A bancada ruralista, a mais poderosa do Congresso, conseguiu consolidar privilégios para o agronegócio na versão mais recente do projeto de lei para criar um mercado de carbono regulado no Brasil. A agropecuária, atividade econômica que mais polui no país, não será regulada pelo novo mercado, que tem o objetivo de reduzir as emissões de gases de efeito estufa de grandes empresas poluidoras. Sem arcar com ônus algum, os fazendeiros ainda ganharam um bônus: a possibilidade de vender créditos de carbono para as companhias que serão reguladas, incluindo créditos gerados com a conservação das áreas da Floresta Amazônica e de outros biomas nativos que eles já são obrigados, por lei, a manter em suas propriedades.
A criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões – o nome oficial do mercado regulado – é uma prioridade do governo Lula, que se mobilizou para acelerar sua tramitação no Congresso. O Senado aprovou o seu projeto de lei em outubro de 2023. Já nessa versão, a Frente Parlamentar da Agropecuária – formada por 50 dos 81 senadores e por 290 dos 531 deputados – conseguiu isentar a agricultura e a pecuária de serem submetidas a um limite de emissões. A Câmara, no entanto, fez seu próprio projeto, aprovado em dezembro de 2023, que ampliou os benefícios para o agro e também para as empresas privadas desenvolvedoras de projetos de crédito de carbono florestal.
Desde então, divergências entre as duas Casas vinham impedindo a aprovação da lei. No dia 4 de novembro, depois de meses de negociações, a relatora do projeto no Senado, Leila Barros (PDT do Distrito Federal), apresentou uma nova versão do texto que recebeu da Câmara. Barros mudou a redação de trechos que provocavam insegurança jurídica ao contrariar normas da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima – um tratado internacional que foi assinado pelo Brasil e, portanto, tem valor de lei no país. Em contrapartida, manteve os benefícios do agronegócio. Provavelmente ciente de que, se os retirasse, a lei não teria nenhuma chance de ser aprovada.
“O mercado regulado proposto objetiva incentivar uma economia menos intensiva em carbono para setores como indústria, resíduos e transportes, bem como para a própria agropecuária, que poderá transacionar resultados de redução e de remoção desses gases [do efeito estufa] pela manutenção da floresta em pé, pela restauração de passivos ambientais do Código Florestal e por práticas agrícolas de baixo carbono”, enumerou a senadora em seu relatório, num aceno à bancada ruralista e sua pressão eterna por “incentivos” para o setor.
Na avaliação de uma autoridade do governo, a nova proposta está longe do ideal, mas pelo menos é funcional, sem as contradições legais que ameaçavam comprometer o mercado regulado de carbono e a reputação do país no comércio internacional de emissões. A questão é que o texto de Leila Barros ainda pode sofrer emendas antes das votações no Senado e na Câmara – e não há nenhuma expectativa de que qualquer mudança seja para melhorar a lei. Segundo o site ClimaInfo, até o dia 5 de novembro a bancada ruralista protocolou mais 24 emendas à proposta da relatora.
O nó da disputa que atrasou a tramitação da lei está no fato de que o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões aceitará créditos de carbono do mercado privado, que serão convertidos em Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões. Esses certificados poderão ser comprados pelas empresas que serão submetidas ao limite de poluição, que os usarão para compensar parte de suas emissões de gases de efeito estufa. Os créditos de carbono que forem registrados como certificados de redução ou remoção de emissões valerão mais, porque terão o selo de aprovação do sistema oficial.
Hoje, no Brasil, os créditos de carbono são negociados em esquemas privados, dentro do chamado mercado voluntário, que não é regulado pelo governo. Na região amazônica e em outros biomas como o Cerrado e a Mata Atlântica, fazendeiros e comunidades fazem acordos com empresas que desenvolvem os projetos de carbono, prometendo impedir o desmatamento. Vários projetos acabaram envolvidos em controvérsias, por denúncias de grilagem de terras públicas ou de violação dos direitos de Indígenas e povos tradicionais.
Quando o projeto de lei permitiu que créditos de carbono fossem registrados como certificados de redução ou remoção de emissões, criou uma ponte entre o mercado regulado e o voluntário. É essa ponte que os fazendeiros e as empresas de projetos de carbono querem assegurar que poderão atravessar, muitas vezes disputando uma corrida com os governos dos estados amazônicos, que também querem vender créditos de carbono florestais.
A demora na tramitação da lei frustrou o governo e o setor industrial. Um mercado de carbono regulado, no qual atividades altamente poluidoras cumpram seus limites, ajudaria o Brasil a atingir suas metas de redução de emissões sob o Acordo de Paris, que visa conter a emergência climática. Também facilitaria a participação do país em mecanismos globais de comércio de carbono criados pelo Acordo de Paris, que serão implementados depois que suas regras forem definidas pelas nações signatárias da Convenção do Clima. É esperado que isso aconteça na conferência sobre mudança do clima deste ano, que acontecerá neste mês de novembro, no Azerbaijão.
Um mercado regulado ajudaria as indústrias exportadoras a evitar barreiras comerciais como as adotadas pela União Europeia, onde um Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira entrará em vigor em 2026. Inicialmente, o mecanismo aplicará tarifas mais altas a produtos como aço e alumínio que não estejam sujeitos a controles de emissões no seu país de origem. O Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds), que reúne empresas industriais, de energia e bancárias, defende um sistema federal de comércio de emissões desde 2016.
Tirando leite do sistema
Os problemas na tramitação da lei começaram ainda no Senado, quando o texto aprovado excluiu as atividades agropecuárias primárias – como a criação de bois ou o cultivo de soja – de serem submetidas ao limite de poluição. Por causa principalmente do metano liberado na digestão dos bois e do uso de fertilizantes sintéticos, essas atividades hoje são responsáveis por 28% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, proporção que só é menor do que os 46% liberados na atmosfera pela destruição de biomas nativos para dar lugar a pastos e plantações – ou seja, também por causa da agropecuária.
FUMAÇA NO PASTO EM LÁBREA: COM ARROTO DE BOI, FERTILIZANTES SINTÉTICOS E DESMATAMENTO, O AGRO RESPONDE POR 74% DAS EMISSÕES. FOTO: EDMAR BARROS/AMAZÔNIA LATITUDE
Não era o plano oficial aplicar o limite às atividades primárias do agro em curto prazo, porque, inclusive internacionalmente, há dificuldades de calcular as emissões do setor, que variam segundo o rebanho criado e a forma de cultivo de vegetais. Atualmente, várias instituições e universidades brasileiras trabalham para aprimorar esse cálculo. Portanto, a ideia era deixar em aberto essa possibilidade.
Além disso, a Frente Parlamentar da Agropecuária obteve no Senado outra vitória, ainda mais controvertida: uma cláusula do projeto de lei permitiu que créditos de carbono sejam obtidos apenas cumprindo a lei, isto é, recompondo as reservas legais e Áreas de Preservação Permanente determinadas pelo Código Florestal. Isso significa que fazendeiros que desmataram ilegalmente poderão ser recompensados por restaurar essas áreas. Algumas organizações que atuam no mercado voluntário aceitam esse tipo de crédito, mas isso contraria as regras do Acordo de Paris. Essas regras dizem que os créditos de carbono devem ter “adicionalidade regulatória”, ou seja, ter origem em atividades que não são meras exigências legais.
Ainda não satisfeitos, os ruralistas deram um passo além quando o projeto de lei chegou à Câmara. O texto aprovado na Casa presidida por Arthur Lira era ainda mais favorável às empresas e aos proprietários de terras envolvidos na venda de créditos florestais para o mercado voluntário.
Para começar, os deputados ampliaram a possibilidade de os fazendeiros obterem créditos de carbono com as Áreas de Preservação Permanente e as Reservas Legais: além de restaurar florestas que tenham sido ilegalmente destruídas, o simples fato de mantê-las já lhes possibilita gerar créditos. No Senado, a relatora Leila Barros manteve agora esse dispositivo, que também foi sugerido em uma emenda dos senadores bolsonaristas Tereza Cristina, do PP do Mato Grosso do Sul, e Zequinha Marinho, do Podemos do estado do Pará.
O PODER DE LIRA: A CASA PRESIDIDA PELO DEPUTADO AMPLIOU BENEFÍCIOS PARA O AGRO E EMPRESAS DE CRÉDITOS DE CARBONO. FOTO: ZECA RIBEIRO/CÂMARA DOS DEPUTADOS
Ser ou não ser REDD+
A mudança mais espinhosa, porém, feita pelos deputados dizia respeito à redução das emissões que acontece quando o desmatamento diminui. Hoje, essa redução é reportada pelo Brasil à ONU dentro de um mecanismo conhecido como REDD+, sigla em inglês para Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal. No mecanismo, o governo brasileiro informa quanto o país deixou de emitir anualmente em função da queda do desmatamento – quando há de fato uma queda. Em troca, se credencia a ser pago por isso, como acontece no Fundo Amazônia. Quando há um pagamento, ele é registrado na contabilidade do REDD+ como sendo referente a uma parcela da redução total de emissões.
Empresas privadas também adotaram a sigla REDD+ para projetos que prometem reduzir as emissões provocadas pelo desmatamento. Mas, atualmente, os créditos desses projetos vendidos no mercado voluntário não entram nessa conta oficial – ou seja, não são registrados na ONU como pagamento por uma parte da redução total das emissões florestais brasileiras. Um dos motivos é que o mercado voluntário tem padrões mais flexíveis, porque aceita o conceito de “desmatamento evitado”, que é uma projeção um tanto especulativa para o futuro. As contas oficiais reconhecem apenas “emissões reduzidas”, o que significa uma queda do desmatamento que já ocorreu e pode ser medida.
É diferente do que acontece com os estados, que recebem 60% do que o governo relata à ONU como redução de emissões florestais. Com a sua parte, alguns governos, como os do Acre e de Mato Grosso, fizeram programas semelhantes ao Fundo Amazônia, nos quais recebem doações. Outros, como o do Pará, atualmente, criaram programas para converter as suas emissões reduzidas em créditos para vender no mercado voluntário.
O texto dos deputados, a fim de abrir a porta do mercado regulado para os créditos de REDD+ do setor privado, introduziu definições que entravam em conflito com o que foi acordado no mecanismo da ONU. São esses alguns dos principais trechos que o texto proposto pela senadora Leila Barros tenta agora corrigir.
O principal argumento da Câmara foi de que era preciso garantir os direitos de propriedade privada nos programas de REDD+ dos governos. Assim, o texto dos deputados estabeleceu que proprietários de imóveis ou populações que tenham o usufruto ou a concessão de uso de terras públicas – tais como povos Indígenas, comunidades extrativistas e assentados da reforma agrária – poderão retirar sua fazenda ou território desses programas para implantar neles seus próprios projetos de crédito de carbono. Para isso, basta que façam uma comunicação à Comissão Nacional para REDD+ (Conaredd+), ligada ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que administra o programa REDD+ oficial. Os governos, por sua vez, quando negociarem créditos de carbono como resultado da redução do desmatamento, não poderão considerar esses imóveis na geração de créditos.
Um dos problemas é que o texto da Câmara não previa esse desconto quando não houvesse venda de créditos, isto é, quando o governo federal ou os estados recebessem doações internacionais. Para o governo Lula e organizações ambientalistas como o Observatório do Clima, isso representava uma autorização legal para uma dupla contagem, porque a queda das emissões florestais naquelas áreas com projetos de REDD+ privados estaria sendo remunerada duas vezes – quando um governo recebesse a doação e quando o crédito fosse vendido no mercado voluntário.
Essa possibilidade de dupla contagem – que o texto proposto por Leila Barros tenta agora eliminar – era uma das ameaças à credibilidade do futuro mercado regulado brasileiro. Nos acordos climáticos da ONU, a dupla contagem é um pecado capital porque significa um aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera.
Numa entrevista em agosto, Raoni Rajão, chefe do Departamento de Políticas de Controle do Desmatamento e Queimadas do Ministério do Meio Ambiente, disse que o governo já estava sendo questionado por países doadores e empresas interessadas em comprar créditos de carbono do Brasil. “Grandes empresas, como Amazon e Microsoft, estão preocupadas com a dupla contagem. Países como Noruega, Estados Unidos e Inglaterra estão nos perguntando: ‘Olha, Brasil, vocês estão recebendo doações para o Fundo Amazônia, os estados estão vendendo créditos e há projetos [privados] nesses estados. Então, como vocês garantem que não haja dupla contagem?’. Há uma exigência de um padrão internacional de integridade, para que haja um sistema único de contabilidade.”
Estados e empresas em guerra
Além de doadores do Fundo Amazônia, Noruega, Estados Unidos e Reino Unido são países da Coalizão Leaf, que negocia programas de crédito de carbono resultantes da redução do desmatamento com governos estaduais da Amazônia. Lançada em 2021, a Leaf só faz acordos com governos, sejam eles nacionais ou subnacionais, e reúne multinacionais interessadas em comprar esses créditos no mercado voluntário. O primeiro acordo da Coalizão Leaf no Brasil, com o governo do Pará, foi anunciado em setembro. Pelo acordo, empresas da Leaf comprarão até 12 milhões de créditos de carbono do estado, correspondentes a uma queda das emissões por desmatamento entre os anos de 2023 e 2026, a 15 dólares cada um. O valor total da transação chega a 180 milhões de dólares, ou cerca de 1 bilhão de reais.
COMEMORAÇÃO ANTECIPADA: HELDER BARBALHO (NO CENTRO) ANUNCIOU ACORDO EM SETEMBRO, MAS CRÉDITOS DE CARBONO SÓ DEVEM SER EMITIDOS EM 2025. FOTO: THALMUS GAMA/AGÊNCIA PARÁ
Não é dinheiro fácil, porém. Vai demorar pelo menos um ano para que algum valor chegue aos cofres do Pará. Os primeiros créditos ainda terão que ser avalizados pela Coalizão Leaf antes de serem emitidos, e ainda haverá negociações para decidir quanto do arrecadado será destinado a Indígenas, Quilombolas, comunidades extrativistas e agricultores familiares, e como isso será feito. Embora a direção da Federação dos Povos Indígenas do Pará tenha dado seu aval ao acordo, houve lideranças que reclamaram de não terem sido consultadas, como Alessandra Korap, presidente da Associação Indígena Pariri, do povo Munduruku, que liderou um manifesto de 38 associações contra o acordo. Além disso, os créditos contemplados são uma fração do total de 390 milhões de créditos que o Pará estima que poderá emitir até 2027, segundo o governador Helder Barbalho.
As negociações da Coalizão Leaf desencadearam uma batalha por territórios entre os estados e as empresas privadas. Estas apontam o risco de fracasso dos programas de REDD+ governamentais por descontinuidade administrativa – como aconteceu com o Fundo Amazônia sob o governo do extremista de direita Jair Bolsonaro. No Acre, governado pelo bolsonarista Gladson Cameli, que deverá ser o próximo estado a assinar um acordo com a Leaf, parte das associações indígenas demonstra descontentamento com a “falta de transparência” das negociações.
Hoje, a grande maioria dos projetos florestais privados para vender créditos no mercado voluntário está em fazendas particulares. Com o caos fundiário na Amazônia, existe o risco de que negócios acabem interrompidos ou denunciados por grilagem de terras, como aconteceu neste ano na Operação Greenwashing, da Polícia Federal. Por isso, as áreas mais cobiçadas são as terras públicas destinadas a povos Indígenas e comunidades tradicionais, que estão em geral entre as mais conservadas. Os acordos da Coalizão Leaf preveem a repartição de benefícios com essas populações, mas as empresas de carbono acenam com ganhos monetários diretos maiores para os povos da floresta e para os fazendeiros – embora esse retorno seja mais incerto, porque nos projetos privados não costuma haver um comprador firme de créditos.
DIVISÃO DE LIDERANÇAS: ALESSANDRA KORAP SE OPÔS AO ACORDO DE CARBONO QUE FOI ENDOSSADO POR DIREÇÃO DA FEDERAÇÃO INDÍGENA DO PARÁ. FOTO: MICHAEL DANTAS/SUMAÚMA
Se fosse mantido em sua versão original, o texto da Câmara inviabilizaria futuros acordos dos estados com a Coalizão Leaf. As empresas da coalizão querem um compromisso de fornecimento de créditos por vários anos. Porém, o projeto de lei dos deputados proibia “qualquer espécie de venda antecipada ou promessa de venda” de créditos de carbono de programas jurisdicionais “referentes a período futuro”. No texto que foi proposto por Leila Barros, isso também muda, permitindo a “promessa de venda”, desde que proprietários privados não tenham o seu direito de vender créditos de carbono prejudicado.
Juliana Santiago, que já foi gestora do Fundo Amazônia, é hoje a representante no Brasil da Emergent, uma organização que atua como coordenadora da Coalizão Leaf. Ela explica que as empresas da Leaf fazem um planejamento de longo prazo de compensação de suas emissões e buscam previsibilidade. “O Brasil é um grande player e potencial grande fornecedor, mas acertar no marco legal trará segurança jurídica para todas as partes e a atração desse capital ao país”, diz Juliana. Ela afirma que não há problema em conciliar os programas estaduais com os projetos privados. “Ao contrário, uma jurisdição que tem um compromisso com todo o território traz segurança e atrai capital para projetos [privados], porque reduz, por exemplo, o risco de vazamento [quando o desmatamento diminui numa área e aumenta numa área vizinha]. E áreas privadas podem ter incentivo em manter seus excedentes de reserva legal com projetos de carbono”, argumenta. Segundo Juliana, “uma metodologia de aninhamento consistente, adotada pelo país, permitirá a conciliação desses dois modelos”.
“Aninhamento” é o nome que se dá, internacionalmente, à conciliação contábil entre projetos privados e programas governamentais de REDD+, para que uma mesma redução de emissões não seja contada – nem paga – duas vezes. O projeto de lei da Câmara não deixava claro como isso seria feito – se seriam descontadas as áreas dos projetos privados ou a quantidade de créditos gerados por eles. O texto de Leila Barros busca acabar com esse problema ao estabelecer o desconto das áreas. Com isso, tenta evitar uma longa discussão sobre a compatibilização das diferentes metodologias empregadas para a geração dos créditos.
A Comissão Nacional para REDD+ criou um grupo de trabalho, em novembro de 2023, para discutir a repartição dos resultados oficiais da redução das emissões florestais também com empresas privadas, além dos estados. Outro grupo de trabalho, criado em março deste ano, discute critérios comuns de medição dessa redução. Porém, as empresas desenvolvedoras de projetos para o mercado voluntário não querem estar submetidas a normas da Comissão Nacional para REDD+ e preferem continuar autorreguladas. Num documento de maio deste ano, a Aliança Brasil NBS, que reúne as principais empresas do setor, e outras entidades propuseram que toda referência à Conaredd+ seja excluída do projeto de lei. Isso inclui, por exemplo, o trecho – mantido no novo texto – que determina que a comissão seja ouvida quando o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões determinar que tipo de crédito de carbono de projetos de REDD+ poderá ser convertido em Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões. O argumento é que o Conaredd+ não tem legalmente a atribuição de decidir sobre metodologias usadas no mercado voluntário.
Aparentemente, e apesar da disputa de alguns deles com o setor privado, os estados também não querem que o governo federal interfira em seus programas de REDD+. O Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal, uma entidade que defende “projetos de interesse comum” dos nove estados da região, foi um dos signatários do documento de maio.
Estados do bioma amazônico e do Cerrado não negociam só com a Coalizão Leaf. Em 2023, o Tocantins anunciou um acordo com uma empresa suíça para vender créditos do seu programa jurisdicional. Já o Amazonas selecionou empresas privadas, entre elas a brCarbon e a Carbonext, para desenvolverem projetos de carbono em unidades de conservação estaduais. Em agosto, o Ministério Público Federal no Amazonas recomendou a suspensão desses projetos, argumentando que comunidades que vivem nessas áreas não haviam sido consultadas. A recomendação, porém, acabou sustada em setembro, provisoriamente, pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
Bruno Brazil, que é diretor da brCarbon, considera que caberia aos estados a tarefa de fazer o “aninhamento” dos projetos privados em seus programas de REDD+. Ele argumenta que esses projetos não afetam os ganhos dos governos estaduais. “Os projetos geram em escala de milhares ou milhões de créditos, enquanto os estados geram em escala de centenas de milhões ou mesmo bilhões. É megaton contra gigaton”, disse Brazil. Para ele, o problema é político: “O estado olha para os desenvolvedores de projetos como usurpadores de crédito, e o governo federal olha para os estados como usurpadores de controle”.
Todas essas disputas ameaçam minar o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões antes de ele nascer. O mercado regulado não cumprirá seu objetivo de obrigar a indústria, o setor de energia e os transportes a poluir menos se deixar que esses setores compensem suas emissões com créditos de carbono florestal que tenham sua integridade questionada – ou seja, quando há dúvidas de que esses créditos representem de fato uma redução adicional, além do que a Natureza faria por si própria, da quantidade de gases de efeito estufa na atmosfera.
FUMAÇA DE QUEIMADA EM BERURI: O GOVERNO INDICA PREFERÊNCIA POR ACEITAR NO MERCADO REGULADO CRÉDITOS DE RESTAURAÇÃO E REFLORESTAMENTO. FOTO: MICHAEL DANTAS/SUMAÚMA
A tarefa vital do reflorestamento
O governo Lula tem indicado que, se for para aceitar créditos florestais do mercado voluntário no Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões, prefere os de projetos de restauração de áreas degradadas e reflorestamento. Em médio e longo prazo, essas atividades criam novas áreas que absorvem dióxido de carbono. Por esse motivo, os créditos que geram são chamados de créditos de remoção de gases de efeito estufa da atmosfera, e continuariam a ser valorizados mesmo se o desmatamento fosse controlado.
Isso é crucial. Cientistas como Carlos Nobre alertaram para o fato de que, dada a mudança climática e o que já foi destruído, a Amazônia não precisa apenas acabar com o desmatamento, mas também replantar a floresta com árvores nativas, a fim de evitar que ela chegue ao ponto de não retorno – quando o bioma não consegue mais se regenerar e perde sua função de regulação do clima.
Ninguém do governo diz isso com todas as letras, mas a preferência por créditos de remoção fica clara em políticas oficiais. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) criou fundos para financiar a restauração e o reflorestamento. E o Serviço Florestal Brasileiro, ligado ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, prepara o lançamento de editais para a restauração, por empresas, de áreas degradadas de florestas públicas federais na Amazônia.
Nesse programa, segundo o governo, há dois atrativos principais para os empresários. O primeiro é a garantia de que não haverá problemas com a propriedade da terra – como ela é pública, não existe o risco de montar um negócio numa fazenda que pode ser grilada, como costuma acontecer na Amazônia. O segundo é a possibilidade de que as empresas gerem créditos de remoção para vender no mercado voluntário. Para que isso seja possível, o governo baixou um decreto, em junho deste ano, permitindo que os concessionários de florestas públicas federais – ou seja, as empresas autorizadas a atuar nesses locais – desenvolvam projetos de carbono.
Antes de lançar os primeiros editais desse programa, para três diferentes áreas da Floresta Nacional do Bom Futuro, em Rondônia, o governo fez consultas com comunidades do entorno e com empresas interessadas. Jeronimo Roveda, diretor da Carbonext, uma das maiores desenvolvedoras brasileiras de projetos de carbono florestal, acompanhou as consultas. Segundo ele, como os projetos de reflorestamento exigem investimento maior do que os de “desmatamento evitado”, as empresas querem garantias de que os créditos gerados nessas concessões terão o aval do governo para futuramente serem comercializados nos mercados do Acordo de Paris como Itmo, sigla em inglês de Resultados de Mitigação Internacionalmente Transferidos.
Os Itmos são muito valorizados porque o país que comprá-los poderá abater seu valor em toneladas de carbono de suas emissões reportadas à Convenção do Clima. Por exemplo, se emitir 100 mil toneladas por ano e comprar 2 mil toneladas – ou 2 mil Itmos –, um país vai reportar que emitiu 98 mil toneladas de carbono. Por isso, o país onde os Itmos são gerados terá que somar esse valor às suas próprias emissões – ou seja, se emitiu 100 mil toneladas, terá que reportar que emitiu 102 mil. Isso significa que, internamente, terá que reduzir essa poluição de outra forma, para não comprometer a meta geral de redução de gases de efeito estufa na atmosfera.
Em entrevista em agosto, Aloisio Melo, diretor de Política Climática da Secretaria de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente, lembrou que o Brasil ainda está longe de poder autorizar a negociação de Itmos, mesmo que os mercados do Acordo de Paris comecem a funcionar em curto prazo. O Brasil só poderá fazer isso, explicou Melo, quando reduzir mais as emissões do que se comprometeu a fazer e tiver um “excedente” para negociar. “O aumento do desmatamento [sob Bolsonaro] jogou nossas emissões lá para cima, nossa meta é apertada e não é óbvio que a gente vai ter esses resultados para vender”, diz ele.
Quando isso acontecer, ressaltou Melo, uma decisão sobre que tipo de atividade de redução ou remoção de carbono poderá gerar Itmos deverá ser tomada levando em conta as “prioridades estratégicas” do país, “de quem contribui mais para o desenvolvimento tecnológico, para destravar algumas atividades que precisam de incentivo”. Outro critério será a “integridade ambiental e socioambiental” dos créditos de carbono, quer dizer, se eles de fato representam uma quantidade menor de gases de efeito estufa na atmosfera e levam em conta os direitos das comunidades em que são gerados. “Não é uma coisa que eu vou beneficiar A ou beneficiar B, tem que ter um sistema muito transparente porque é uma responsabilidade do país”, disse ele.
Além das iniciativas que tentam promover a restauração florestal, o governo propõe a criação de um fundo internacional para remunerar os países com florestas tropicais. A ideia é fugir da lógica do mercado de carbono, porque nesse fundo o valor das florestas não será medido em toneladas de carbono, como acontece hoje no mecanismo REDD+, mas pela área que o bioma ocupa. A ideia é que os países sejam pagos por hectare de florestas que conservam. A proposta do fundo é captar dinheiro e aplicá-lo no mercado financeiro, remunerando também os investidores, que poderão ser privados ou governamentais. A ideia foi lançada de forma embrionária em 2023. O governo Lula vem articulando o apoio de outros países florestais, como a Colômbia, e espera que o fundo possa começar a funcionar até a Conferência do clima de 2025, a COP-30, em Belém.
Com propostas como essas, o governo tenta assumir a iniciativa na valorização dos serviços ambientais que os biomas brasileiros prestam ao país e ao mundo. A questão é se acabará levando os questionamentos que existem do mercado privado de créditos de carbono para dentro do novo mercado regulado.
TERRA INDÍGENA ITUNA/ITATÁ: A CHANCE DE NEGOCIAR CRÉDITOS NO NOVO MERCADO CAUSA DISPUTA ENTRE FAZENDEIROS, EMPRESAS E GOVERNOS. FOTO: LELA BELTRÃO/SUMAÚMA
O que falta nos direitos dos povos
Por causa das denúncias de assédio dos “caubóis do carbono” a povos Indígenas e comunidades tradicionais, o projeto de lei que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões incluiu uma seção que enumera medidas para proteger os direitos dessas populações nos projetos de crédito de carbono. A seção reconhece o direito delas de comercializar os créditos provenientes das terras públicas das quais têm o usufruto ou a concessão de uso.
Essa parte do texto sofreu duas alterações na Câmara, que foram mantidas na nova versão. Na mais importante delas, foi eliminado o requisito de que os projetos de carbono tenham a anuência prévia dos órgãos públicos responsáveis pela gestão desses territórios – tais como, em nível federal, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O texto da Câmara estabelece apenas a obrigatoriedade de que esses órgãos sejam informados antes da implementação dos projetos, “para eventual acompanhamento a pedido dos titulares de créditos de carbono”, isto é, as populações dessas terras.
A mudança teve o apoio de organizações não governamentais que atuam com essas comunidades, como o Instituto Socioambiental, o ISA. Em novembro de 2023, o ISA argumentou que a necessidade de anuência prévia interferia na autonomia dos Indígenas. “Não cabe ao poder público dizer se aquela comunidade pode ou não pode fazer um projeto na área dela. Isso foi uma demanda muito forte do movimento ambientalista indigenista”, comentou Raoni Rajão, do Ministério do Meio Ambiente.
O texto da Câmara prevê que o processo de consentimento das comunidades aos projetos de carbono deverá ser feito por meio da Consulta Livre, Prévia e Informada. E que essa consulta deverá ser supervisionada pelo Ministério dos Povos Indígenas, pela Funai e pela Câmara Temática Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal. Determina ainda que os contratos com as empresas que desenvolvem os projetos deverão incluir cláusula sobre a repartição “justa e equitativa” do dinheiro da venda dos créditos de carbono, que deverá ser depositado em “conta específica”. Outra cláusula dos contratos terá que prever “indenização” por eventuais danos coletivos decorrentes do projeto.
A segunda mudança na Câmara foi o estabelecimento de percentuais mínimos de créditos que deveriam caber aos Indígenas, às comunidades tradicionais e aos assentados da reforma agrária – 50% no caso de projetos de remoção de carbono (restauração e reflorestamento) e 70% em projetos de REDD+. Por motivos diferentes, a oposição a essa cláusula une proprietários de terras, empresas privadas e organizações ambientalistas. O Observatório do Clima argumentou, em nota, que os percentuais parecem “querer garantir um lucro indevido às empresas desenvolvedoras de projetos”. Já as empresas disseram, em documento assinado pela Aliança Brasil NBS, que determinar a divisão dos créditos sem levar em conta as especificidades de cada projeto e comunidade poderá torná-los inviáveis ou levar a projetos sem integridade.
Paralelamente à tramitação da lei, a Comissão Nacional para REDD+ criou em 2023 um grupo de trabalho para “estabelecer diretrizes e regras” para projetos e programas de REDD+ em territórios Indígenas e tradicionais, incluindo os do mercado voluntário. Em abril deste ano, a Funai recomendou que as associações Indígenas não assinem contratos de carbono até que essas diretrizes sejam definidas. Agora, a conclusão do trabalho na Conaredd+ depende da aprovação da lei do mercado de carbono regulado. “Nada que for decidido na Conaredd+ pode se contrapor ao que está numa lei”, explicou Rajão.
Jeronimo Roveda, da Carbonext, não escondeu seu incômodo com essa iniciativa da Conaredd+. Ele alegou que, quando submetem os projetos de REDD+ à certificação, as empresas privadas já têm que provar que respeitam os direitos dessas populações, como determinado pela ONU nas chamadas Salvaguardas de Cancún. Segundo ele, os abusos frequentes não ocorrem pela falta de regras, mas porque o poder público não tem capacidade de fiscalização. “Eu tive conversas no Ministério dos Povos Indígenas e na Funai e falei: ‘Não adianta botar no papel o que vocês desejam. Se não tiver estrutura de fiscalização, quem faz errado vai continuar fazendo errado’”, disse Roveda.
Shigueo Watanabe, especialista em mercados de carbono do Instituto Talanoa, apontou um ingrediente que, segundo ele, falta nas medidas de proteção aos Indígenas e às comunidades tradicionais: a obrigatoriedade de uma cláusula nos contratos que garanta a transparência na comercialização dos créditos no mercado voluntário. “Como é que eu vou garantir que a comunidade saiba qual é o preço da venda, quanto foi vendido, quem comprou? Se não há uma cláusula dizendo como a empresa vai explicar para o cara quanto recebeu, não adianta dizer que ele vai ganhar uma porcentagem, porque 70% de zero é zero”, diz Watanabe.
ACAMPAMENTO TERRA LIVRE: LEI INCLUI DIREITOS DE INDÍGENAS E DEMAIS POVOS DA FLORESTA EM ACORDOS DE CRÉDITOS DE CARBONO. FOTO: LELA BELTRÃO/SUMAÚMA
Reportagem e texto: Claudia Antunes
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
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