Logo depois de uma multidão destruir os prédios dos Três Poderes em Brasília neste domingo, 8 de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou, em seu primeiro pronunciamento público, ser possível existir entre os golpistas pessoas ligadas ao “agronegócio maldoso”, além de madeireiros e garimpeiros ilegais, base de apoio de Jair Bolsonaro que acelerou a destruição da Amazônia durante o governo do extremista de direita. No dia seguinte, segunda-feira, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, voltou a relacionar parte do agronegócio aos atos, afirmando ser “inequívoca” a participação do setor na tentativa de golpe de Estado.
As investigações só devem produzir certezas sobre os articuladores, mandantes e financiadores dos criminosos de Brasília após o depoimento das cerca de 1.500 pessoas presas e da análise dos contratantes dos ônibus que levaram os terroristas à capital federal. O ministro da Justiça afirmou que já tem os nomes de todos eles.
Já existem indícios, porém, de que a tentativa de golpe tenha entre seus patrocinadores pessoas ligadas às atividades predatórias da floresta, descontentes com a vitória de Lula. SUMAÚMA confirmou nesta segunda-feira que o governo trabalha com essa linha de investigação. Também na segunda-feira, de acordo com a Rede Globo, golpistas detidos afirmaram em depoimento à Polícia Federal que despesas de viagem foram pagas por pessoas de Rondônia, Pará e Mato Grosso, estados da Amazônia Legal.
Há indícios de que a tentativa de golpe tenha entre seus patrocinadores pessoas ligadas às atividades predatórias da floresta. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Para além dos indícios iniciais, o ato terrorista em Brasília ecoa o projeto de destruição imposto ao Brasil pelo governo Bolsonaro, que teve na Amazônia seu exemplo extremo. O ultradireitista incentivou o agronegócio predatório, liberou a maior quantidade de agrotóxicos desde a redemocratização, incentivou a invasão de terras públicas na floresta, atacou os povos indígenas e quilombolas, estimulou o garimpo ilegal e negou a crise climática. Destruir a floresta para avançar com a mineração, a especulação de terra, as monoculturas de soja e a expansão do rebanho de gado sobre terras protegidas era o principal projeto de Bolsonaro. Seus seguidores destroçaram os símbolos da República em um ataque direto a outro projeto de país — e ao projeto para a Amazônia anunciado pelo novo presidente.
O governo Lula já afirmou ter como meta o desmatamento zero da Amazônia, estuda terras indígenas que serão demarcadas com urgência e diz também que não é necessário desmatar qualquer hectare de floresta para plantar no país, em claro recado aos que buscam expandir a fronteira agrícola. Entre os planos também está a transformação de terras da União, hoje sem destinação, em áreas protegidas, o que contraria diretamente os grileiros da região, que experimentaram um poder inédito durante o governo Bolsonaro. Parte dos grileiros da Amazônia constitui a elite das cidades da região, ocupa cargos de prefeito e está ramificada nos órgãos públicos e de classe. Outra parte vive em cidades do centro-sul e comanda seus testas-de-ferro desde cidades como São Paulo, Goiânia ou Brasília. Grileiro é aquele que se apropria de terras públicas, pela força de milícias ou pistoleiros, e forja títulos de propriedade com a conivência de cartórios, além de outros métodos mais modernos. Com frequência, tem as terras obtidas por meio do crime legalizadas por diferentes governos, em projetos de lei aprovados no Congresso, e se torna “fazendeiro” ou “produtor rural”. Em seguida, se apropria de mais terras públicas, num ciclo que só termina junto com a floresta – ou com um governo responsável.
A oposição ao projeto representado por Lula se tornou explícita nas urnas. Dos 7 estados da região Norte do Brasil, onde se concentra a maior parte da Amazônia, Bolsonaro ganhou em 4: Amapá, Acre, Roraima e Rondônia – nos três últimos, com mais de 70% dos votos. Nos 3 em que Lula ganhou, Amazonas, Pará e Tocantins, o atual presidente não chegou a 55% dos votos, o que aponta para uma população dividida.
Desde a vitória de Lula, estados da região Norte protagonizaram uma série de atos golpistas. Em Rondônia, o único da região Norte onde Bolsonaro venceu em todos os municípios, estradas foram bloqueadas ao longo de todo o mês de dezembro, com registros de violência e agressões que levaram bolsonaristas à prisão. O Ministério Público Federal instaurou um inquérito, que corre sob sigilo, para investigar o bloqueio da BR-364 em diversos pontos. A mesma estrada chegou a ser bloqueada também em Mato Grosso. Segundo o site de notícias G1, um dos participantes na destruição de Brasília neste domingo é o ex-candidato a deputado estadual pelo Estado William Ferreira da Silva, que postou vídeos nas redes durante a depredação. Ao negar ter participado, ele disse que estava de férias em Brasília e foi até a Praça dos Três Poderes após saber do quebra-quebra nos prédios federais.
Terroristas pró-Bolsonaro bloqueiam a BR-163 em Altamira e Novo Progresso, no Pará. Foto: PRF/Divulgação
No Pará, onde estradas também foram bloqueadas nos últimos meses, um homem chegou a ser preso em 15 de novembro em Itaituba com 150 mil reais em espécie, sem origem comprovada, e dezenas de camisetas verde-amarela, que costumam ser usadas pelos golpistas. Um relatório da Polícia Civil do Pará, obtido pela Folha de S.Paulo em novembro, apontava que os atos contra a democracia iniciados após a vitória de Lula tinham o financiamento de inúmeros empresários, políticos e de um procurador municipal. O documento apontava para a suspeita de um movimento organizado para patrocinar os bolsonaristas que acampavam próximos ao 2º Batalhão de Infantaria de Selva, em Belém, pedindo golpe militar.
O Ministério Público Federal do Estado também abriu, no ano passado, um procedimento de investigação criminal que corre em sigilo para apurar os movimentos golpistas. Após mais de 60 dias, o acampamento montado em Belém foi desfeito nesta segunda-feira, assim como aconteceu em diversos Estados do país após ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Cinco pessoas foram presas em flagrante e levadas para a sede da Polícia Federal por tentarem impedir os policiais de desmontar as barracas. No domingo, a BR-163, a rodovia Santarém-Cuiabá, voltou a ser temporariamente bloqueada no Pará em 5 pontos, a maior parte na cidade de Novo Progresso, um importante foco bolsonarista encravado na Amazônia. No segundo turno das eleições de outubro, o município ficou com a segunda posição no ranking nacional em percentual de votos para Bolsonaro (82,92%). A economia da cidade é baseada na extração de madeira, na atividade garimpeira e no agronegócio.
No ano passado, Novo Progresso foi protagonista das principais manifestações golpistas no Pará. Em 7 de novembro, um grupo de bolsonaristas comandou bloqueios na BR-163 que incluiu ataques a tiros contra agentes da Polícia Rodoviária Federal destacados para efetuar o desbloqueio da rodovia. Os ataques estão sendo investigados pelo MPF do Pará. Novo Progresso é um dos municípios brasileiros recordistas em desmatamento. Em 2019 ficou conhecido mundialmente pelo “Dia do Fogo”, um movimento criminoso que incendiou a floresta, organizado via WhatsApp por grileiros, fazendeiros e madeireiros da região.
Novo Progresso é símbolo de como a destruição da floresta e a política na Amazônia caminham juntas. Em 2020, o então vice-prefeito e pré-candidato à prefeitura, Gelson Dill (MDB), foi multado em 4 milhões de reais por desmatamento ilegal de 174,5 hectares no Parque Nacional do Jamanxim, uma área protegida. Dill, que foi eleito prefeito de Novo Progresso, nega qualquer envolvimento com a derrubada de florestas na área.
Em frente ao Comando Militar da Amazônia (CMA), um acampamento de golpistas da extrema direita é desmontado em Manaus. Foto: Alex Pazuelli/Secom
Os mapas eleitorais das últimas eleições presidenciais mostram que Bolsonaro ganhou nos municípios da Amazônia localizados dentro do chamado arco do desmatamento, uma extensa área que vai do oeste do Maranhão e sul do Pará em direção ao oeste, passando pelos estados do Mato Grosso, Rondônia e Acre.
É exatamente desta região, mais especificamente do município de Xinguara, que saiu outro personagem importante do movimento golpista que tomou corpo no país: o empresário paraense George Washington de Sousa, de 54 anos, preso pela Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) em 24 de dezembro, véspera do Natal, após planejar explodir uma bomba no Aeroporto de Brasília. Segundo a polícia, outros materiais explosivos foram encontrados no apartamento que o acusado ocupou na capital federal. Washington declarou à polícia que gastou 160 mil reais com a aquisição de armas e dinamite ainda no estado do Pará, antes de viajar mais de 1.200 quilômetros até a capital federal.
Os terroristas que participaram do ato em Brasília e seus patrocinadores, que orquestraram o golpe à distância, enfrentam agora múltiplas possibilidades de responsabilização, de acordo com o ministro Flávio Dino: crime de dano ao patrimônio público, associação criminosa, lesão corporal, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e crime de Golpe de Estado.
Já Jair Bolsonaro, que deixou o país antes mesmo do fim do mandato e se abrigou na Flórida, nos Estados Unidos, também corre o risco de ser investigado. Ainda que não tenha feito afirmações categóricas contra o ex-presidente, o ministro da Justiça afirmou durante a coletiva de imprensa que ele tem responsabilidade política. “O ex-presidente e seus seguidores dirigiram ataques aos poderes”, destacou. O ministro afirmou que não existem – ainda – elementos para pedir a extradição de Bolsonaro ao Brasil.
Nos Estados Unidos, porém, a insatisfação com a presença do extremista de direita é crescente. A memória da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, quando seguidores de Donald Trump inconformados com a sua derrota para Joe Biden tentaram um golpe de Estado, segue traumática. A tentativa de golpe no Brasil, neste 8 de janeiro, é vista internacionalmente como o Capitólio brasileiro. Os deputados Alexandria Ocasio-Cortez e Joaquin Castro, do Partido Democrata, pediram no Twitter que Jair Bolsonaro deixe os Estados Unidos.
No Brasil, milhares de manifestantes ocuparam a Avenida Paulista, em São Paulo, na noite desta segunda-feira, e também outras capitais do Brasil. Aos gritos de “Sem anistia!”, as manifestações condenavam a tentativa de golpe e exigiam a responsabilização dos terroristas. Outro grito era: “Queremos Bolsonaro na prisão”. Quando presidente do Brasil, Jair Bolsonaro já tinha se tornado um pária internacional por seus atos e declarações odiosos. A diferença é que hoje é um pária internacional sem privilégios de chefe de Estado. A outra diferença é que, desde a tentativa de golpe de 8 de janeiro, começa a se tornar um pária dentro de seu próprio país.
Terroristas e patrocinadores podem responder por crime de dano ao patrimônio público, associação criminosa, lesão corporal, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e crime de Golpe de Estado. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil