No dia 11 de fevereiro, domingo de Carnaval, os Yanomami serão homenageados na Sapucaí pela Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, uma das mais tradicionais e respeitadas do Rio de Janeiro. Com o tema Hutukara, que faz referência ao céu ancestral que desabou sobre a terra nos primórdios, formando a floresta que (virtualmente) cobre o planeta hoje, o samba-enredo do Salgueiro é possivelmente um dos mais belos e tocantes hinos de Carnaval dos últimos tempos, e, para quem acompanhou de perto a escalada da crise humanitária na Terra Indígena Yanomami, é nada menos do que uma música para lavar a alma.
No refrão, os salgueirenses entoam “Ya temi xoa, aê, êa! Ya temi xoa, aê, êa!”, que pode ser traduzido como “Eu ainda estou vivo”, do Yanomae, uma das seis línguas da família Yanomami. A palavra temi, por sua vez, refere-se não apenas à condição de estar vivo, mas também ao estado de boa saúde, tanto física quanto mental e emocional. Assim, a força do estribilho reside no fato de ressaltar a imensa resistência do povo Yanomami e a sua capacidade de lutar contra o projeto genocida que lhe tem sido imposto há décadas pela sociedade não indígena. Uma guerra permanente, desde o contato, que ganhou contornos ainda mais dramáticos com a ascensão da extrema direita ao poder nos últimos anos.
Com um ano da declaração da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) na TI Yanomami, a expectativa, para 2024, era que esse refrão, finalmente, pudesse ser entoado também para celebrar a abertura de um novo ciclo de bem viver e prosperidade entre esse povo, com a efetiva proteção da floresta e a plena recuperação do quadro sanitário das famílias Yanomami e Ye’kwana (povo Indígena que habita a Venezuela e o território Yanomami no Brasil). Infelizmente, porém, esse ainda não é o caso.
Os últimos dados apresentados pelo governo sobre a situação de saúde na Terra Indígena Yanomami não deixam dúvidas: o governo fracassou em sua promessa de resgatar a dignidade no território Yanomami. O boletim de dezembro do Centro de Operações de Emergências (COE) apresenta, tristemente, números parelhos aos do governo passado. De 1º de janeiro até 30 de novembro de 2023 foram registrados 308 óbitos na TIY, a maior parte decorrente de problemas de saúde e doenças evitáveis, como diarreia, pneumonia e malária. Mas ainda faltam os números de dezembro de 2023, e o mais provável é que as estatísticas do último ano sob a presidência do extremista de direita Jair Bolsonaro e as do primeiro de Lula fiquem próximas. Em 2022 foram 343 mortes até o fim de dezembro.
Do total de 308 mortos entre 1º de janeiro e 30 de novembro de 2023, 52,5% eram crianças com menos de 5 anos. Houve mais de 25 mil casos de malária, uma média de 2 mil casos por mês. Claramente, as ações do governo Lula foram insuficientes para mudar essa trajetória, que vinha embalada pela administração criminosa da saúde indígena na gestão Bolsonaro.
Vista aérea de um garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, em fevereiro de 2023. Foto: Alan Chaves/AFP
Os indicadores de saúde do atual governo sugerem a manutenção de um quadro de desassistência grave com características semelhantes ao padrão adotado no último quadriênio, repetindo falhas básicas no modelo de assistência, como a ausência de visitas regulares de profissionais da saúde nas aldeias (potencializadas por questões de insegurança), problemas de abastecimento e de estrutura nas Unidades Básicas de Saúde Indígena e vigilância epidemiológica falha.
Como explicar tamanho insucesso? Obviamente, o governo sabia que seria cobrado por suas promessas em relação aos Yanomami. Logo, não acredito que tenha fracassado intencionalmente. Confio que o presidente Lula, depois do que viu em Roraima, esteja de fato sensibilizado com a penúria Yanomami. Mas, como sabemos, o inferno está cheio de boas intenções. Não basta querer mudar uma realidade sem antes se dispor, ao menos, a conhecê-la. Especialmente uma realidade tão complexa como a da Terra Indígena Yanomami.
O primeiro – e talvez o mais importante – erro do governo foi não ter criado uma instância de coordenação das ações emergenciais com real poder de convocação de diferentes pastas. Como se sabe, a raiz da crise Yanomami está fundada na inter-relação de dois grandes problemas: 1) o avanço do garimpo ilegal e 2) a degradação do sistema de atendimento à saude, através da destruição política e administrativa do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEIY), dois vetores que se retroalimentam e amplificam os impactos um do outro. Assim, o fluxo ideal das ações, tendo em vista a estabilização da situação sanitária e política das comunidades, seria: 1) operações para a neutralização do garimpo; 2) apoio às comunidades vulnerabilizadas com cestas básicas, ferramentas agrícolas e sementes; 3) realização de missões de atendimento à saúde; e 4) restabelecimento do serviço de atendimento regular de saúde. Apesar da razoabilidade de tal sequência, em nenhuma das regiões sensíveis da Terra Indígena Yanomami uma ação coordenada dessa maneira foi registrada. O que faz com que a maior parte delas ainda apresente alto grau de vulnerabilidade socioeconômica e sanitária, sem o devido apoio emergencial ou regularização no atendimento de saúde.
A Casa Civil, que poderia ter desempenhado esse papel, tanto não articulou as ações de maneira eficiente como nem sequer monitorou adequadamente o avanço das ações planejadas. A falta de cuidado desse ministério em relação aos Yanomami pode ser verificada no plano interministerial apresentado pelo governo. Um documento sem metas, indicadores, detalhamento de cronograma, orçamento e responsáveis. Assim, mesmo com as ações naufragando, a alta cúpula do governo nem ao menos tinha condições de avaliar o andamento das atividades e propor correções.
Outra consequência da ausência de uma coordenação eficiente foi o desperdício de recursos humanos e tempo de trabalho para produzir diagnósticos e estudos que pouco agregaram para solucionar os desafios reais da Terra Indígena Yanomami (logística, combate à malária, estratégias de proteção, desenvolvimento de infraestrutura etc.). Um exemplo fundamental é a ausência de um estudo logístico que ajude a planejar (com eficiência) e ajustar a dinâmica de envio de insumos e profissionais de saúde aos postos de atendimento. O grau de desorganização da frota de aeronaves a serviço da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) é espantoso para quem acompanha essa questão há mais de uma década.
A logística é um tema central na Terra Yanomami e deveria ter sido a espinha dorsal de um plano de reestruturação da presença do Estado nesse território. Entretanto, na direção oposta, ela foi objeto de um jogo de empurra entre a Sesai e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), sem que nenhuma das duas conseguisse apresentar uma solução coerente para a questão. Foram-se meses para conseguir um acordo para a reforma de cinco pistas de pouso, de um universo de mais de quarenta aeródromos que precisam de manutenção e ampliação urgente. Para ter uma ideia, algumas comunidades que antes eram atendidas por pequenas aeronaves hoje dependem exclusivamente de helicópteros, equipamentos quase quatro vezes mais caros, em termos de horas de voo.
As falhas na logística fizeram com que o governo ficasse na mão das Forças Armadas, que consumiram milhões de reais lançando cestas básicas sobre aldeias e clareiras sem critério algum. Sem contar ainda as toneladas de alimentos que foram abandonadas nos armazéns das cidades porque os militares gastaram o dinheiro disponível para o frete aéreo antes de atingir a meta do número de cestas básicas estipulada pela Funai.
Aliás, qualquer pessoa que estudasse um pouco sobre a história recente da Amazônia saberia que os militares nunca foram exatamente aliados dos Yanomami, e que depender da boa vontade deles para solucionar um problema que eles ajudaram a criar, por ação ou omissão, seria uma aposta, no mínimo, arriscada.
No primeiro semestre de 2023, um pequeno grupo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ora com apoio de policiais federais, ora com o apoio do grupo tático da Polícia Rodoviária Federal, combateu, de forma heroica, os diferentes núcleos de exploração ilegal espalhados pela floresta Yanomami. Assim, junto de outras ações que tinham por objetivo estrangular a logística do garimpo, o Ibama conseguiu expulsar boa parte dos invasores, reduzindo expressivamente os alertas de desmatamento até junho de 2023.
A partir de agosto, porém, o Ibama teve seu contingente deslocado para outras regiões, e o Exército assumiu um maior protagonismo nas ações de repressão e controle das calhas dos rios. Paulatinamente, as ações foram ficando menos regulares e menos eficazes, o que deu aos criminosos uma espécie de mensagem de que o fôlego do governo estava acabando.
Rapidamente, uma nova onda de invasão avançou sobre a Terra Indígena Yanomami. Por rio, pela terra e pelo ar, em pelo menos quinze regiões da TI os Yanomami denunciaram a resistência ou a volta de garimpeiros ao seu território. De outubro a dezembro de 2023, os Yanomami da região do Palimiu registraram o trânsito diário de garimpeiros passando pela barreira improvisada no rio Uraricoera. Enquanto os soldados dormiam em suas barracas na beira da pista de pouso do Palimiu, distantes do rio que deveriam vigiar, os garimpeiros transitavam religiosamente entre 4h30 e 6h30 da manhã, passando por debaixo do cabo de aço que supostamente controla o fluxo de entrada na região.
1, 2, 5 e 6: registros do retorno dos garimpeiros à região do Papiu, depois da redução das operações no segundo semestre de 2023. (3): bloqueio improvisado no Rio Uraricoera, em foto de novembro de 2023. Foto: Marcelo Moura. (4): garimpo ativo no Rio Uraricoera. Foto: Evilene Paixão/Hutukara
Parte desses barcos subiu para abastecer os acampamentos dos garimpeiros com ligações, já registradas, com o crime organizado, que, em nenhum momento da emergência Yanomami, deixou de atuar no território explorando ouro e cassiterita, além da logística regional e da segurança armada.
Pouco abaixo do Palimiu existe uma comunidade chamada Korekorema. As lideranças dessa comunidade denunciaram o total descontrole da malária no local e o óbito de crianças devido à ausência de visitas da equipe de saúde, que não realiza missões regulares há meses. A equipe de saúde, por sua vez, alega que não pode se locomover até a comunidade de barco, pois o rio se encontra sob o domínio das facções e eles temem pelas próprias vidas.
Enquanto isso, em Brasília, a Funai argumenta em juízo que não tem condições de construir a Base de Proteção no rio Uraricoera, mesmo com uma decisão judicial que desde 2018 obriga o Estado brasileiro a fazê-lo, porque não tem segurança para isso. (Ora, não se tem segurança porque não existe uma base, e não o contrário.)
À medida que o primeiro ano da emergência foi se desdobrando, uma espécie de paralisia foi tomando conta do Estado brasileiro, embora a crise continuasse como uma ferida aberta e fétida na frente de todos.
No apagar das luzes desse triste ano de 2023, Davi Kopenawa, xamã e principal líder do povo Yanomami, foi a Brasília participar de mais uma reunião do Conselhão do Lula. Sua esperança era poder chamar a atenção do presidente para essa paralisia e garantir que as promessas de janeiro de 2023 fossem repactuadas. Infelizmente Lula chegou tarde demais ao evento e Davi não pôde transmitir as suas preocupações olho no olho. Enquanto ia para o aeroporto, no seu retorno para Boa Vista, perguntei se ele estava cansado de tantas viagens com resultados tão frustrantes. Ele fez uma pausa antes de me responder e contestou: “Ma! Ya temi xoa. Enquanto existir Yanomami, eu vou seguir lutando”.
Estêvão Benfica Senra é geógrafo, doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Trabalha com o povo Yanomami há mais de dez anos. Atualmente é pesquisador do Instituto Socioambiental.
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Viviane Zandonadi (fluxo de edição e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum