Jornalismo do centro do mundo

Golfinho encontrado morto no lago Tefé, que desemboca no rio Solimões, no interior do Amazonas. A alta temperatura das águas pode ser a causa da morte de botos e tucuxis na região. Foto: Bruno Kelly/Reuters

Corpos enfileirados de botos, corpos em sofrimento pelo aquecimento das águas, corpos daqueles que nada podem fazer contra nosso desejo de destruição. A seca extrema na Amazônia é consequência da sobreposição do El Niño ao aquecimento global produzido por ação humana. A morte inédita dos botos nessa quantidade, cujas causas estão sendo estudadas, pode ter sido provocada pelo colapso climático. Não é algo repentino, mas algo previsto pelos indígenas e pelos cientistas há décadas – previsto, avisado, gritado, mas não escutado. Não se trata de apocalipse nem de tragédia, muito menos de fatalidade. As pessoas humanas não estão apenas expostas a forças naturais muito maiores, como no passado distante. As imagens que vemos nas telas de nossos aparatos tecnológicos são espelhos – o reflexo da produção de violências contra a natureza, da ação extrativa da floresta e dos outros biomas. É a obra que uma minoria de pessoas humanas foi capaz de fazer em pouco mais de dois séculos, quando a “revolução industrial” (nome que aprendemos nos livros e nas aulas de história) passou a arrancar da terra em proporções crescentes os combustíveis fósseis – carvão, gás e petróleo. E aquilo que deveria ter continuado embaixo da terra, ao ser extraído das profundezas, se transformou em emissor de dióxido de carbono, o principal gás do efeito estufa. E assim, nós, humanos, passamos a produzir o aquecimento do planeta, a alterar o clima e a forma da Terra, a única casa que temos e que dividimos com todos os outros milhões de espécies. E então chegamos a esse momento e nos deparamos com os corpos dos botos.

Os botos podem ser apenas a parte mais visível do horror. Milhões de outras pessoas não humanas, das abelhas aos pássaros, dos peixes aos sapos, das onças aos macacos, sofrem neste momento – e muitas já morreram ou morrerão. Milhares de indígenas, ribeirinhos e quilombolas, povos tradicionais da floresta, estão em intenso sofrimento, parte deles exilados por rios secos. Na natureza se vive em conexão e se morre em conexão, porque tudo é interdependente. Se quisermos que essas cenas não se repitam, cada vez com mais horror, cada vez com mais dor, cada vez com mais mortos, será preciso olhar para os responsáveis pelo aquecimento global. E lutar para barrá-los. Não amanhã – agora.

É isso que o jornalismo de SUMAÚMA faz.

Nesta newsletter, publicamos nossa primeira reportagem da série INSUSTENTÁVEIS – como as corporações transnacionais contam com a impunidade para violar a Amazônia. A série é uma parceria do Transnational Law Institute, do King’s College de Londres, com SUMAÚMA – Jornalismo do Centro do Mundo. Neste primeiro artigo, um trabalho coordenado pela editora de investigações, Ana Magalhães, com apuração da jornalista Isabel Harari e fotos de Alessandro Falco, mostramos como a Cargill, a “pior empresa do mundo” segundo a organização Mighty Earth, atua para construir o terceiro grande porto na floresta. Nas próximas semanas e meses traremos mais conteúdos investigativos de profundidade sobre outras corporações transnacionais que, apesar da catástrofe que produzem, seguem violentando a floresta e seus povos.

Terminal da Cargill em Santarém, no estado do Pará: não há estudo dos impactos sobre as populações indígenas e quilombolas. Foto: Alessandro Falco/Sumaúma

É bem mais fácil denunciar garimpeiros e madeireiros do que aqueles que estão na ponta da cadeia, bem longe da Amazônia, nas capitais do Sudeste, Sul e Centro-Oeste do Brasil, com maiores lucros e menos riscos, sem jamais precisar se enfiar na lama. Denunciar as corporações transnacionais, algumas delas com bandeiras de países que costumam fazer discursos bonitos pela conservação do meio ambiente, é essencial. Tanto quanto é essencial entender como esses gigantes privados avançam, muitas vezes com a cumplicidade de agentes públicos, apesar da lei ou beneficiando-se de suas brechas.

Mesmo com toda a ciência produzida e todo o ativismo global, corporações transnacionais seguem engolindo mundos na Amazônia. INSUSTENTÁVEIS olhará com lupa para as empresas que devoram o futuro das novas gerações de pessoas humanas e não humanas.

Leia a primeira reportagem da série, sobre a estadunidense Cargill. Na sequência, a jornalista e bióloga Jaqueline Sordi mostra as conexões entre as águas escaldantes da Amazônia e os ciclones que arrasaram o sul do Brasil. Nesta edição, Jaqueline também assina uma entrevista com a cientista Miriam Marmontel, líder do grupo de pesquisa em mamíferos aquáticos amazônicos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Miriam relata as cenas de horror que presenciou no lago Tefé, na Amazônia.

Em 3 de outubro, a Petrobras completou 70 anos. Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, que se dedica a políticas de mudanças do clima, escreveu um artigo muito esclarecedor sobre o impasse em torno do petróleo. A ideia de que petróleo é sinônimo de riqueza alimentou o mundo e o Brasil até bem pouco tempo atrás, apesar de todos os alertas da melhor ciência do clima e da Terra. Agora, no terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, a despeito de todos os eventos extremos pelos quais passa o país neste ano, a Petrobras, com o apoio de grande parte do governo e do próprio presidente, quer abrir uma nova frente de exploração de petróleo na bacia da foz do Amazonas, na chamada “margem equatorial”.

SUMAÚMA luta pelo respeito a toda vida, a das pessoas humanas e a das pessoas não humanas. Como os humanos se colocam no topo da hierarquia, quanto mais diferentes de nós forem nossos vizinhos, maiores serão o desconhecimento e a indiferença com relação ao seu destino. Como se do destino de um não dependesse o destino de todes. Nesta edição, convido-os a ler meu ensaio sobre os fungos da Amazônia, em coautoria com a cientista acadêmica Noemia Kazue Ishikawa e com o cientista da floresta Francisco Marques Bezerra. É uma reportagem que exige entrega – não por ser difícil ou complicada, mas porque chama para um outro mundo que nos costura mas não percebemos, abre uma outra camada de percepção da Terra – e de nossa própria vida.

Queremos ainda compartilhar o quarto prêmio de SUMAÚMA neste primeiro ano: a reportagem “Os defensores não defendidos”, de Catarina Barbosa e Talita Bedinelli, recebeu menção-honrosa no Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. As jornalistas documentam a indignidade vivida por aqueles que, ameaçados de morte por colocar seu corpo na linha de frente da guerra contra a natureza, são obrigados a deixar seus territórios no estado do Pará e enfrentam todo o tipo de dificuldades e humilhações nos programas que deveriam protegê-los.

São diferentes textos que reunimos nesta edição, mas estão conectados. Precisamos voltar a ler o mundo fazendo conexões – ou não entenderemos o que e quem arrasam com nossa vida. Sem entender, não conseguimos nos defender dos ataques. Sem conseguir nos defender, já não é mais apenas o futuro próximo que estará ameaçado, mas o presente, como denunciam os corpos das vítimas dos ciclones no Sul e os da seca extrema na Amazônia. A hora é agora. É preciso barrar as empresas nacionais e transnacionais que destroem a nossa casa – antes que seja nosso o rosto dos botos.


Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquiria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Fluxo de edição, estilo e montagem: Viviane Zandonadi

Fungos encontrados em um tronco caído na floresta no município paraense de Altamira, na Amazônia brasileira. Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

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