Jornalismo do centro do mundo

A antropóloga Beatriz Matos, viúva do indigenista Bruno Pereira, em agosto de 2022. Foto: Márcio Nagano

Ao pisar nesta segunda-feira, dia 27 de fevereiro, no Vale do Javari, Beatriz Matos estará entrelaçando vários fios de sua vida. Foi ali que ela se apaixonou pela floresta amazônica, a partir de 2004, foi ali que ela se encantou pela fronteira cosmopolita onde se encontram e dialogam vários mundos indígenas, foi ali que ela conheceu Bruno Pereira e ambos foram tomados por uma paixão “avassaladora”, foi ali que construíram uma casa e onde sonharam viver com os dois filhos com nomes que homenageiam indígenas. E foi ali que, em junho do ano passado, Bruno foi assassinado, esquartejado e queimado quando fazia uma expedição junto com o jornalista britânico Dom Phillips. É muito. E Beatriz não sabe como lidará com esse tanto, porque desde que o horror aconteceu, ela busca dar conta de um dia de cada vez. Beatriz sabe, porém, o que fará ali. E isso, em suas palavras, a enche de “animação e esperança”.

Em ação articulada pela influente Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), uma comitiva do governo federal, composta por ministros e outras autoridades, ocupará a região, no Amazonas, para anunciar, com sua presença e com suas ações, que o Estado está de volta. Durante o governo de Jair Bolsonaro, o Vale do Javari, que faz fronteira com o Peru e com a Colômbia, foi entregue ao tráfico de drogas e de peixes, ao roubo de madeira e ao garimpo. Quando foi executado, Bruno Pereira, um dos mais importantes indigenistas de sua geração, estava licenciado da Funai (hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas) porque o órgão estava dominado por uma política contrária aos indígenas e à natureza. Bruno havia sido exonerado de seu cargo de coordenador-geral dos povos isolados depois de fazer uma operação contra o garimpo. Dom estava ali para pesquisar para um livro que já tinha título: “Como salvar a Amazônia”.

Hoje, Rubén Dario da Silva Villar, conhecido como “Colômbia”, está preso como mandante. Também estão presos Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, seu irmão Oseney, e Jefferson da Silva Lima, suspeitos pela execução dos assassinatos. Mas o crime está longe de ser completamente elucidado, em todas as suas conexões, e os povos do Vale do Javari seguem sofrendo pelo domínio dos criminosos, que se acostumaram a agir livremente nos últimos quatro anos.

A presença do Estado é uma demonstração de força e de compromisso diante de um desafio imenso. Para Beatriz, uma antropóloga com 20 anos de experiência com os indígenas, professora da Universidade Federal do Pará, significa também pisar no território que concentra o maior número de povos isolados do planeta. Desta vez, ela lá estará como recém nomeada diretora do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Isolados e de Recente Contato, no Ministério dos Povos Indígenas. Que uma riqueza cultural dessa magnitude esteja tão ameaçada é a denúncia eloquente da negligência deliberada do governo Bolsonaro, cujo genocídio dos Yanomami é infelizmente apenas o primeiro horror revelado.

A entrevista a seguir aconteceu por encontro online – eu em Altamira, Beatriz em Belém do Pará, na última sexta-feira. Ela preparava sua mudança para Brasília com os filhos Pedro Uáqui, de 4 anos, e Luis Vissá, de 3. Ao falar de Bruno, alternava os tempos: às vezes no passado, às vezes no presente. Para Bia, como é mais conhecida, Bruno foi, com frequência ainda é, certamente será para sempre em seu legado na Amazônia, nela própria, em seus filhos. Nesta entrevista, ela fala de seu fascínio pelo Vale do Javari, de sua relação profunda com Bruno, de seus planos no novo cargo. E também do que significou ter seu companheiro assassinado num país presidido por um homem brutal como Jair Bolsonaro.

Bia segue em luto, nem poderia ser diferente. Mas há algo nela que chama atenção mesmo através de uma tela de computador: ela é uma mulher muito viva, cujos olhos lampejam com frequência e a voz alterna diferentes nuances. Todo esse carisma será essencial para o que a espera em Brasília.

Beatriz entre indígenas Matsés da aldeia Nova Esperança, no Vale do Javari, durante pesquisa de campo para seu doutorado, em 2011. Foto: arquivo pessoal

SUMAÚMA: O que vai acontecer nesta segunda-feira, no Vale do Javari?
Beatriz Matos: Há uma ação que está sendo articulada pela Univaja e pelo Ministério dos Povos Indígenas para anunciar uma retomada do Estado. É uma sinalização para os indígenas, para a região, que o Estado estará presente e que as instituições precisam ser respeitadas, que nos comprometemos com a retomada da proteção do Vale do Javari. A Univaja vai também entregar um barco que será a unidade de saúde móvel entregue para o povo Korubo, de recente contato. Este era um projeto do Bruno e de Lucas Albertoni [médico especialista em saúde indígena], que desenharam o projeto, desenharam o barco. Bruno foi para Santarém várias vezes para acompanhar a construção do barco. A Univaja vai entregar esse barco para a Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena]. É mais uma concretização de um trabalho que é do Bruno e também de outras pessoas. Vai ser um momento bem bonito. Mas é isso: uma ação para dizer que o Estado agora está presente. Nós precisamos enfrentar essa situação do crime organizado que está tomando conta das terras indígenas não só no Vale do Javari, mas em todo o país. É preciso que seja uma ação interministerial, porque estamos combatendo o tráfico internacional.

E como fazer isso?
É muito complexo enfrentar o crime organizado, e é necessário especialistas para responder. É uma loucura, porque envolve a mesma rede [criminosa] que está ali no Rio de Janeiro, em São Paulo, onde também causa a morte de jovens negros. É algo de grande complexidade. Mas o que a gente pode garantir é que as forças de segurança do Estado vão proteger as pessoas. Garantir que possam atuar respeitando a diversidade dos modos de vida que existem ali. Se o lucro do tráfico [de drogas] é muito maior [do que as atividades tradicionais das comunidades], é preciso que exista mais repressão para que o risco se torne muito mais alto. É preciso diminuir a equação risco-benefício. O risco [de violar a lei] tem que ser mais alto do que o lucro [obtido com o crime].

Como é para você voltar para o Vale do Javari?
Eu não sei… Eu nunca mais estive lá. Vai ser uma viagem rápida, porque não posso ficar mais do que um dia longe dos meninos. E também por conta da minha segurança. Eu trabalho no Vale do Javari desde novembro de 2004. Eu conheço muito a região, conheço indígenas de várias povos, já dei aula, já fiz projetos, tenho certeza que muita gente quer falar comigo, prestar homenagem. É um lugar que eu amo, que eu adoro, onde construí quase toda a minha vida profissional, conheci o Bruno lá, o pai dos meus filhos, acho que muito do que fez a gente ter se apaixonado foi movido por paixão comum [pelo Vale do Javari]. A gente tinha essa fantasia de viver lá com os meninos. A gente tinha muito esse sonho, a gente tem uma casa lá. Então, vão ser muitas emoções contraditórias. E tem esse caráter de justiça, de reparação. Alessandra [Sampaio, mulher do jornalista britânico Dom Phillips] também vai.

Beatriz e Alessandra Sampaio, viúva de Dom Phillips, no ato interreligioso realizado na Catedral da Sé, em São Paulo, no dia 16 de julho de 2022. Foto: Sérgio Silva

Como é que você está sentindo tudo isso dentro de você?
Tanta coisa. Será que eu falo com os meninos que vou pro Vale do Javari? Porque eles sabem que o pai deles morreu lá, que nunca mais voltou de lá. Eles sabem bem disso. Os dois conheceram o Vale do Javari quando estavam na minha barriga. E também vai ser a primeira ação que vou fazer no cargo. Desde que aconteceu isso, estou no um dia de cada vez. Estou tentando pensar só na mala que tou fazendo, no que preciso deixar, o que preciso tirar da geladeira. Mas, na verdade, estou ansiosa.

Quando Bruno e Dom foram assassinados, o Vale do Javari dominou o noticiário e se tornou um nome que está no imaginário das pessoas. Mas as pessoas não conseguem ter uma imagem do Vale do Javari. Como é o Vale do Javari que você vê e como essa região, entre tantas Amazônias, foi escolhida por você?
É difícil explicar, porque eu estava recém-formada, em 2003, e passei na seleção do CTI [Centro de Trabalho Indigenista]. Era para eu trabalhar em outro lugar, mas eu olhava o mapa e queria ir para o Vale do Javari. Eu lembro direitinho disso, de ficar olhando o mapa e querendo ir para lá. Via o rio e queria ir para aquela fronteira.

O que é fronteira para você, além do óbvio?
A fronteira é um lugar que concentra em um curto espaço uma enorme diversidade. De gente, de comida, de música, de religiosidade, de modos de vida, de possibilidades, de jeitos de ser. Tem milhões de formas de tomar ayahuasca, tem milhões de cultos evangélicos, tem milhões de igrejas messiânicas, tem milhões de movimentos, tem milhões de línguas. Esse diálogo é fascinante. Letícia e Tabatinga são cidades muito interessantes. Em Letícia você tem indígena da Colômbia, tem indígena do Peru, tem indígena do Brasil. É um universo muito cosmopolita. Em Atalaia [do Norte], mesmo, naquele buraquinho ali da Amazônia brasileira, você tem cozinha internacional. Você come um ceviche maravilhoso, toma uma cerveja cusquenha. E todas aquelas músicas…. E o Javari é isso, também. É riquíssimo [em diversidade], com tantos povos diferentes entre si. Uma coisa que me impressionava muito é que você podia passar um mês sem repetir a carne ou peixe, sabe? É louco, porque é um lugar que eu amo demais e que vai ser marcado para sempre por tudo o que aconteceu. Ao mesmo tempo, é tão louco o Bruno ter morrido lá. O certo era Bruno morrer velhinho, no flutuantezinho que ele falava que a gente ia ter, mas morreu assim. Se ele estivesse vivo, ia realizar tanta coisa ainda. Fico imaginando ele com, sei lá, com 60, 70 anos, o tanto de coisa que ele ia fazer, né? Uma perda assim…

Bruno Pereira, em 2018, durante seu trabalho de campo no Vale do Javari. Foto: © Gary Calton 2018

O que seria justiça para Bruno e Dom, justiça para o Vale do Javari?
As pessoas que fizeram isso precisam ser punidas no sentido da lei, dentro da lei. Porque é muita crueldade você arrancar uma pessoa da vida dela, da nossa vida. É muita crueldade você arrancar um pai de duas crianças pequenas e de uma filha passando agora da adolescência. Privar ele da nossa história, privar a gente dele. É muita sacanagem, sabe. Ninguém merece isso e ninguém pode fazer isso com ninguém. É uma coisa que é realmente  terrível. Então precisa ter justiça. É importantíssimo que os mandantes sejam punidos. Mas o mais importante é que não se repita. Que as pessoas possam ter segurança para andar lá, possam ter condições de viver naquele lugar maravilhoso sem medo, tenham segurança de fazer o seu trabalho sem ter sua vida ameaçada. Possam viver do seu jeito, com o seu modo de vida, da forma que quiserem viver, sem serem ameaçadas ou obrigadas a entrar para as redes criminosas, sem serem obrigadas a virar pistoleiros. Então, acho que a melhor forma de fazer justiça é garantir que as pessoas possam viver segundo seu modo de vida. Porque sempre temos que lembrar que os indígenas estão ali há muito mais tempo do que a gente.

Você responsabiliza Bolsonaro pelo que aconteceu?
Eu responsabilizo Bolsonaro e também o [Marcelo] Xavier [presidente da Funai na época do assassinato de Bruno e Dom]. O Bolsonaro falou que eles não deviam estar no Vale do Javari porque lá você teria que andar com escolta armada. [“Naquela região, geralmente, você anda escoltado. Foram para uma aventura, a gente lamenta pelo pior”, disse o então presidente, em 9/6/2022]. Eu não esqueço isso. Como é que o presidente de um país afirma isso sobre qualquer território que está sob a jurisdição dele? Se é um lugar onde é necessário andar com escolta armada, então se você é presidente você precisa intervir com o Exército, com a Polícia Federal, com a Força Nacional. Não é outro país, é o país do qual ele era o presidente. [O Vale do Javari] ficou assim porque foi deixado para os bandidos tomarem conta. Mas ali é um lugar que tem escola, é um lugar que tem família, é um lugar que tem criança, aquele rio é uma avenida onde passa barco. Quando Bolsonaro falou isso, me senti como uma mãe de família que mora na Rocinha [comunidade com favelas, no Rio de Janeiro], ouvindo alguém na televisão falando que aquele lugar é perigoso, que é um lugar cheio de bandidos. Que afronta, né. Está falando de onde eu moro aqui com a minha família, meu filho, onde minhas crianças vão para escola, minha mãe usa o hospital. Como é que tem alguém, uma autoridade, afirmando com aquela cara mais deslavada do mundo que é um lugar perigoso, que as pessoas não deviam morar lá, se a pessoa mora ali há 40 anos, né? Foi o que eu senti quando ele falou aquilo. Naquele lugar [onde Bruno e Dom foram mortos] eu já passei mais de 100 vezes trabalhando. De barco, de manhã, de tarde, de noite. Mas deixaram as coisas chegarem àquele ponto por negligência, porque o governo de Bolsonaro não fez coisas básicas. É o mesmo que estamos vendo agora com os Yanomami, a negligência dele está ficando clara para o mundo inteiro.

Beatriz Matos durante o trabalho com os povos Matis e Korubo, no Vale do Javari, em 2015. FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Viver o que você viveu é terrível em qualquer circunstância, mas acredito que deva existir uma tortura adicional quando a autoridade máxima do país faz declarações como essa. Como cada uma das frases brutais de Bolsonaro e também de [Hamilton] Mourão [então vice-presidente do Brasil] e [Marcelo] Xavier impactavam você?
Foi o mesmo que devem ter sentido os familiares das pessoas que morreram de covid-19 e tiveram que assistir Bolsonaro fazendo gracinha, imitando uma pessoa sem ar na TV. É inacreditável que uma pessoa faça isso. No dia em que foram descobertos os corpos, eu realmente ainda acreditava que Bruno iria aparecer. Eu pensava: “O Bruno é tão forte”.  Porque o Bruno tinha quase dois metros, ele era grandão, né? E eu pensava que o Bruno estava vivo, só tinha perdido o barco e estava esperando alguém passar, como já tinha acontecido antes. Aí foi o dia em que apareceram as roupas e a mochila, né? Aí os bandidos mostraram onde tinham enterrado eles. Foi o dia em que eu realmente desabei. E nesse dia teve uma motociata do Bolsonaro aqui em Belém. Era foguete e festinha do Bolsonaro na rua. Parecia um pesadelo. Sabe, qualquer pessoa, por mais imbecil, ignorante e ridícula que seja, ia pelo menos fingir comoção. Dizer pelo menos que lamentava, né. E o cara fez uma motociata. Quando tudo aconteceu, eu fiquei 10 dias literalmente sem dormir. Dormia uma hora e já acordava. E ele [Bolsonaro] falou uma coisa ainda pior, disse que os rios ali são cheios de piranha e àquela altura… [“Pelo que tudo indica, se mataram os dois – espero que não — , eles estão dentro d’água. E dentro d’água pouca coisa vai sobrar, o peixe come. Não sei se tem piranha lá no Rio Javari…”, disse Bolsonaro em 13/06/2022]. Falou assim, entendeu? Porque tem gente ruim nesse mundo, mas nesse nível… Como é que chegamos ao ponto de eleger alguém assim como presidente? Quando teve o primeiro turno [da eleição presidencial de 2022], e eu vi a quantidade de votos que ele teve, eu tive uma crise de choro.

E no segundo turno?
Ficar pelo menos em parte livre disso para mim é realmente um outro mundo. E, no meu caso e no caso da minha família, [se Bolsonaro ganhasse] eu não sei o que seria da gente. Não sei o que seria feito do Vale do Javari, o que seria feito dos indígenas, o que seria feito da universidade pública.

Você vai processar Bolsonaro?
Eu vou estudar isso com calma. Eu quero, mas preciso avaliar o custo pessoal disso. Tenho dois meninos pequenos. Se fosse só eu…

Em 2015, a pedido da Funai, Beatriz fez um diagnóstico de compartilhamento de território entre os povos Matis e Korubo no Vale do Javari. Foto: arquivo pessoal

Você está se mudando para Brasília para assumir a diretoria que cuida dos povos isolados e de recente contato no Ministério dos Povos Indígenas. Vai habitar um outro ecossistema que também tem seus perigos, dentro de um governo que foi eleito com uma frente ampla onde há vários inimigos notórios da Amazônia, dos vários biomas e dos povos indígenas. Como é que você está se preparando para esses embates internos?
Isso me lembra uma cena de Missão [filme de Roland Joffé, de 1986, que se passa numa incursão de padres jesuítas na Amazônia brasileira]. Um personagem fala que perto das bestas do Vaticano ou da corte, essa floresta não tem nada, né? É meio isso. [ri] Mas eu estou procurando conversar com as pessoas que já tiveram experiência de governo. E sei também que não estou sozinha. Tem aí uma turma de gente que nem está no governo, mas que está na militância há muito tempo comigo, e eu me aconselho com essas pessoas. E confio também na minha capacidade de conversa, sabe, porque às vezes é só uma questão de as pessoas conhecerem para mudar sua postura. Eu sou professora e acredito muito na educação. É uma oportunidade muito grande e temos que trabalhar para fortalecer o ministério e a ministra [Sônia Guajajara]. Para que ela tenha força nas disputas que virão. Para que ela tenha força para chegar para um senador e falar: “isso não”. Tenho a impressão que a reação ainda está por vir e será pesada, mas também tenho a esperança que vem desse holofote que Lula colocou na questão dos Yanomami, porque, ao ir para Boa Vista, ele fez uma blindagem. Foi como se dissesse: “Nós estamos falando de genocídio, nós estamos falando de calamidade, então doa a quem doer, será feito o que precisa ser feito. Frente ampla, ok, mas tem um limite”.

Quando procurei você para entrevistá-la e mencionei o quanto deveria estar difícil fazer essa mudança para Brasília, depois de tudo e com duas crianças pequenas, você comentou que, sim, era difícil fazer isso sozinha, mas estava animada e esperançosa. Por quê?
Só o Bolsonaro não ter sido reeleito já traz muita esperança pra gente, né? Mas, para além disso, eu acho que realmente tem uma postura de governo diferente em relação à questão indígena. Isso é sinalizado pela constituição desse Ministério dos Povos Indígenas, que é uma coisa realmente histórica, inédita no Brasil e de muita força política. Temos uma ministra, mulher, indígena, uma pessoa que foi forjada nas trincheiras, mesmo, uma pessoa que agora tem status de ministra, está nessa posição perante as outras instâncias do próprio governo. Já é uma diferença gigantesca. Antes estávamos trabalhando no OPI [Observatório dos Povos Isolados] para que a política não fosse totalmente destruída. Agora, tudo o que a gente vem discutindo e sonhando podemos fazer. Não só reconstrução, mas também construção de uma nova política para os povos isolados ou de recente contato.

A sua nomeação para cuidar dos povos isolados é muito simbólica, também, na sua vida pessoal. Porque o Bruno tinha um cargo semelhante na Funai [o de coordenador-geral de povos isolados e de recente contato], de onde foi arrancado pelo governo Bolsonaro por pressão de ruralistas. E agora, depois de tudo, Lula e o PT voltam e você assume esse posto. Como isso cai dentro de você?
A pauta dos isolados sempre foi uma pauta do Bruno. Ele entrou na Funai em 2010 e já foi se encaminhando para trabalhar com essa questão. Em dez anos ele virou um dos indigenistas mais importantes do país. Nós criamos junto o OPI [Observatório dos Povos Isolados], junto com outras pessoas, primeiro como uma rede de apoio, depois oficializamos como uma organização. Tivemos então dois filhos, um seguido do outro. O Bruno ficava na linha de frente, no trabalho de campo, e eu ficava pensando [nas ações e nos conceitos] junto com ele. Temos um filho de quatro anos e outro de três, então, com as gestações, estou há cerca de cinco anos nessa maternagem pesada, mas nunca deixei de trabalhar nem de pensar junto com ele. Segui dando aula e pesquisando. Esse grupo de pessoas articulado por ele para pensar as políticas para os povos isolados estava na transição de governo, nós ajudamos a desenhar essa parte no novo ministério. Pra mim foi um convite meio irrecusável. É muito interessante estar neste momento histórico, ter essa oportunidade de fazer as coisas que pensamos juntos.

Na confluência dos rios Ituí e Itacoaí fica uma entrada para a Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, e uma base da Funai. Foto: Lalo de Almeida/Folhapress

E que coisas são essas?
A gente tem planos de reestruturar boa parte das bases, inclusive a parte física das estruturas que permitem que as equipes da Funai trabalhem em campo, temos planos de fazer programas dentro especificidade de cada território ou região onde há isolados, programas capazes de trabalhar de forma diferenciada com cada povo, pactuados com lideranças indígenas e funcionários. Também é preciso concluir os estudos de identificação. Há várias referências de isolados que ainda estão em estudo ou que são apenas informações que precisamos confirmar. Em algumas regiões é preciso passar da restrição de uso, que é apenas uma fase inicial, para a demarcação. Também é preciso fazer a desintrusão [expulsão de invasores]. Temos ainda a situação urgente de algumas áreas. Neste momento, há a emergência da situação dos Yanomami, onde há também isolados e sabemos que o garimpo está perto deles. Há o próprio Vale do Javari, há Arariboia, há Ituna-Itatá, há outras regiões no norte do Pará. Todas as áreas ficaram em situação de emergência no governo Bolsonaro. Então, é até perigoso elencar uma área mais prioritária que outras, porque estamos na iminência de genocídio em vários lugares.

Esse conceito de povos isolados é muito nebuloso para boa parte dos brasileiros. Como você explicaria isso para as pessoas?
Falar em poucas palavras sempre é difícil. Ainda mais que eu sou antropóloga e professora, né… Difícil resumir. Na verdade, essa palavra “isolamento” leva a gente a pensar em uma situação que na verdade não existe, que seria uma situação de um povo sem relações com outros povos, vivendo só entre eles. Mas essa é uma imagem até certo ponto errônea, porque quando a gente fala de povo isolado estamos falando em relação não só à sociedade nacional, mas em relação às organizações, às instituições da sociedade nacional. Aqueles que a gente denomina “povos isolados” muitas vezes têm relações esporádicas com indígenas de outros povos do entorno, têm relações até mesmo históricas com ribeirinhos, com não indígenas, ou já tiveram trocas comerciais e outras relações ao longo da história. O isolamento, no caso, se dá como uma recusa de estabelecer relações duradouras ou constantes com a sociedade nacional. Eles têm suas próprias relações e redes, suas próprias organizações, que podem ser de inúmeras formas. Têm suas relações rituais, suas relações de troca, suas relações comerciais, suas relações religiosas xamânicas. Também se relacionam com muito mais povos do que os humanos propriamente ditos, com os povos-queixada, com os povos-onça, por exemplo. Podem ter uma miríade de relações sociais para além das relações humanas. Historicamente, os não indígenas chegam e querem estabelecer relações que tornam esses povos parte da nossa organização social. Mas os isolados recusam isso e demonstram essa recusa de várias maneiras. Antes da Constituição de 1988 havia uma política de “integração”, em que o contato com os povos indígenas era forçado. Você ia doando coisas aos indígenas, você ia conversar com eles, ensinava o português, e ia então transformando e limitando as relações sociais daquele povo. Ou então havia os missionários, que iam converter os indígenas. A partir da Constituição, passou a vigorar a política de não contato, em respeito àqueles povos que se recusam a manter uma relação com o Estado brasileiro. Alguns povos mostram essa recusa através de flechadas ou de fugas, outros abandonam o lugar onde viviam quando percebem que não indígenas ou outros povos se aproximam, outros ainda colocam armadilhas na tentativa de impedir que os não indígenas avancem. O que o Estado deve fazer, a partir da política de não contato, é delimitar um território seguro para eles. É preciso compreender que território eles estão ocupando, a partir de um monitoramento que permita entender onde eles estão transitando, e então fazer a demarcação.

Por que você acha que Bruno era tão fascinado pelos chamados povos isolados?
É difícil explicar a paixão. É como eu tentando explicar o porquê do meu fascínio pelo Vale do Javari. Mas tem um lado do Bruno que é mais indígena, mesmo. Ele gostava muito do mato. Ele gostava de estar lá, ele gostava de rastrear bicho, ele gostava de plantar. Ele gostava de aprender com os indígenas, essa coisa dos sinais, de ouvir passarinho cantando. Qual é o passarinho, qual é a espécie, essa conversa íntima que os indígenas têm com a floresta. Bruno era muito fascinado por isso. Esse trabalho com os isolados, de fazer as expedições, colocava ele muito no elemento dele. Eu até ficava chateada [ri]. Tipo passar um mês fora sem sentir falta de nós, sabe. E não, ele não sentia, porque tinha um comprometimento espiritual e existencial com aquilo tudo. Essa relação é também um pouco o que me pega, sabe, essas outras alternativas de vida. Esses outros mundos possíveis. Mesmo os indígenas às vezes pensam nos isolados como possibilidades, no sentido de voltar a viver no mato. Eles vivem no mato, mas quando falam em voltar para o mato é nesse sentido, o de recusar essa porcariada toda em que a gente os enfia. De estar longe dessa merda, né? Existem esses povos que recusam e isso é uma potência muito grande. Então é muito fascinante. São potencialidades de vida. Com isso não quero fazer uma projeção do que interessa a nós, sabe. Tipo uma sociedade perfeita e tal, essa autonomia diante do capitalismo… É importante dizer que essa recusa significa também escolhas difíceis, como morrer por doenças que poderiam ser curadas. E também dizer que muitos estão acuados, encurralados, ameaçados de morte. Também tem essa dimensão. Mas é lindo ter um outro mundo possível. E eles estão resistindo. E nós temos que garantir que eles possam continuar tendo água limpa, tendo lugar para andar, garantir que não tenham que pagar com suas vidas o preço de recusar [o Estado].

O Bruno era conhecido por sua obsessão pelo trabalho. Como era isso no cotidiano da vida pessoal de vocês?
Ele era muito obcecado, ficava pensando nisso o dia inteiro, sabe. Tinha dia que eu falava: “Bruno, vamos falar de criança, vamos falar de música”. Mas não, ele era muito obcecado. Tipo o telefone tocar 3 horas da manhã e ele acordar pra atender. Essa questão [dos isolados] é muito cheia de urgências, né? Era a paixão dele. Estou levando o Bruno comigo, levando todo esse coletivo que construiu [a OPI] junto. Com certeza absoluta, ele estaria ocupando esse cargo. Penso então que é uma forma de manter Bruno vivo.

O indigenista Bruno Pereira em foto de outubro 2019, época em que foi afastado da Coordenação-Geral de Povos Isolados da Funai. Foto: Daniel Marenco/EFE

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