antropóloga Ana Maria Machado e o fotógrafo Pablo Albarenga, também editor de imagem de SUMAÚMA, foi reconhecido com o segundo lugar na categoria reportagem do prêmio do Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Comemoramos muito ter recebido um prêmio de jornalismo já na primeira reportagem, e com pouco menos de 3 meses de existência.

O jornalista maranhense Ed Wilson estreia em SUMAÚMA como autor da reportagem sobre a incrível fuga de 17 anos de Geraldo Magela de Almeida Filho, militante da reforma agrária muito próximo à Dorothy Stang. Na mesma época do assassinato da missionária em Anapu, no Pará, Magela foi acusado de um crime que não cometeu. Precisou trocar de nome e de estado, existindo na clandestinidade como caixeiro-viajante de produtos country cujos fregueses são, em sua maioria, ruralistas da região amazônica. Ed Wilson, que conta essa saga a pedido de SUMAÚMA, construiu sua carreira trabalhando nos movimentos sindical e social do Maranhão, tem 2 livros publicados e se prepara para publicar o terceiro, todos eles esmiuçando o fascinante mundo das rádios comunitárias. É também professor de jornalismo da Universidade Federal do Maranhão, na capital São Luiz, e produtor de conteúdos da Agência Tambor.

Soledad Barruti, uma das jornalistas mais reconhecidas da América Latina, é a autora de uma grande reportagem em que mostra o impacto do trem da Vale, a maior produtora de minério de ferro do mundo, no território do povo Awa Guajá. Merece cada minuto de sua leitura este documento sobre a luta de guardiões da Amazônia contra o fim do mundo, enfrentando corporações poderosas e em constante processo de greenwashing.

Catarina Barbosa, jornalista de Belém do Pará, conta a história de Tanaru, o último sobrevivente de um povo vítima de genocídio ou tanto quanto podemos saber sobre aquele que preferia ficar longe de nós porque somos assassinos; que enquanto esteve vivo escapou da fúria dos brancos; que morreu sem ser morto. A extraordinária reXistência de Tanaru supera sua morte e pode ser decisiva para o destino da floresta.

Em artigo especial para SUMAÚMA, Daniela Chiaretti, uma das mais respeitadas jornalistas especializadas em meio ambiente a partir da perspectiva do sul global, escreve sobre o tratado assinado pelas potências da biodiversidade – Brasil, República Democrática do Congo e Indonésia. “Pela natureza ou apenas por dinheiro?” é a pergunta espinhosa. O tema é fundamental para sermos capazes de compreender o que está em jogo no debate sobre a Amazônia. Expressões como “créditos de carbono” são esgrimidas sem que a maior parte da população tenha acesso a elas. É uma forma deliberada de exclusão. SUMAÚMA buscará traduzir os principais temas do debate global sobre a maior floresta tropical do planeta para que, mais uma vez, as decisões não venham apenas das cúpulas e se convertam em mais uma intervenção imposta à natureza e seus povos.

Esta sétima newsletter marca a última edição deste ano da recém-semeada de SUMAÚMA – jornalismo do centro do mundo, lançada em 13 de setembro. Com uma equipe muito pequena, inicialmente de 5 pessoas, fizemos o possível (e às vezes o impossível) para lançar essa plataforma trilíngue de jornalismo sediada na Amazônia antes desta eleição histórica no Brasil. Queríamos fazer a nossa contribuição no campo do jornalismo, mesmo que ela fosse pequena, para um melhor desfecho deste momento-limite vivido pela Amazônia e pelo Brasil. Em menos de 3 meses publicamos mais de 50 reportagens e artigos e também alguns vídeos e histórias em quadrinhos.

Também queríamos reforçar, nesta estreia, nossas premissas. A partir de nosso mantra, “a floresta primeiro”, mostramos na série Natureza no Planalto quem deve falar e ser escutado primeiro na Amazônia, com a Amazônia, sobre a Amazônia. Introduzimos também nossa reivindicação de que, no século 21, uma democracia só pode ter este nome se incluir as outras espécies. E, por fim, estabelecemos a escuta das novas gerações como princípio irredutível. Estabelecemos ainda que nosso jornalismo também é oral, em respeito à transmissão oral de conhecimento e de notícias dos povos-floresta, com a realização da Rádio SUMAÚMA. Nosso podcast quinzenal pode ser escutado em qualquer tocador. É apresentado pela indígena Elizângela Baré e pelo ribeirinho Maickson Serrão, em parceria com a Rede Wayuri de Comunicação Indígena. A produção é da Vem de Áudio.

Agora, nossa próxima newsletter será lançada apenas em 10 de janeiro. Até lá, vamos arrumar a casa porque queremos estar preparados para fazer muito mais em 2023. Mas não deixaremos vocês sem nossa companhia: uma vez por semana haverá uma reportagem, um artigo ou um podcast para nossos leitores ativos. Fortalecer nossa comunidade de leitores é uma de nossas metas para 2023. Como não cansamos de repetir, sem a sua participação e o seu apoio, SUMAÚMA não será capaz de virar árvore no jornalismo do planeta.

Agradecemos profundamente quem nos ajudou a semear SUMAÚMA dando sua contribuição no Apoia-se e esperamos que uma de suas metas para o ano que vem (e que 2023 venha logo para Bolsonaro deixar o Planalto!) seja seguir ainda mais perto da gente. Esperamos que nosso jornalismo, nestes pouco menos de 3 meses iniciais, tenha estado à altura de sua confiança. De nossa parte, posso dizer que fizemos de SUMAÚMA o centro de nossa vida, porque, afinal, assim é um parto. Terminamos o ano como mães/pais de recém-nascido: descabeladas, olheiras fundas, ginástica adiada para o ano que vem, contas atrasadas, sonhando com pelo menos 7 horas ininterruptas de sono, ansiosas por ler aquele romance que nos olha desesperançado da cabeceira. Mas cheias de alegria pelo que realizamos.

Na última quinta-feira, 2 de dezembro, caiu a primeira grande chuva em Altamira. Ela marca o início do inverno e também, esperamos, o fim das queimadas criminosas. Nem os grileiros e madeireiros conseguem colocar fogo numa floresta encharcada. Gostaria que vocês estivessem com a gente para ver isso. Chove, e a floresta se transmuta. Fica mais verde e, juro, temos certeza de ver a altura das plantas saltar diante de nossos olhos abismados. A gente então entende como a Amazônia ainda existe, apesar de todos os ataques. Sua capacidade de regeneração, quando ainda tem alguma saúde, é impressionante. Mas sabemos que os ataques têm sido tão enormes e violentos que essa capacidade de regeneração já está comprometida em quase 20%. Assim, respiramos neste começo de inverno amazônico. Mas em pé, porque a luta segue e por enquanto estamos sendo massacrados.

Começou a chover e nosso cachorro Babaju (contração de Babaçu Junior) fugiu com medo dos trovões e precisamos correr atrás dele antes que atacasse o galinheiro do vizinho. É um cachorro enorme, mas tem pânico de tempestade. Nossa cozinha alagou, porque a natureza dá um jeito de bagunçar nossas telhas porque somos intrusos, assim como alagou a casa dos patos e das galinhas. Enquanto eu coordenava a edição desta newsletter, Jonathan Watts pregava tábuas para impedir o afogamento dos pintinhos e os patos nadavam como se fosse Natal. Conto isso para vocês saberem que a vida de quem faz SUMAÚMA é como a de vocês, toda misturada.

Quando a chuva cai forte, enverdecendo o que já é verde, sinto uma alegria maior do que eu. É uma alegria assim que sentimos porque SUMAÚMA nasceu. E porque você acreditou na gente.

Que venha 2023. Porque faremos jornalismo desde a floresta e lutaremos com alegria feroz.

Eliane Brum
Idealizadora e diretora de redação de SUMAÚMA

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