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O presidente do Brasil, Luiz Inacio Lula da Silva, e o cacique Raoni acenam ao público durante a cerimônia de posse no Palácio do Planalto, em Brasília, 1º de janeiro de 2023. Foto: Maíra Erlich/SUMAÚMA

O novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva já deu passos importantes para o começo da reparação dos destroços deixados por Jair Bolsonaro (2019-2022). Logo no primeiro dia, houve uma enxurrada de decretos presidenciais, reorganizações administrativas e declarações públicas sobre a floresta amazônica, os direitos indígenas e as questões ambientais. Para manter nossos leitores atualizados, SUMAÚMA analisou discursos e documentos para responder a algumas das principais perguntas sobre o que os primeiros dias sinalizam.

Quais são os planos de Lula para a Amazônia?

Lula e sua nova ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, almejam o desmatamento zero. Isso representa um avanço importante após o aumento de 59,5% na destruição do bioma ocorrido durante o governo Bolsonaro. É também um avanço em relação aos governos anteriores de Lula, que visavam apenas o combate ao desmatamento ilegal. A concretização dessa ambiciosa meta será um desafio, visto que o modelo histórico de desenvolvimento econômico do Brasil tem sido o de abrir novas fronteiras. Os cientistas têm alertado que é essencial evitar que a degradação da Amazônia chegue a um ponto sem retorno, quando a floresta já não será mais capaz de se regenerar. Hoje, 17% da Amazônia está desmatada e outros 17% degradados. O ponto sem retorno estaria entre os 20% e os 25% de desmatamento. Muito próximo, portanto. Assim, ainda que seja uma meta difícil devido aos interesses conflitantes da frente ampla que elegeu Lula e das forças contrárias aglutinadas na extrema-direita que se mantém ativa no país, zerar o desmatamento é inescapável. Para que isso aconteça, porém, será necessário muita pressão interna e externa.

E os outros biomas do Brasil (Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica, Caatinga e Pampas)?

Lula não os citou nominalmente, mas afirmou querer “acabar de uma vez por todas com a devastação de nossos biomas, sobretudo a Amazônia”. Esta é uma questão a se observar com atenção. Nos governos anteriores, Lula protegeu a Amazônia em detrimento do Cerrado, que se consolidou como a principal fronteira agrícola do país. Desta vez, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, insistiu que o governo deve investir mais esforços em outros biomas. Isso é importante porque eles estão interconectados, como os órgãos de um corpo humano. A falha de um pode levar ao colapso de outro.

Como e por que Lula deu mais poder aos povos indígenas?

O movimento mais progressista do novo governo é a criação de um Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sonia Guajajara, uma das principais líderes das populações tradicionais do Brasil. Isso dá mais poder e uma plataforma maior aos povos originários do que em qualquer outro momento desde que os primeiros europeus invadiram o Brasil há mais de 500 anos. O novo ministério abrigará o principal órgão indigenista brasileiro, a Funai, que foi sensível e sensatamente rebatizada para Fundação Nacional dos Povos Indígenas, em vez de Fundação Nacional do Índio. A mudança era um pedido antigo das lideranças indígenas, já que o termo “índio” é considerado pejorativo e genérico, não representativo da diversidade de povos existentes. A Funai terá sua primeira líder indígena, a respeitada advogada e ex-deputada Joenia Wapichana – uma guinada em relação a seu antecessor, um delegado de polícia branco ligado ao agronegócio. Em um símbolo ainda maior da mudança, Lula subiu a rampa do Planalto acompanhado de Raoni Metuktire, o cacique Raoni, a maior referência indígena no Brasil, que denunciou ao mundo a tragédia do governo Bolsonaro e acabou atacado pelo ex-presidente brasileiro e seus seguidores.

“[Os povos indígenas] não são obstáculos ao desenvolvimento – são guardiões de nossos rios e florestas, e parte fundamental da nossa grandeza enquanto nação”, disse o novo presidente em seu primeiro discurso ao público. Anteriormente, ele havia insinuado ao Congresso que seu governo ampliaria as terras indígenas: “Cada terra demarcada é uma nova área de proteção ambiental. A estes brasileiros e brasileiras devemos respeito e com eles temos uma dívida histórica. Vamos revogar todas as injustiças cometidas contra os povos indígenas.”

Qual o grau de seriedade do novo governo com a ameaça da catástrofe climática?

Lula mencionou brevemente a necessidade de “combater as mudanças climáticas” em seus discursos de posse e disse que se envolveria mais com a comunidade internacional. Dentro do governo, os rótulos também mudaram. O Ministério do Meio Ambiente foi renomeado como Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas. No entanto, não há um novo superministério que coordenará a política climática em todos os departamentos do governo, como chegou a ser discutido. A ministra Marina Silva afirmou, porém, em entrevista ao jornal Valor Econômico, que a questão climática será transversal ao governo e haverá estruturas específicas sobre o tema em ministérios como os da Fazenda e da Justiça. Será necessário observar de perto se essa transversalidade, fundamental no momento em que há pouco tempo para evitar o pior, acontecerá na prática cotidiana do poder.

A principal contribuição do Brasil aos esforços internacionais para estabilizar o clima será deter o desmatamento. Se isso for feito, já representará um grande sucesso. O avanço no reflorestamento seria uma conquista adicional. Há preocupações, porém, de que Lula também pressione por uma maior exploração das reservas de petróleo e gás, e há incerteza sobre sua posição em grandes projetos de infraestrutura, como hidrelétricas e novas estradas, que são uma ameaça à natureza e ao clima. Lula anunciou em seu discurso de posse o retorno do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que nos governos anteriores do PT foi responsável, por exemplo, pela volta das grandes hidrelétricas na Amazônia, como a desastrosa Belo Monte. O que será o PAC de Lula 3 ainda é uma incógnita.

O agronegócio aceitará que não pode mais expandir fazendas e plantações derrubando florestas?

Esta é a pergunta crucial. Em seu discurso de posse no Congresso, Lula deixou uma linha clara: “O Brasil não precisa desmatar para expandir a fronteira agrícola, mas sim replantar 30 milhões (de hectares de) áreas desmatadas. Não há necessidade de invadir nossos biomas.” Ele estava dizendo ao parlamento, dominado pelo agronegócio predatório, que a floresta estaria fora dos planos de expansão e seria preciso voltar sua atenção para terras subutilizadas ou abandonadas, já desmatadas, se quisessem expandir as áreas de cultivo. Para o bem ou para o mal, essa foi uma sugestão de Katia Abreu, ex-chefe do lobby agropecuário, que se tornou aliada do partido de Lula e chegou a ser ministra da Agricultura de Dilma Rousseff. Embora pareça promissor, o diabo estará nos detalhes. Como as “terras degradadas” serão classificadas? Como as proteções serão aplicadas? O governo estará disposto a fechar as brechas que até hoje permitiram que grileiros lavassem e legitimassem terras desmatadas ilegalmente?

Lula já fez algo a respeito das dezenas de milhares de garimpeiros ilegais que invadiram terras indígenas na Amazônia?

Sim, outro dos primeiros decretos de Lula foi revogar uma medida do governo anterior que incentivava o garimpo ilegal em terras indígenas e em áreas de proteção ambiental. Assessores dizem que nas próximas semanas e meses, as autoridades federais irão ocupar áreas de mineração ilegal, expulsar invasores e destruir equipamentos. Entre os casos mais graves estão as invasões garimpeiras nos territórios Yanomami, Munduruku e Kayapó. A questão, entretanto, pode ser mais complicada e exigir um trabalho de inteligência policial mais efetivo e transnacional, já que a porteira aberta para a mineração ilegal na Amazônia trouxe junto o crime organizado, que comanda o tráfico de drogas e de armas no país e viu no ouro uma nova chance de negócio.

Qual a importância de Lula dizer em seu discurso que não vai “tolerar violência contra os ‘pequenos'”?

O último relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), com dados de 2021, mostra que os conflitos no campo se agravaram. Trinta e cinco pessoas foram mortas naquele ano, contra 20 no ano anterior. A impunidade para crimes ambientais e invasões de terras, maior acesso a armas e as ações e falas do ex-presidente Bolsonaro multiplicaram a tensão na Amazônia. Não tolerar a violência significa reconstruir e ampliar as estruturas de fiscalização, fortalecer o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e garantir maior segurança aos povos que lutam pela floresta em pé. Eles podem ser pequenos em termos de poder político e econômico, mas Lula está reconhecendo sua estatura moral e a importância de sua luta. Ele também está restabelecendo o Estado de direito e a presença do Estado na Amazônia: “Incentivaremos, sim, a prosperidade na terra. Liberdade e oportunidade de criar, plantar e colher continuará sendo nosso objetivo. O que não podemos admitir é que seja uma terra sem lei. Não vamos tolerar a violência contra os pequenos, o desmatamento e a degradação do ambiente, que tanto mal já fizeram ao país”.

Há algum movimento para reverter a destruição ambiental?

O principal objetivo de Lula é deter, e não reverter, o desmatamento. Deter o desmatamento é crucial e já dá ao Brasil uma posição ambiental mais progressista do que a da maioria dos países do mundo. Mas a crise climática impõe a necessidade também de reversão do que já foi destruído. Um dos decretos assinados pelo presidente ao assumir o cargo restabeleceu a obrigatoriedade do Estado de destinar 50% da receita de multas ambientais ao Fundo Nacional do Meio Ambiente, que poderá aplicar o dinheiro em reflorestamento e outros projetos. Além de reduzir a fiscalização e, com isso, as multas aos infratores, Bolsonaro também perdoou punições dadas aos invasores da floresta, o que passou uma clara mensagem de impunidade e causou uma perda de mais de 18 bilhões de reais aos cofres públicos, segundo relatório da equipe de transição. Este primeiro decreto é um começo. Mas o governo pode  – e deve – fazer muito mais.

De que outra forma as novas etapas serão financiadas?

Outro decreto do dia da posse de Lula autorizou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) a arrecadar novamente doações para o Fundo Amazônia para ações de combate ao desmatamento e promoção do uso sustentável da floresta. O fundo é financiado principalmente pelos governos da Noruega e da Alemanha, que já começaram a liberar recursos que haviam sido bloqueados durante os anos Bolsonaro. A equipe de transição também pediu ao Congresso mais 536 milhões de reais para o Ministério do Meio Ambiente.

A Amazônia e seu povo têm agora uma posição mais central na política do governo?

Em comparação com os últimos 4 anos, sim, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Os valores centrados na vida da Amazônia são mais presentes do que nas administrações anteriores de Lula, porque a natureza e o clima se deterioraram drasticamente. Lula enfatizou que as mudanças climáticas, a conservação dos ecossistemas e os direitos indígenas são de interesse nacional. Mas ele precisará equilibrar isso com “crescimento econômico”,  mencionado com ênfase em seu discurso. Muitas batalhas políticas estão por vir e é preciso manter a pressão sobre o novo governo para que ele não volte aos velhos modelos destrutivos de desenvolvimento às custas da natureza que marcaram os mandatos anteriores do PT.


 

Tempestade se aproxima da floresta na Terra Indígena do Xingu. Foto: Pablo Albarenga/SUMAÚMA

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