Jornalismo do centro do mundo

Sala de aula em choupana aberta no centro de uma aldeia Sawré Muybu. A onda de violência contra todas as escolas no país é um ataque à possibilidade de vivermos uns com os outros e será preciso resgatar as práticas agregadoras dos povos originários com suas crianças, aponta Ilana Katz. Foto de Outubro de 2014: Carol Quintanilha/Greenpeace

Nas últimas semanas, a violência contra a escola ameaçou seu funcionamento, inclusive com a hipótese de suspensão das aulas. Para compreender por que isso acontece é preciso entender que a escola é a maior expressão da sociedade humana ocidental para o enfrentamento da barbárie – e as ameaças contra ela produzem um efeito imediato: pânico. Não há afeto mais desagregador que esse. Pânico é “salve-se quem puder”. A violência contra a escola é um ataque à possibilidade de vivermos uns com os outros.

Por isso precisamos interrogar: a serviço do que se promove o ataque contra a escola? O pânico tira as pessoas do espaço coletivo, tranca-as em casa, esvazia o espaço público. E fragiliza – muito. O efeito, no pensamento, é não pensar; o efeito, no corpo, é tremer, silenciar ou gritar, é interromper a conversa. O efeito, na vida, é isolar.

Nessa situação, a pergunta insistente que fazemos é: quem vai me salvar? Quem é o responsável? O afeto desagregador não supõe nunca uma resposta coletiva, só procura um culpado. Fica de olho na “maçã podre”, como se tudo fosse se resolver tirando uma fruta estragada da cesta.

A violência contra a escola busca fazer as pessoas acreditarem que, para que estejamos seguros, precisaremos desocupar o espaço do comum, deixar de fazer comunidade. Quando se ataca a escola é isso que se ataca. A violência contra a escola nos faz duvidar da sua condição de cumprir a sua função social: a meta é reduzir seu papel de espaço de convívio e de pertencimento. É exatamente nesse sentido que a escola está sendo violada como espaço público, violada como espaço de convívio, violada como o primeiro lugar, fora da família, que favorece a constituição da experiência com o outro.

As tragédias da Vila Sônia, na cidade de São Paulo, e de Blumenau, em Santa Catarina, violências extremas que aconteceram na escola, são a expressão do conflito de muitas dimensões que vivemos como sociedade. As ameaças contra as escolas que começaram a proliferar depois dos ataques – aquelas que viralizaram nas redes sociais, induzindo famílias a não levarem seus filhos no dia 20 de abril, data do massacre de Columbine, nos Estados Unidos – configuram um fenômeno que não é de expressão do conflito. Como me ensinou o psicanalista e professor da Faculdade de Educação da USP Rinaldo Voltolini, trata-se, nesse caso, da promoção do conflito. Essa diferença fundamental, entre expressar e promover o conflito, e o modo como essas duas categorias se articulam, é a que nos interessa para entender o que está acontecendo.

É preciso examinar os diversos fatores que compõem esse conflito. Trabalhos do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem) e do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp afirmam que a violência no interior das escolas, assim como os ataques contra elas, está relacionada à escalada do ultraconservadorismo e do extremismo de direita no país – e também à falta de controle e de criminalização desses discursos. Esses dados foram analisados pelo grupo de transição de governo, o que torna possível afirmar que ficamos assustados com os acontecimentos terríveis, mas nenhuma pessoa ou instituição que teve acesso a esses trabalhos pode se declarar surpreendida.

Para começar, é preciso prestar atenção no que se alardeia e no que se invisibiliza: no mesmo dia da tragédia de Blumenau, uma escola no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, foi abordada por agentes policiais em dois carros blindados que tentavam capturar integrantes de grupos armados que tinham se escondido no local. Deveria ser desnecessário, mas, infelizmente, ainda é preciso dizer: na Maré, como em todos os outros cantos deste país, escola é lugar de criança. Promover a crise, invadindo os muros da escola, produzindo violência contra a escola, não contra uma escola, mas contra a escola – instituição central da nossa organização social –, não é, de forma alguma, um gesto qualquer e sem objetivo.

Estamos diante de uma oportunidade vigorosa de entender a segurança pública como um determinante de saúde mental – e de pensar o lugar da escola nessa construção. Para isso, é preciso enfrentar a tendência da atualidade de reduzir um problema que é social a uma questão individual. Nesse sentido, realizar o diagnóstico de saúde mental dos agressores é uma clara tentativa de impedir a crítica política que precisamos fazer: é o nosso funcionamento social, com suas estratégias de exclusão, que condiciona a produção da violência que acontece nas escolas e contra a escola.

O pesquisador indiano Vikram Patel define saúde mental como pertencimento e assim desafia essa compreensão e nos ajuda a entender as relações entre segurança pública e saúde mental. Com ele, podemos todos entender que ocupar, usar, usufruir, fruir o espaço comum produz segurança – e produz também saúde mental. Afinal, poderíamos perguntar: quem vive bem ao se sentir inseguro? Quem vive bem com os outros ao se perceber ameaçado?

A promoção da saúde mental faz parte do mandato público da Saúde, que, para alcançar seu objetivo de transformação da realidade social das infâncias e juventudes, deve trabalhar articulado com a escola. Essa prerrogativa não se reduz a ter um psicólogo para escutar cada um individualmente, mas inclui, necessariamente, a promoção de ações e gestos, no interior da escola, que produzam acolhimento, escuta, conversa. Que façam da escola lugar de pertencimento para as infâncias e juventudes. Que façam do convívio, currículo.

Ataques a escolas em São Paulo motivaram a ‘Caminhada pela Paz’, organizada pela Escola Municipal de Ensino Fundamental Perimetral, no dia 20 de abril de 2023, em Paraisópolis. O bairro da capital paulista abriga uma das maiores favelas do país. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Quando pensamos em escola, muito rapidamente consideramos a sua tarefa de transmitir a cultura produzida pela humanidade na forma dos conteúdos acadêmicos. Ao lado e articulada a essa tarefa, porém, está o modo de fazer isso, está a distribuição do tempo e do investimento sistemático dedicado a cada um dos conteúdos. É nesse contexto que se considera que o convívio tem estatuto curricular entre as práticas educacionais. Para a formação das novas gerações, os conteúdos específicos no campo do conhecimento formal são tão importantes quanto os usos que se pode fazer de cada um deles. Um currículo que distribua conhecimento sobre as culturas negra e indígena e que, junto com isso, construa práticas de relação entre as pessoas e suas diferenças, no interior da escola, é certamente um currículo que põe em pauta e pratica, no chão da escola, o convívio nas suas dimensões humanas.

Os povos originários, com as diversas formas em que cada etnia e cada aldeia criam e produzem coletividade, têm muito a ensinar sobre o que é convívio e suas práticas agregadoras de crianças e jovens. A escola, por sua vez, pode inventar várias estratégias propositivas do convívio, mas nenhuma será tão potente quanto a construção de um currículo antirracista e anticapacitista.

A crescente vulnerabilização das experiências de infâncias e juventudes, entre todas as populações vitimadas pelo discurso de ódio, tem efeitos graves na saúde mental. É por isso que se torna necessário questionar o porquê de o muito bem-vindo e recém-criado Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde não ter, ainda, uma coordenação designada para infâncias e adolescências.

A resposta para esse problema tem sido a mesma desde os primeiros anos da reforma psiquiátrica: “Infâncias e juventudes são temas transversais”. Sim, são. Mas agora precisamos de uma coordenação que sustente a transversalidade nesse debate, que sustente e coordene a promoção da saúde mental junto à rede de proteção social, da qual a escola faz parte. Uma coordenação pode fazer o enfrentamento da lógica individualizante e patologizante, pode apoiar e fomentar soluções locais. Uma coordenação disputa orçamento e sustenta a proposição do mais vigoroso tratamento de que precisamos: a construção de possibilidades de pertencimento. Uma coordenação enfrenta concepções de segurança que produzem pânico.

O que devemos às crianças e jovens, neste momento, é colocar toda a nossa força e todos os recursos que temos para sustentar a possibilidade de vivermos uns com os outros, em segurança. O que tem acontecido, porém, é bem diferente disso.

Tem se defendido um maior investimento dos governos e das escolas em policiamento e tecnologia de controle ao acesso à escola, reduzindo a ideia de segurança à de segurança policial. Num gesto articulado, propõe-se a contratação de psicólogos para ficarem dentro da escola e conversarem com os alunos. Mas é preciso perguntar: essa é uma aposta na produção de saúde mental ou um investimento em processos investigativos mais condizentes com uma estratégia policial do que de saúde?

Sem descartar o valor que a ronda policial escolar pode assumir neste momento, não podemos esquecer que segurança pública é algo muito maior e mais complexo do que segurança policial. Os dados que recolhemos das experiências americanas de armar e blindar as escolas nos contam isso: enquanto as escolas ganhavam dispositivos de segurança, a violência não diminuía. Segurança tem a ver com a produção de espaço comum e regulado, com a força comunitária. Intuitivamente, todos sabemos disso desde Chapeuzinho Vermelho: “Não vá pela estrada deserta, ande onde tem gente”. Há também as versões mais contemporâneas: “Quando sair da escola ou da faculdade de noite, vá até o metrô em grupo, não fique sozinha na praça”. Que sociedade é essa em que gente se tornou ameaça em vez de proteção, inimigo em vez de comunidade?

O que precisamos é reinventar a experiência de estar junto. Para isso, é bom lembrar que estamos todos no mesmo jogo: crianças, jovens, famílias, escola, poder público. Mas não jogamos nas mesmas posições e, por causa disso, precisamos nos organizar para que a bola não pare de rolar.

A escola, com suas crianças e seus jovens, precisa produzir educação contra a barbárie, precisa transformar o que está acontecendo em contexto de aprendizagem. Um currículo pensado e pactuado com cada faixa etária, que dê lugar ao convívio e distribua recursos de pertencimento, de conversa, de escuta. Ao promover o convívio, agimos contra experiências de humilhação e despertencimento. Ao promover o convívio, fortalecemos o espaço comum e agimos contra o discurso do ódio.

Enfrentar o discurso de ódio passa também, necessariamente, pela regulação e controle de conteúdo das plataformas digitais, pelo entendimento de que a internet e suas redes sociais são espaço público que deve ser regulado. As redes sociais não reguladas e não controladas são o lugar no qual os potenciais agressores fazem a sua comunidade e o seu pertencimento.

Precisamos ultrapassar a barreira das incontáveis reuniões em que discutimos e pactuamos estratégias de enfrentamento, mas que não conseguem fazer com que as políticas pensadas atravessem as portas dos gabinetes para, com orçamento suficiente, alcançar os territórios e efetivamente promover a transformação social que se diz desejar.

Nós vivemos os últimos anos lutando contra o ódio que destitui a possibilidade do viver em espaço comum e transforma o outro em inimigo ameaçador. Está mais do que na hora de abrirmos concorrência contra o discurso do ódio que coloca o outro como ameaça e que, com esse argumento, incita a violência. Nós – todos e cada um – precisamos resistir a sermos cooptados pela ideia de que é seguro desocupar uma escola. Não é. Para isso, é urgente escutar os povos originários, que lutam pela demarcação e integridade de suas terras comuns para que suas crianças e jovens cresçam na segurança do coletivo, que acolhe e protege.

*Ilana Katz. Psicanalista, doutora em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, pós-doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da USP; assessora do projeto Primeira Infância na Maré: Acesso a Direitos e Práticas de Cuidado” (Redes da Maré), no Rio de Janeiro; conselheira do Projeto Aldeias, no Médio Xingu, na Amazônia brasileira; integrante do conselho consultivo do Instituto Cáue — Redes de Inclusão; supervisora do Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos (NETT) e integrante da Rede de Pesquisa Saúde Mental Criança e Adolescente.


Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: James Young
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga

Vigília na pré-escola particular Good Shepherd Center em Blumenau, Santa Catarina, Sul do Brasil, onde um agressor de 25 anos, armado, invadiu a creche e matou quatro crianças em 5 de abril de 2023. Foto: Anderson Coelho/AFP

© Direitos reservados. Não reproduza o conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita de SUMAÚMA