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Mina ilegal. Território Yanomami. Foto: Bruno Kelly / ISA

A primeira edição de SUMAÚMA, publicada em 13 de setembro, trouxe um retrato das consequências da omissão deliberada do governo federal diante das violações à Terra Indígena Yanomami, o maior território demarcado do Brasil. A área, que deveria ser protegida pelo Estado brasileiro, foi invadida por cerca de 20 mil garimpeiros, que trouxeram graves impactos à região: a destruição da natureza e da cultura, o estupro de meninas indígenas, o aliciamento de jovens pelo crime e a destruição da rede de saúde, com o fechamento de polos de atendimento médico, o que levou à morte de nove crianças em menos de dois meses.

A grave situação escala cada vez mais diante da ausência de ações efetivas do governo. Depois de ser obrigado pela Justiça Federal e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que agiu após uma ação do Ministério Público Federal, a gestão de Jair Bolsonaro realizou três operações pontuais contra a mineração ilegal no território, em 2021 –em uma delas, em agosto daquele ano, apreendeu, por exemplo, 22 mil litros de combustível, três helicópteros, três caminhonetes, um quadriciclo, cerca de 50 equipamentos para garimpo e uma tonelada de alimentos, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Neste ano, foram feitas outras duas, também com destruições expressivas de equipamentos e estruturas do garimpo. No entanto, em todos os casos, logo após a saída da fiscalização e dos policiais federais, os garimpeiros retornaram e reconstruíram as estruturas da mineração ilegal rapidamente.

Hugo Ferreira Netto Loss, analista ambiental do Ibama e diretor da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), explica em entrevista porque as ações do governo não têm obtido resultados efetivos.

Pergunta: As operações do governo federal só aconteceram no âmbito do Plano Operacional de Atuação Integrada, para cumprir decisões judiciais. Mas elas não acabaram com o garimpo. Por quê?

Resposta: Elas não foram eficientes para acabar com o garimpo porque não tiveram uma continuidade. E se estenderam por um prazo muito curto, de no máximo 15 dias. Tivemos muito sucesso em apreender uma quantidade boa de equipamentos, aeronaves, embarcações e milhares de litros de combustível. Só que como os órgãos ficam pouco tempo e demoram muito para voltar, os garimpeiros conseguem se reestruturar muito rapidamente. Por isso não é eficiente.

P: E como resolver?

R: Teria que ter uma ação permanente de pelo menos seis meses ali e aí sim seria possível debelar o garimpo. Lá eles têm uma dificuldade logística muito grande para poder conseguir se instalar. Tem três rios de acesso: Uraricoera, Mucajaí e Catrimani. Parte do ano eles não têm uma navegação eficiente porque são rios muito encachoeirados. Então os garimpeiros acabam optando pelo modal aéreo. Fizemos um levantamento e eles instalaram mais de 200 pistas de pouso do lado de fora da Terra Indígena, entre Boa Vista e a TI Yanomami. Nessas pistas de pouso é onde eles fazem a conexão entre os modais. Eles levam de caminhonete o combustível e o suprimento até essas pistas. E dessas pistas eles embarcam no avião e vão embora.

As pistas se concentram em pontos estratégicos. Não podem ser tão longe da cidade, de Boa Vista ou de Mucajaí, ao ponto de inviabilizar o transporte terrestre. E também não podem ser tão longe da Terra Indígena ao ponto de encarecer o transporte aéreo. Então elas acabam ocupando uma área muito restrita, onde conseguem fazer a conexão entre os dois modais de forma economicamente eficiente. Por isso há uma concentração em uma área só. É um ponto estratégico. E tem os portos, também. Eles utilizam muito esses portos para ir de carro até uma determinada altura do rio e do rio subir com as embarcações levando ou trazendo as cargas com produtos e suprimentos.

P: Esses pontos estão mapeados? Sabe-se exatamente onde estão?

R: Estão. Por isso que, quando ocorre operação, sempre se encontra muita coisa.

P: E se colocar a Força Nacional ali, interditando essas estradas, não resolveria?

R: É simples. Se fechar o rio Uraricoera, colocar uma base forte ali, onde não passe ninguém, acabou. Em uma semana, os garimpeiros dentro da Terra Indígena iriam começar a ficar com fome e sem combustível. Em um mês, a coisa já seria insustentável para eles. Fechando os rios já seria um impacto muito grande, porque eles teriam que focar tudo na logística aérea. A região do garimpo é um espaço de fronteira [com a Venezuela]. Tem uma base do Pelotão Especial de Fronteira, do Exército, a 42 quilômetros dos principais garimpos. Se todo dia voar da base com uma aeronave o dia inteiro pelos garimpos, os garimpeiros não aguentam. E o garimpo acaba.

P: Vocês já informaram para o governo que o que está sendo feito não adianta?

R: Sim. O plano operacional não é executado. Mas ainda são feitas essas ações pequenas. Então, se não fizer nem isso, imagina como estaria o negócio? Por mais que sejam operações curtas já geram um resultado. Se não tivesse isso seria muito pior.

P: Mas o governo dá alguma justificativa para executar o plano?

R: Não, eu não tenho conhecimento de justificativa. O meu trabalho é apontar a solução técnica e operacional para o problema e encaminhar para o superior. Precisamos de meios para executar: de tantas aeronaves, de tantos servidores, durante tal período, com pontos de apoio em tal lugar, etc.

P: Quando você chega lá na Terra Indígena e vê toda aquela estrutura dos garimpeiros, o que você pensa?

R: Eu fico indignado. O garimpo não acaba porque as coisas não acontecem. Parece que só falta chegar alguém e falar assim: ‘vamos fazer’.  Os alertas de garimpo lá dentro só aumentam.

P: O que você vê quando chega lá? Qual é a estrutura desses garimpos?

R: Tem o comércio, onde eles vendem de tudo: combustível, alimentação, internet. Tem a área de garimpo, onde eles utilizam os motores. Ali não usam em larga escala as escavadeiras hidráulicas, como na terra dos Munduruku e dos Kayapó. Tem muita pista de pouso. É um garimpo basicamente alimentado por helicóptero e avião. Ao mesmo tempo, tem o garimpeiro numa situação de miséria e de exploração total. Uma contradição muito forte. O dono do garimpo e da logística com dezenas de helicópteros, que custam no mínimo 3 milhões de reais cada um. E o garimpeiro que não tem nada, só a força de trabalho dele. Para entrar no garimpo geralmente não se cobra nada. Mas, para sair, tem que pagar em ouro. O garimpeiro tem que trabalhar lá até conseguir juntar o dinheiro para poder sair. E tudo que ele come lá ele também compra com o ouro dele. É com o ouro que ele consegue tirar que vai ter que comprar comida, bebida, combustível, tudo. A maior parte daquilo que ele tira no garimpo ele gasta lá mesmo. Ele se mantém preso lá, naquela situação de escravidão. E quem hoje defende o garimpo defende essa submissão também.

P: Você viu isso acontecer na área da Terra Yanomami?

R: Encontrei com vários ribeirinhos no rio Uraricoera [perto do território Yanomami]. Um deles falou: ‘eu trabalhava aqui com turismo de pesca. Com o pessoal que vinha aqui para pescar. Eu levava no ponto do rio e ganhava um dinheiro com isso. Hoje, eu já não consigo fazer isso porque o garimpo destruiu o rio’. Hoje o que esse ribeirinho faz é trabalhar para o garimpo. A ilha dele virou ilha de guardar barco de garimpeiro. Só sobrou o garimpo para ele trabalhar porque o próprio garimpo destruiu todas as outras fontes de renda.

P: Bolsonaro se diz contrário à destruição dos equipamentos usados no garimpo ilegal. Há uma legislação em Roraima que diz que eles não podem mais ser destruídos nas operações. O que você acha disso?

R: Essas falas têm um papel de intimidação e de desautorização de quem está executando a fiscalização, por um lado. E de fortalecimento e de legitimação de quem está cometendo o crime, por outro. É uma deslegitimação da ação do estado. E tem como consequência a diminuição da dissuasão provocada pelas ações de fiscalização.

P: Seria viável retirar aqueles equipamentos usados na atividade ilegal sem destruí-los?

R. Não tem como. Imagina, chegando lá tem um helicóptero. Quem vai pilotar o helicóptero [para fora]? Quando foi a última manutenção dada naquele helicóptero? Quem foi que fez a manutenção? De onde veio o combustível que está naquele helicóptero? É o combustível correto? Será que ele está parado ali porque está escondido ou porque está quebrado? Quem vai operar uma máquina do garimpo? Precisa de combustível para tirar de lá de dentro. O posto de abastecimento é do garimpo. Precisa conhecer a estrada onde vai rodar. Por onde entra, por onde sai? Será que tem ponte? Será que quebraram a ponte ou fecharam a estrada? Aí você demora dias, expõe a equipe de fiscalização a todo tipo de risco totalmente desnecessário. E, se deixar lá sem destruir, eles vão usar outra vez.


 

Para instituições, governo brasileiro pratica “genocídio” e descumpre a Constituição

Entidades da sociedade civil e candidatos à presidência, que disputarão a eleição em outubro, afirmam que a situação retratada aponta para uma sistemática política de omissão por parte do governo de Jair Bolsonaro. “A publicação reflete muito claramente o que significa a situação do garimpo dentro do Território Yanomami, em termos de violência física, de aliciamento, de violência sexual contra as mulheres, de devastação ambiental de rios e do solo. Ou seja, da destruição de uma forma de viver e de estar no mundo”, afirma Luís Ventura, secretário-adjunto do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Segundo ele, isso só é possível devido a “uma omissão escancarada” por parte do Estado brasileiro. “Tudo isso mostra um processo de genocídio em curso e a olhos vistos”, ressalta.

Ana Claudia Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana, entidade que atua na área do direito das crianças, afirma que a situação na terra Yanomami retrata a violação dos direitos mais básicos: à vida, à alimentação saudável e à integridade física. “O artigo 227 da Constituição Federal coloca crianças e adolescentes como prioridades absolutas. Escolhemos, em 1988, como sociedade, colocar as crianças e adolescentes em primeiro lugar. Isso não vem sendo cumprido, principalmente nos territórios indígenas”.

Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação e publicados na reportagem mostram que polos de saúde indígena que funcionam dentro do território Yanomami fecharam por ao menos 13 vezes desde 2020 por conta da atividade criminosa. Hoje, 5 dos 37 polos do território estão desativados, sem nenhum funcionário de saúde. São 3.485 indígenas abandonados sem qualquer assistência num momento de explosão de doenças, como a malária. Crianças têm morrido por não conseguirem tratamento para vermes ou para pneumonia.

“O direito à saúde está consagrado na Constituição e crianças [Yanomami] estão morrendo por falta de tratamento de doenças banais, como verminoses. Postos de saúde estão fechados e os trabalhadores têm medo de desempenhar suas tarefas. Toneladas de cloroquina foram desaproveitadas pelo negacionismo presidencial e hoje esse medicamento falta para o tratamento da malária nas áreas indígenas”, diz Rosana Onocko-Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em relação ao que foi retratado por SUMAÚMA. “As informações da reportagem revelam que acusar de genocida o atual presidente não é um exagero. Esperamos que os tribunais internacionais nos ajudem a colocar fim a essa injustiça. Precisamos defender o restabelecimento cultural. E correr para salvar vidas, primeiro passo para que a luta possa continuar”, afirma.

Por meio da assessoria de imprensa de sua campanha, o petista Luiz Inácio Lula da Silva diz que “a situação descrita pela reportagem sobre o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami só pode ser interpretada com uma palavra: o horror”. “A retórica belicista e agressiva do atual presidente e de seus assessores contra indígenas, quilombolas e o meio ambiente tornou-se uma espécie de senha para ações de grupos que se sentem à vontade para agir fora da lei nos territórios de populações vulneráveis. O candidato afirma que, caso seja eleito, reforçará as ações de proteção e promoção das Terras Indígenas, como também das demais Áreas Protegidas, através do fortalecimento institucional dos órgãos de gestão e fiscalização. “Será uma prioridade acabar com o desmatamento e o garimpo em terras indígenas e em unidades de conservação”, diz.

Também por meio de sua assessoria, a candidata Simone Tebet, da coligação Brasil para Todos, qualificou de “absurda” a violência demonstrada. “Crianças morrendo por falta de remédios básicos como vermífugos e mulheres indígenas de todas as idades sendo violentadas pelos garimpeiros é algo inadmissível. E, infelizmente, isso não está ocorrendo apenas com os Yanomami, mas em muitas aldeias”, destacou. “Temos que recuperar órgãos que lidam com o assunto, como é o caso da Funai, que hoje vive um momento terrível, com baixa credibilidade. Com órgãos de governo bem estruturados, é possível fazer valer a lei”. Também procurados, os candidatos Ciro Gomes (PDT) e Jair Bolsonaro (PL) não responderam até a conclusão desta edição.

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