Se Michael Jackson tivesse nascido no Pará, seria parecido com Maickson Serrão. Assim desejou a ribeirinha Rosicléia quando misturou as letras iniciais de Michael com as letras finais de Jackson e nomeou o original e originário menino Maickson, nascido na Vila de Boim, distrito a 90 quilômetros – ou 12 horas de barco – de Santarém. A vila faz parte da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns.
O filho de dona Rosicléia é apresentador da Rádio SUMAÚMA, podcast quinzenal que traz análises indígenas de temas e reportagens publicados em SUMAÚMA. Desta vez, porém, Maickson não está correndo atrás de notícias para narrar. Ele é a notícia.
Maickson foi o único amazônida selecionado pelo Global Shapers, um dos maiores programas de voluntariado do mundo, presente em 369 cidades ao redor do planeta, para falar no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça. O evento começou no dia 16 e vai até 20 de janeiro. Além de Maickson, estão em Davos o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva.
Assim como Marina, Maickson participa de painéis sobre povos indígenas e mudanças climáticas. Mas quando fazia as malas e se preparava para a viagem, surgiu a provocação: “Como eu me diferencio dessas pessoas? Apesar dos meus traços, que me mostram que eu sou da região Norte do Brasil, de terno e gravata eu ia ser mais um ali no meio dos engravatados. Então, como posso chegar causando? Como que eu posso tá marcando território e dizendo: ‘opa, cheguei, tô aqui, sou eu!”
Da coleção ManioQueen, do estilista Sioduhi, um detalhe do poncho esportivo bicolor ‘Canoa’. Crédito: Christian Braga/SUMAÚMA
Foi então que ele decidiu pedir socorro para Sioduhi, estilista indígena que está abalando os corações dos indígenas e não indígenas do Amazonas. Em Manaus e São Gabriel da Cachoeira, cidade natal do artista do povo Pira-tapuya, encontramos muitos indígenas vestindo suas últimas coleções. A camiseta com escritos Originárie e outra com o desenho do mapa de São Gabriel, que faz lembrar a cabeça de um cachorro, vestem amazonenses em todos os cantos.
Sioduhi atendeu ao pedido do podcaster e prontamente montou quatro looks da sua nova coleção ManioQueen [manio vem de mandioca em Tupi e queen de rainha em inglês]. A Galeria Amazônica, que junta loja e galeria para vender e mostrar arte indígena de 23 povos no Rio Negro sem atravessadores, cedeu 12 peças para compor etno-looks exclusivos para Maickson Serrão ir a Davos.
Detalhe da jaqueta maxi ‘Caminho da Roça’; coleção ManioQueen do estilista Sioduhi. Foto Christian Braga/SUMAÚMA
Coleção ManioQueen, por Sioduhi: o jornalista Maickson Serrão usa a jaqueta ampla ‘Caminho da Roça’ sobre camiseta ‘Filhotes de Beiju’. Foto: Christian Braga/SUMAÚMA
“Eu vou vestido por um estilista do tamanho do Sioduhi, que está buscando espaço no mercado, autodidata, que valoriza as origens, os recursos da natureza. Usa tecidos [sustentáveis], faz tintas que não agridem o meio ambiente e valoriza a matéria-prima da floresta. Talvez eu não consiga marcar território com a minha expressão, com a minha fala, talvez eu não tenha muitos espaços pra falar dentro do Fórum, mas a cada espaço que eu ocupar vou conseguir marcar presença com a minha vestimenta. Então, eu estou falando de diversas formas e a vestimenta é uma delas”, diz Maickson.
Mas o encontro com as criações de Sioduhi não poderia ficar restrito a apenas ministros, chefes de estado, gente endinheirada e outros públicos no Fórum ou nas ruas de Davos. Por isso, SUMAÚMA decidiu fazer um ensaio fotográfico, um editorial de moda, no centro de Manaus e no Museu da Amazônia (Musa), considerado o maior fragmento de floresta preservada dentro de área urbana do Brasil. Já seria tudo muito luxuoso, mas a produção ainda teve o apoio do artista e stylist manauara Ramon Alada, que ajudou a preparar Maickson para as fotos feitas por Christian Braga.
Coleção ManioQueen, por Sioduhi: sobretudo ‘Manejo da Roça’ e calça de alfaiataria esportiva ‘Indo pra Roça’. Foto: Christian Braga/SUMAÚMA
Nesse dia, após a sessão de fotos, Maickson, que geralmente é quem faz perguntas para os entrevistados, contou um pouco da própria história para SUMAÚMA. Quem é Maickson Serrão?, perguntei. Ele esticou o braço direito, cerrou o punho e deslizou a mão pela tatuagem. A igreja, o rio e a praia fazem lembrar qualquer pequena vila da Amazônia, mas não é qualquer lugar, é a terra de Maickson, a terra dos Tupinambá.
“Boim é a terra dos Tupinambá, então, hoje, eu me reconheço indígena. Nesse processo de colonização, a gente acaba sendo levado a não enxergar essa identidade e depois que você vai estudando, vai adquirindo mais conhecimento, mais consciência crítica, você acaba percebendo esse reconhecimento. Você vai e mergulha nas suas origens, nas suas raízes. E é um processo que eu fiz já depois de adulto e me sinto mais completo por conta disso, desse processo de me enxergar, de me reconhecer enquanto indígena, de valorizar toda essa cultura.”
Maickson participou do concorrido Sound Up, programa do Spotify que oferece um robusto treinamento, com os melhores profissionais, para que ideias de pessoas negras e indígenas cheguem ao mercado. Nos Estados Unidos, grandes sucessos da podosfera saíram dessa iniciativa. Aqui no Brasil, Maickson foi a grande revelação do ano da plataforma. Seu podcast de contação de histórias Pavulagem ficou entre os 10 melhores lançamentos de 2022. Foi o primeiro original do Spotify produzido na Amazônia — e com roteiro, apresentação e idealização 100% amazônida. Em dezembro, o contrato de Maickson foi renovado.
Pavulagem – O Personagem
Coleção ManioQueen, por Sioduhi: Maickson Serrão veste o macacão ‘Criador do Alimento’. Foto: Christian Braga/SUMAÚMA
Aos 12 anos, Maickson Serrão enchia a cesta da bicicleta de pães e saía pra vender de porta em porta na Vila de Boim. Não resistia à oferta de tomar o cafezinho e em pouco tempo sabia o nome de todo mundo e as fofocas da comunidade inteira. Se um barco atracava com gente chegando no porto, ele corria e já disparava perguntas. Um repórter mirim.
Ainda adolescente, conseguiu seu primeiro emprego como repórter. O jornal se chamava A Notícia. Era feito por jovens da comunidade e trazia informações sobre o bingo beneficente, as campanhas de educação e as ações de prevenção à gravidez infantil. Falava também de poesia e mostrava os resultados do campeonato de futebol. Tudo escrito à mão e ilustrado com recortes e desenhos. Em pouco tempo, Maickson, “encantado” pelo trabalho, foi de repórter a editor chefe de A Notícia. Ele tinha 14 anos.
Antes de ser distribuída para a comunidade, a edição de 10 páginas viajava de barco pra Santarém, onde Paulo Lima, do projeto Saúde e Alegria, tirava centenas de cópias numa máquina de xerox e enviava de barco novamente pra Vila de Boim.
Não demorou para o editor chefe decidir criar uma versão em áudio. A rádio-poste do A Notícia era transmitida num megafone improvisado amarrado no alto de um poste de luz. Da praça, Maickson lia em voz alta as notícias que escrevia. Sua voz amplificada despertou a paixão pelo áudio e pela contação de história.
Nessa época, ninguém tinha luz em casa. Com exceção de Chico Preto, ex-funcionário da Amazonex, antiga madeireira que funcionou até a Resex Tapajós-Arapiuns ser criada. Chico Preto herdou o gerador da antiga firma e oferecia banquinhos de madeira pros vizinhos assistirem o Jornal Nacional e a novela das 8 – mas nem todos os dias. Quando não era possível ver TV ao cair do sol, Maickson corria pra casa de sua tia Maurícia, que enchia os ouvidos do menino Maickson de histórias de rir e se assustar da floresta.
Tia Maurícia morreu durante a pandemia da covid-19. Junto com ela se foram as histórias da floresta do Tapajós que contava para os meninos e meninas. “Foi a partir da morte dela que senti a necessidade de fazer essa catalogação de histórias”, conta Maickson. “Eu tinha muito forte a lembrança das histórias. Eram três irmãs: Maurícia, Zoraide e Joana. A Joana e a Maurícia já faleceram, só minha vó Zoraide que tá viva e com 96 anos.”
Coleção ManioQueen, por Sioduhi: corta-vento ‘Queima da Roça’. Foto: Christian Braga/Sumaúma
Foi então que Maickson decidiu escutar histórias dos contadores, catalogá-las e fazer nascer um podcast de histórias de ribeirinhos. O curso no Spotify foi a oportunidade de refinar a ideia, que passou pelas mãos de experientes profissionais, como Tiago Rogero, autor do premiado Vidas Negras e do Projeto Querino. Depois de quase dois anos de trabalho, o seu Pavulagem foi ao ar.
“O primeiro episódio foi [ao ar em] 30 de junho de 2022. Foi como ver o sonho ganhar forma. O meu sonho ganhar uma forma. E entender que tudo isso é fruto de uma comunidade, porque se os contadores não me trouxessem essas histórias, não me acolhessem tão bem, não se somassem à minha vontade de querer contar mais histórias, nada disso tinha acontecido”, diz.
No Pavulagem, Maickson apresentou, em 12 episódios, histórias de uns tantos seres encantados das florestas, a exemplo do Jurupari, demônio da floresta; do boto, príncipe das águas; do Patauí, andarilho da noite; da Curupira; do Taú e de tantos outros nas vozes de ribeirinhos. Um trabalho que é fruto de meses de entrevistas e pesquisas do podcaster.
Maickson Serrão veste o poncho esportivo bicolor ‘Canoa’, da coleção ManioQueen do estilista indígena Sioduhi, e acessórios em composição cubista. Crédito: Christian Braga/SUMAÚMA
Pavulagem não é apenas o nome do podcast, é um personagem criado e incorporado por Maickson para poder dar liberdade de contar mitos e histórias de uma forma absolutamente original para falar de tantos seres misteriosos que habitam a maior floresta do mundo. A cada episódio o ouvinte avança um pouco mata adentro e conhece mais do visível – e do invisível – da Amazônia, guiado pelas vozes de contadores da região. O narrador, assim como as histórias, podem existir ou não. Vai da imaginação de quem está no lugar de ouvinte. Simples e genial, como o autor.
Olhar para Maickson é como repousar a pupila num caleidoscópio. Uma imagem sempre será diferente da seguinte. Comunicador da floresta e empreendedor de sonhos, antes de deslanchar no mundo do podcast, Maickson desenvolveu um aplicativo de vendas online de passagem de barco, ficou entre os 10 finalistas num concurso nacional de negócios, participou da primeira temporada do programa Shark Tank Brasil do Canal Sony e, tome fôlego, formou professores em módulos de Word e Excel num Projeto de Tecnologias Digitais junto a escolas da rede pública municipal de Manaus, onde vive desde que passou num concurso para professor de educação física. No ano passado, realizou um grande sonho: pegou o diploma de jornalismo, a paixão que o trouxe para SUMAÚMA.
“SUMAÚMA não tem amarras com ninguém, tem liberdade para falar o que pensa. Produz em três línguas. Então, tem o português, espanhol e inglês. SUMAÚMA usa a bagagem de jornalistas como Eliane Brum e Jonathan Watts, por exemplo, pra levar essas vozes para o mundo. A gente precisa ter jornalismo como SUMAÚMA, falando do centro do mundo, buscando valorizar pessoas da região. Então, SUMAÚMA é porta-voz dos povos indígenas, dos povos da floresta. Por isso, tenho orgulho da nossa Rádio SUMAÚMA.”
Pavulagem é um neologismo originário de pavão, que significa bonito e pomposo. Na linguagem popular paraense, representa a “pessoa que gosta de aparecer”. Maickson viajou para Davos absolutamente empavulado, com roupas desenhadas pela sensação da moda indígena brasileira, colares e pulseiras de várias etnias diferentes e foto de perfil atualizada feita no primeiro editorial de moda de SUMAÚMA.
No próximo dia 30 de janeiro, vai ao ar a entrevista que ele fez com o criador das roupas que levou e está usando, agora, na Suíça. A Rádio SUMAÚMA terá uma edição para contar a história de quem está fazendo história. Por isso, corre pro seu tocador favorito e segue a gente por lá pra não perder esse e mais nenhum episódio com a voz desse ribeirinho empavulado e disposto a te informar de uma forma que só quem é filho da floresta pode fazer.
Maickson Serrão e árvores sumaúmas. Ele veste o poncho esportivo bicolor ‘Canoa’ da coleção ManioQueen, de Sioduhi. Crédito: Christian Braga/SUMAÚMA