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APESAR DE TER REJEITADO O MARCO TEMPORAL, O MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES DEFENDEU INDENIZAÇÃO PRÉVIA E COMPENSAÇÃO TERRITORIAL, MEDIDAS QUE PODEM AGRAVAR CONFLITOS NO CAMPO. FOTO: GABRIELA BILÓ/FOLHAPRESS

Duas expressões repetidas pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, na leitura de seu voto estão no centro das preocupações de um grupo de mais de 30 advogados indígenas e não indígenas que atuam na defesa dos povos originários no julgamento do marco temporal. O caso é considerado o “julgamento do século” para os povos originários e para a conservação de áreas vitais ao enfrentamento da emergência climática.

A primeira expressão preocupante é a “indenização prévia” a agricultores ou empresários que alegam ser proprietários de terras tradicionais indígenas. Caso o voto de Moraes seja acatado pelos demais ministros, poderá ser criado um entrave – financeiro e burocrático – hoje inexistente para novas demarcações, avaliam advogados ouvidos por SUMAÚMA.

A segunda é a possibilidade de uma “compensação de territórios de interesse público” – ou seja, de que o governo federal ofereça a um povo um território alternativo ao que ele pretende ver demarcado. É algo que, na prática, permitiria a remoção de povos indígenas de suas terras, uma medida amplamente praticada durante a ditadura empresarial-militar (1964-1985). A proposta reduz o conceito de terra a coisa que pode ser trocada ou reposta, violando a profunda ligação cultural das centenas de povos originários com o território ancestral.

As duas propostas do ministro do Supremo devem aprofundar um problema já grave na Amazônia, avalia o advogado indígena Mauricio Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “[Isso] Vai incentivar a grilagem de terras”, afirma, referindo-se à invasão de áreas públicas não destinadas, as chamadas terras devolutas, por posseiros e fazendeiros. Muitas dessas terras são, também, reivindicadas por povos indígenas – especialmente na Amazônia.

“A tendência é de acirramento de conflitos”, concorda Rafael Modesto, advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e do povo Xokleng, de Santa Catarina. “Com a indenização prévia, Moraes cria uma fase nova no processo de demarcação”, acrescenta. O processo de demarcação já tem se mostrado muito mais lento do que deveria, aumentando conflitos e provocando assassinatos na Amazônia e na maioria dos biomas.

“Nunca nos opusemos à indenização, achamos que é uma medida de justiça, principalmente quando envolve pequenos agricultores”, explicou Deborah Duprat, ex-vice-procuradora-geral da República e atualmente advogada dos povos indígenas no processo do marco temporal. “Mas a indenização tem que ser discutida num processo judicial próprio, e não no curso do processo administrativo de demarcação.”

A defesa da compensação territorial demonstra que Moraes “não entendeu” a relação entre os povos indígenas e suas terras tradicionais, afirma Modesto. “A possibilidade de compensação de um território por outro desconsidera a relação do povo com a terra de origem, que é psíquica, anímica. A terra tradicional é o lugar onde estão enterrados os antepassados, é um lugar de culto, de mitos, vai além da compreensão civil e patrimonialista dos não indígenas”, argumenta.

É por isso que a avaliação majoritária entre advogados que defendem a causa indígena no julgamento do marco temporal é que o voto de Moraes é “ruim”, apesar de ter afastado a tese de que os povos originários só podem pleitear a posse de territórios que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data em que a Constituição foi promulgada.

Além do agravamento de um problema da região amazônica, que é a disputa por terras, as duas teses presentes no voto de Moraes entram em choque com o que está definido no artigo 231 da Constituição. O texto diz que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente”. Mais: a Carta afirma que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras (…), ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União (…)” – algo que, em seu voto, Moraes propõe mudar. Por fim, o mesmo artigo afirma: “é vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras”.


 

A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e o líder Raoni (na fileira de trás) participaram da sessão do STF que retomou o julgamento do marco temporal. Foto: Pedro Ladeira/Folhapress


 

O Supremo reiniciou o julgamento no dia 7 de junho justamente com a leitura do voto de Moraes. Até então, o placar era de 1 voto contra a tese do marco temporal – do relator, ministro Edson Fachin – e 1 a favor dela – do ministro Nunes Marques, indicado à corte pelo ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro.

O julgamento foi novamente interrompido após pedido de vista feito pelo outro indicado de Bolsonaro à corte, o “terrivelmente evangélico” André Mendonça. O pedido de vista é usado por ministros para analisar com mais tempo um processo antes de tomar uma decisão – e, também, para adiar julgamentos em que estão em desvantagem. O prazo para que Mendonça devolva o processo ao plenário é de 90 dias. Mas, como o Supremo tem recesso durante o mês de julho, na prática o marco temporal poderá voltar à pauta de julgamentos apenas em outubro.

Caminho do meio ou permissão para novos conflitos?

Decorridas duas semanas da retomada do julgamento, a íntegra do voto de Alexandre de Moraes ainda não foi anexada, por escrito, aos documentos do processo que vai definir se a Constituição admite ou não um marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Só quando isso ocorrer, explicaram os advogados com quem SUMAÚMA conversou, será possível ter uma avaliação consolidada a respeito dele.

Ao final da leitura de seu voto, Moraes elencou as considerações que o fizeram rejeitar a tese do marco temporal em dez itens. Elas parecem resumir, à primeira vista, uma espécie de “caminho do meio” – entre o que propôs Fachin em seu relatório e o voto divergente, a favor do marco temporal, de Nunes Marques. É possível que esse “caminho do meio” seja fruto de um consenso prévio entre os ministros que ainda não votaram, suspeitam advogados da causa indígena. É em dois desses itens que aparecem os termos preocupantes.

O item 4 da conclusão do voto de Moraes está disponível em um documento anexado ao processo no site do Supremo. Nele, o ministro afirma que, se os indígenas não estavam no – ou brigavam pelo – território que pretendem ver demarcado, documentos de posse daquela área passarão a ser válidos. E, por causa disso, o “dono” das terras precisará ser indenizado previamente pelo governo federal para que a demarcação ocorra. Caso o entendimento do ministro prevaleça, ele vai produzir uma mudança em relação ao texto constitucional, que prevê indenização apenas por “benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé” feitas pelos ocupantes não indígenas.

Benfeitorias de boa-fé, em geral, são aquelas feitas por pessoas e famílias, na maior parte das vezes posseiros, pequenos agricultores em busca de possibilidades de existência, que atenderam a algum programa do Estado, no passado, que levou à ocupação de um território indígena. Como, por exemplo, os nordestinos pobres chamados a extrair látex das seringueiras para a fabricação da borracha e depois abandonados na floresta amazônica quando o preço do produto caiu. Casos como esse são muito diferentes dos de grileiros, que buscam, por meio da apropriação ilegal de grandes áreas de terras públicas, com frequência de ocupação ancestral indígena, amealhar um patrimônio privado, tornando-se latifundiários.

No item 5 da síntese de seu voto, Moraes afirma: “Sendo contrário ao interesse público a desconstituição da situação consolidada e buscando a paz social, a União poderá realizar a compensação às comunidades indígenas, concedendo-lhes terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas, desde que haja expressa concordância”. Ou seja, diz que, caso haja “interesse público” em que uma terra tradicional indígena não seja destinada aos povos originários que a reivindicam, o governo federal poderá oferecer a eles uma área de tamanho equivalente.

Trata-se de uma resposta ao que Deborah Duprat chama de “efeito Copacabana” – a alegação de que, uma vez que os povos indígenas viviam em todo o Brasil antes da invasão pelos portugueses, não haveria limites para as demarcações; mesmo cidades com séculos de existência poderiam ser declaradas terras indígenas – caso da famosa praia carioca. Bastante difundido por latifundiários e outros adversários contumazes da causa indígena, esse argumento já esteve até mesmo na boca do ministro Gilmar Mendes, do Supremo.

Isso é uma falácia, rebatem os advogados ouvidos por SUMAÚMA. Atualmente, os laudos antropológicos que orientam os processos de demarcação de terras indígenas já excluem áreas consolidadas de ocupação não indígena – como as tantas cidades já reconhecidas no Brasil. Mas, para resolver um problema que não existe, Moraes criou a possibilidade de outro – este, sim, grave.

A menção ao “interesse público” é particularmente explosiva. “Essa parte do voto tem vários problemas, a começar pela expressão ‘interesse público’, em que cabe qualquer coisa”, avaliou Deborah Duprat. “E, na prática, vai transformar as terras indígenas em balcão de negócios, vai fomentar a divisão das comunidades [para que abram mão de suas terras]. A Corte Interamericana de Direitos tem registros de que essa estratégia de dividir as comunidades para obter um consentimento [sobre a saída dos territórios] é comum nos países que têm populações indígenas.”

A possibilidade aberta pelo voto de Moraes tem grande potencial para se tornar uma “remoção forçada”. “A compensação de territórios [de uma área ancestral pleiteada por indígenas por outra, em tese equivalente] é uma ‘remoção forçada pactuada’”, ironizou Mauricio Terena. A ironia aponta para o resultado previsível de uma negociação entre partes que têm forças políticas e econômicas muito desiguais.

Durante a ditadura, foram comuns as remoções forçadas de povos indígenas de territórios cobiçados por latifundiários ou pela política expansionista dos militares no poder. Levados a territórios com os quais não tinham nenhuma relação, muitos indígenas caminharam centenas de quilômetros na tentativa de voltar para a terra à qual pertenciam. Vários morreram pelo caminho. Em Os Fuzis e as Flechas – História de Sangue e Resistência Indígena na Ditadura (Companhia das Letras, 2017), o jornalista Rubens Valente relata casos como o do povo Nambikwara. Pressionados pela ocupação de seu território tradicional no Vale do Guaporé, entre Mato Grosso e Rondônia, por fazendeiros (autorizados pela Funai) que chegavam com a abertura da BR-364, eles foram alvo de duas remoções, em 1971 e 1974. Na segunda, a “operação levou quatro dias de voos em um avião providenciado pela Funai e mais dois dias de camionete”. O destino eram terras de solo pobre e arenoso, ruim para a roça e de pouca caça. O resultado, nas duas vezes, foi o mesmo: os indígenas, “famintos em solo pobre, passaram a retornar espontaneamente para suas terras de origem. A pé ou de carona, regressaram um a um”, escreve o jornalista.

Com seu ex-advogado no Supremo, Lula entra no jogo

Com o prazo de 90 dias para que André Mendonça devolva o processo do marco temporal e o recesso judiciário durante todo o mês de julho, é provável que o julgamento recomece apenas em outubro. É, também, quando a atual presidenta do Supremo, a ministra Rosa Weber, precisará se aposentar compulsoriamente por completar 75 anos de idade. O voto dela a favor dos indígenas, da natureza e do enfrentamento do colapso climático é tido como provável. Na sessão de 7 de junho, ela sinalizou o desejo de votar. O novo integrante da corte, Cristiano Zanin (advogado de Luiz Inácio Lula da Silva em processos da Operação Lava Jato, que vai assumir a vaga aberta pela aposentadoria de Ricardo Lewandowski), também deverá se posicionar sobre o caso.

Em sua sabatina no Senado, realizada no dia 21 de junho, Zanin ficou em cima do muro ao ser questionado sobre o marco temporal. Falou em “valores que terão que ser conciliados, como é o caso do direito à propriedade e do direito dos povos originários” – uma sinalização de que tem entendimento similar ao de Moraes. “Os indígenas sabem que o presidente Lula é o grande fiador de Zanin ao Supremo”, disse um advogado, falando, sob a condição de anonimato, sobre quem deverá ser cobrado caso o futuro novo ministro vote contra os interesses dos povos originários e das novas gerações. Ao fazer uma escolha pessoal para uma posição pública, decisão que provocou críticas da direita à esquerda, Lula se colocou num lugar vulnerável em todas as decisões delicadas do Supremo.

Apesar de algum pessimismo, provocado pela possibilidade de que o voto de Moraes seja fruto de consenso entre os ministros, Mauricio Terena afirma que os povos indígenas continuarão trabalhando para que a posição do relator, Edson Fachin, prevaleça: “A Apib vai seguir, até o barco afundar, com o voto do ministro Fachin. Porque isso vai entrar para os anais da história”.


Revisão ortográfica (português): Elvira Gago

Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza

Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Montagem da página: Érica Saboya

Indígenas fazem vigília em frente ao STF, no início de junho, durante o que vem sendo considerado o julgamento do século para a emergência climática. Foto: Matheus Alves/SUMAÚMA

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