Jornalismo do centro do mundo

Amanhecer na floresta amazônica. Foto: Pablo Albarenga

Após quatro anos marcados por incêndios e mortes na Amazônia, Jair Bolsonaro finalmente deixará o poder – e também um rastro de destruição. Luiz Inácio Lula da Silva assume em 1º de janeiro com a promessa de proteger as terras indígenas e zerar o desmatamento até 2030. Poucas vezes a atmosfera internacional esteve tão favorável a uma possibilidade de mudança. Na COP15, a conferência da biodiversidade da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em dezembro, quase todos os governos do mundo concordaram com novas e ambiciosas metas para proteger a natureza. No início deste mês, a União Europeia, que lidera o consumo das florestas do planeta, aprovou as regulamentações mais rígidas até agora sobre o comércio livre de desmatamento. Nenhum desses eventos é suficiente para impedir que a Amazônia – e o clima global – ultrapasse o chamado ponto sem retorno. Juntos, porém, eles formam o mais promissor conjunto de avanços em mais de uma década. Se forem tomados como um ponto de partida, em vez de um fim em si mesmos, 2023 poderá significar um momento de virada para a floresta, seus povos e todas as outras vidas humanas e não humanas nesse mundo interdependente.

Para que isso aconteça, Lula 3, como é conhecido o terceiro mandato do homem que governou o Brasil entre 2003 e 2010, precisa agir com ousadia em seus primeiros meses. Há sinais encorajadores sobre a reforma do Ministério do Meio Ambiente, o fim da impunidade dos grileiros e a expulsão de garimpeiros ilegais. Mas serão necessários grandes avanços na demarcação de terras indígenas e na reforma agrária para acabar com a violência contra as pessoas e a natureza. Um presidente eleito por uma frente ampla, em alguns casos com interesses antagônicos, um Congresso hostil e o lobby pesado das indústrias extrativistas serão alguns dos principais obstáculos. É preciso enfrentá-los, porque a janela de oportunidade para proteger a Amazônia está se fechando rapidamente. Para que 2023 possa ser um Feliz Ano-Verde, SUMAÚMA preparou sete resoluções de Ano-Novo que acreditamos que Lula fará – ou que pelo menos deveria fazer.

1. Não apenas reconstruir o que foi destruído, mas fortalecer

Em quatro anos, Jair Bolsonaro destruiu as ações de proteção florestal. O novo governo não deve apenas recuperá-las, mas também torná-las mais fortes. A equipe de transição, que incluiu Jorge Viana, Nilto Tatto e Marina Silva, entre outros, pediu ao Congresso que destine 536 milhões de reais a mais para o Ministério do Meio Ambiente. Seria dinheiro bem gasto. A composição dos recursos adicionais inclui 130 milhões de reais para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) utilizar em operações de campo contra garimpeiros e madeireiros ilegais, 90 milhões de reais para prevenção de incêndios pelo Instituto Chico Mendes de Conservação Ambiental (ICMBio) e o Ibama, 80 milhões de reais para proteção e gestão das Unidades de Conservação federais e 200 milhões de reais para ressuscitar o programa Bolsa Verde de apoio a pessoas carentes que vivem em áreas de floresta, para que preservem as árvores, os rios e a natureza.

O Ministério do Meio Ambiente deve também retomar o controle sobre hidrovias e serviços florestais, que foram transferidos para o Ministério da Agricultura e o Ministério do Desenvolvimento Regional durante a presidência de Bolsonaro. Para financiar projetos de reflorestamento, o governo usaria recursos arrecadados em multas ambientais por meio de um sistema que se mostrou eficaz durante o governo Temer. O ministério também planeja uma colaboração maior com os governos estaduais, um passo importante para que as autoridades federais possam ajudar a resolver problemas locais.

A reivindicação mais difícil, porém, é a contratação de 2 mil funcionários adicionais, um incremento considerado essencial para a realização de mais investigações e também para colocar mais agentes em campo. Ainda não há orçamento para isso, o que pode apontar para uma disputa com o Congresso e um pedido aos doadores estrangeiros.

2. Colocar Marina Silva e lideranças indígenas em posições de destaque

No momento da publicação deste artigo, Lula ainda não havia finalizado seu ministério. Rumores sobre disputas internas por cargos ambientais importantes e lobby pesado da indústria atravessaram o mês de dezembro. A deputada Joênia Wapichana (Rede) e a deputada eleita Sônia Guajajara (PSol), duas lideranças indígenas altamente respeitáveis, disputam o Ministério dos Povos Originários. Joênia, primeira mulher indígena a se eleger deputada, conheceu em profundidade a política interna do Congresso e não foi reeleita para um novo mandato. Sônia, por sua vez, ao sair para ocupar um ministério, deixaria um vazio num Congresso hostil para o meio ambiente, mas é uma liderança de notável habilidade, com grande capilaridade e reconhecimento internacional. Há sinais de que Lula escolheu Sônia Guajajara para comandar o futuro Ministério dos Povos Originários, que terá poderes orçamentários limitados, mas fornecerá uma importante plataforma política.

Há uma disputa ainda mais acirrada pelo Ministério do Meio Ambiente, no qual a favorita é Marina Silva, indiscutivelmente a ministra da pasta mais eficiente e icônica do mundo durante o primeiro governo Lula, de 2003 a 2006. Como ex-seringueira nascida e criada na floresta e ativista climática com circulação internacional, ela atingiu exatamente o equilíbrio certo entre o apoio aos meios de subsistência e a proteção da natureza. Marina implementou políticas que levaram a uma queda de 80% no desmatamento da Amazônia, combateu o uso de agrotóxicos e biocombustíveis e tentou bloquear estradas, barragens e outros projetos de infraestrutura que ameaçavam importantes áreas naturais. Justamente por sua eficiência colecionou inimigos poderosos nos setores de construção e agronegócio. Lula os apoiou em vez de apoiar Marina, provocando a renúncia da ministra em 2008, durante o segundo mandato do petista. Sua saída fragilizou o ministério do meio ambiente e provocou uma série de reveses, como a aprovação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, o mais conhecido desastre socioambiental aprovado por Lula e realizado por sua sucessora, Dilma Rousseff. Marina e Lula se reaproximaram politicamente para a eleição de 2022, e Lula concordou com as condições da ex-ministra sobre as principais questões socioambientais. Marina é contestada pelo agronegócio e pelo setor financeiro, mas qualquer outro nome seria um golpe para a credibilidade ambiental do novo governo entre conservacionistas brasileiros, lideranças da floresta e outros biomas e governos estrangeiros.

3. Demarcar e proteger terras indígenas

O novo governo deverá enviar um forte sinal de que o Estado voltou a agir na Amazônia para protegê-la – e não para avalizar sua destruição, como aconteceu nos quatro anos de Bolsonaro. É urgente retomar a demarcação das terras indígenas, interrompida pelo governo de extrema-direita, e proteger os territórios indígenas invadidos por garimpeiros, grileiros (ladrões de terras públicas que se apresentam como fazendeiros ou produtores rurais), narcotraficantes e grupos criminosos de pescadores.

No início do novo governo, uma grande operação — ou uma série de operações — contra garimpos ilegais dentro do território indígena Yanomami, Munduruku ou Kayapó poderá ser transformada em evento midiático. Espere imagens dignas de Hollywood, com agentes de proteção florestal descendo em helicópteros militares, prendendo criminosos e queimando todos os equipamentos à vista. O tamanho e a eficácia dependerão de quem dirigir os trabalhos.

As incursões iniciais vão sinalizar que o Brasil está sob nova administração, mas uma solução de longo prazo levará anos e será muito mais complexa, porque os garimpos ilegais estão espalhados por toda a Amazônia e com frequência incluem indígenas que foram aliciados para atuar sob o comando de chefes de garimpo e do crime organizado. Não basta expulsar os garimpeiros, é preciso encontrar uma saída para milhares de homens pobres e sem qualificação profissional, alguns deles trabalhando em condições análogas à escravidão, poderem recomeçar suas vidas com novos destinos.

4. Punir desmatadores, oferecer alternativas e dividir a terra de forma justa e sustentável

A nova equipe de Lula vai precisar enviar um sinal inequívoco de que os anos de impunidade para grileiros e madeireiros acabaram. Isso provavelmente virá na forma de um “embargão” de milhares de empresas e proprietários de terras envolvidos no desmatamento ilegal. Marina Silva provou a eficácia desse tipo de ação quando foi ministra do Meio Ambiente, rastreando as pessoas que financiavam roubos de terras na Amazônia e punindo-as com embargos de negócios, retirada de crédito, elaboração de uma lista de desmatadores e multas. A próxima ministra ou ministro deverá atuar nesse rumo logo nos primeiros meses. Essas medidas são muito mais fáceis agora porque o monitoramento por satélites de alta tecnologia, feito por grupos como o MapBiomas, pode identificar com rapidez e precisão onde ocorre o desmatamento e quem é o dono da terra. Assim, há menos necessidade de realmente pisar no chão: avisos de embargo podem ser enviados automaticamente, como multas por excesso de velocidade.

A Polícia Federal terá a tarefa de investigar as empresas de fachada para que os verdadeiros investidores – muitas vezes profissionais liberais e empresários do sul e sudeste do Brasil – sejam identificados, julgados e punidos. Ao contrário do que diz Bolsonaro, a maioria dos casos de desmatamento pode ser atribuída a uma pequena elite rica. O mesmo grupo de (supostos) proprietários de terras está por trás de grande parte da violência na Amazônia, que deve ser abordada por meio de uma reforma agrária que fortaleça pequenas propriedades e assentamentos movidos a agroecologia, em vez de fazendas de gado e monoculturas.

5. Colocar a natureza e o clima no centro

Essa é uma batalha que vai levar décadas, mas a luta precisa começar já. Se Lula puder ser persuadido, os progressistas de todo o mundo terão um estadista para liderar sua causa. A linha divisória na política costumava ser esquerda versus direita, socialismo versus capitalismo, Marx versus Smith. Esses conceitos dos séculos 18 e 19 hoje são inadequados para enfrentar os desafios de um planeta levado aos limites ambientais por uma população de 8 bilhões de pessoas que destruiu 69% da vida selvagem.

Precisamos de uma economia que promova a abundância da natureza em vez de causar sua exaustão em nome do crescimento, do PIB e do consumo. Isso deve andar de mãos dadas com políticas de justiça ambiental capazes de combater o apartheid climático e reconhecer que a degradação do ar fresco, da água limpa e do solo fértil é o maior roubo dos pobres já ocorrido nos milhares de anos da trajetória humana.

Mudar as principais convicções de Lula não será fácil. Ele é um sindicalista da velha guarda que usou sua presidência anterior para implementar um programa de desenvolvimento nacional do século 20, pré-1968, promovendo estradas, hidrelétricas, aumento da circulação de carros individuais e do consumo, maior crédito e enormes subsídios estatais para as indústrias de petróleo, carne bovina, soja, mineração e construção. Em discursos recentes, ele soa mais como um presidente chegando ao século 21, ao reconhecer que uma grande liderança já não está associada apenas ao rápido crescimento econômico, mas principalmente com o bem-estar das novas gerações.

Após a vitória nas urnas, Lula enfatizou a necessidade de lutar pelo meio ambiente, pelos direitos dos povos originários e pelo desmatamento zero até 2030. Em sua primeira viagem ao exterior como presidente eleito, participou da COP27, a grande conferência do clima, em Sharm el-Sheikh, no Egito. Marina Silva o convenceu de que as metas de desmatamento zero devem se aplicar não apenas à Amazônia, mas a outros biomas de importância global, como o Pantanal e o Cerrado. É importante que Lula continue a expandir sua visão em 2023.

6. Persuadir os países ricos a pagar mais pela gestão dos bens comuns globais

A diplomacia da natureza precisa ser a base da política externa do Brasil no governo Lula. Esta é a melhor forma de afirmar a liderança moral e política do país que abriga 60% da maior floresta tropical do planeta, assim como pressionar os países ricos a pagar pela manutenção dos sistemas globais de suporte à vida e assegurar os meios de subsistência das gerações atuais e futuras, humanas e não humanas. Como presidente da nação com maior biodiversidade do mundo, Lula está na posição ideal para impulsionar essa agenda – e o momento é perfeito graças aos novos desdobramentos políticos na Europa e nas Nações Unidas.

O destino da floresta tropical não é decidido na Amazônia, e sim nos mercados internacionais que compram carne, madeira, soja e minério de ferro. Nesse sentido, a União Europeia, maior consumidor mundial de produtos florestais, é, indiretamente, a maior desmatadora do planeta. A adoção de novos regulamentos pelo bloco econômico para impor rígidas exigências de rastreabilidade sobre os produtos florestais, verificações de fronteiras mais rigorosas e punições para empresas e países que não detenham o desmatamento ou a degradação foram uma das melhores notícias de 2022. É um grande avanço em relação à abordagem anterior, que dependia de ações voluntárias, e espera-se que os outros dois principais consumidores da Amazônia – China e Estados Unidos – adotem medidas semelhantes. Com um pouco de incentivo do governo, as empresas brasileiras de carne bovina e soja teriam um forte estímulo para aumentar a produtividade, reabilitando terras degradadas em vez de desmatar a floresta. Isso também poderá persuadir companhias controversas como a JBS a adotar uma moratória da carne bovina.

Lula poderia usar o pacto do Brasil com as outras duas superpotências da biodiversidade, a República Democrática do Congo e a Indonésia, para impulsionar o novo acordo global para a proteção da biodiversidade, que acaba de ser assinado na COP15 das Nações Unidas em Montreal, no Canadá, prometendo 30 bilhões de dólares para garantir que 30% da natureza seja protegida até 2030. Uma parte substancial desse dinheiro deve ir para a Amazônia e seus povos.

O acordo de Montreal também enfatizou a importância das comunidades indígenas no manejo das florestas e de outros ecossistemas cruciais, o que se alinha às prioridades do novo governo brasileiro. Lula, Marina Silva e lideranças indígenas como Sônia Guajajara e Joênia Wapichana podem se tornar os símbolos dessa nova abordagem da natureza, dando um forte exemplo em casa e persuadindo as nações ricas a cumprir e superar suas promessas, que ainda estão longe de serem suficientes.

Para isso, há um forte argumento. Em muitas nações ricas, os governos pagam aos agricultores para manter e conservar as fontes de água e as florestas, em vez de transformar tudo em monoculturas. O mesmo precisa ser feito em escala global, com países economicamente ricos e empresas pagando a nações que tenham riquezas naturais e comunidades tradicionais para conservar os bens comuns – e essenciais – do planeta. Será difícil de contestar a razão para isso, se o Brasil puder demonstrar uma ação efetiva para combater o desmatamento. O mundo precisa contribuir para isso fazendo pressão e garantindo tanto apoio quanto recursos. Em 2023, Lula enfrentará muitas batalhas contra o lobby das empreiteiras do kmkgronegócio, grande parte dele predatório. Para que a natureza vença a disputa, Lula precisa contar com a pressão da comunidade internacional para a proteção dos ecossistemas, traduzida também em intenção concreta de pagar por ela.

7. Responder à urgência com urgência

O novo governo precisa agir com força, coragem e rapidez. Os principais cientistas do clima e da Terra, a exemplo de Carlos Nobre, alertam que a Amazônia está perto de um ponto de ruptura. Se for ultrapassado, a floresta tropical úmida e biodiversa já não será capaz de se recuperar e vai se degradar até virar um bioma pobre. Pesquisas mostram que isso acontecerá quando o nível do desmatamento estiver entre 20 e 25%. A área desmatada agora está em 17% e há outros 17% já degradados, o que faz com que o ponto sem retorno esteja próximo. Em algumas regiões da Amazônia, ele inclusive já chegou: os períodos de secas duram mais tempo e as árvores estão mais vulneráveis ao fogo, fazendo com que a floresta emita mais dióxido de carbono do que absorva, transformando-a de amiga em inimiga do clima. Devido a aceleração da destruição na segunda década deste século, atingindo seu ápice no governo Bolsonaro, a crise amazônica é muito mais preocupante hoje do que quando Lula se despediu de seu segundo mandato. No entanto, a maior parte do trabalho realizado pela equipe de transição concentrou-se mais na recuperação do que foi destruído no governo Bolsonaro – e menos no planejamento de novas e urgentes medidas para enfrentar o aumento significativo do risco.

Existem ações mais ambiciosas que podem ser promovidas pelo Brasil, como um grande programa de reflorestamento e uma moratória da carne bovina vinda de terras desmatadas. Mas políticas ousadas precisam de forte apoio externo – e, também, de muito dinheiro. Sem isso, Lula simplesmente vai retardar a chegada do colapso da Amazônia em vez de evitar uma tragédia de nível planetário com efeitos irreversíveis.


Tradução de Isabel Murray

Lula no Museu da Amazônia (Musa), em Manaus, durante encontro com cientistas e lideranças indígenas em agosto de 2022. Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real

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