A menina nasceu em 3 de junho de 1968, em Ramilândia, no Paraná, ainda no sexto mês de gestação. A família e a parteira pensaram que se tratava de um aborto. Ainda envolvido pela membrana da bolsa amniótica, o bebê foi cuidado pela parteira, que o colocou em uma caixa de sapato forrada com algodão para poder aquecê-lo. Como era prematuro, achavam que não ia vingar. Nos dias seguintes, a menina foi abrindo os olhos e ganhando força para sobreviver. Essa foi a primeira batalha que Osvalinda Maria Marcelino Alves Pereira venceu na vida.
Conheci-a pessoalmente em fevereiro de 2023. Eu sabia que Osvalinda havia se tornado a primeira brasileira a receber, três anos antes, o Prêmio Edelstam, que bianualmente reconhece o trabalho de defensores de direitos humanos e do meio ambiente. Ela era presidente da Associação de Mulheres do Areia II, o assentamento em que vivia em Trairão, no Pará, e uma das protagonistas do filme O Tempo que Resta, da diretora Thaís Borges, vencedor do júri popular do Festival de Cinema de Brasília de 2019. O que eu não imaginava era que, em um espaço de tempo tão curto, estaria escrevendo sobre a luta de Osvalinda para manter pulsando seu adoecido coração.
Foi aos 15 anos, depois de um acidente doméstico, que Osvalinda descobriu que tinha “o coração grande”. A mãe da menina, Rita Maria de Jesus, mandou que ela limpasse o poço da casa onde morava. Ela obedeceu – mas se desequilibrou, caiu dentro do poço e foi parar no hospital. Lá, os médicos descobriram o coração aumentado. O que fisicamente era um problema, acabou servindo de metáfora para explicar como ela acolheu tantas pessoas em seu caminho.
A luta de Osvalinda ficou reconhecida internacionalmente a partir de sua atuação no sudoeste do Pará – mas não foi lá que a história dela na defesa pelo direito à terra começou. Filha de pequenos agricultores do Paraná, ela vem de uma família de 23 irmãos. Ainda criança aprendeu com a mãe e o pai a plantar, colher e cuidar de animais. Em busca de terra melhor para cultivar, mudou-se com o marido, Daniel Pereira, para o estado de Mato Grosso, primeiro para Cuiabá e depois para a vila de Monte Alto, no município de Tapurah, onde foi assentada pela reforma agrária. Pouco tempo depois foi expulsa da terra, pressionada pelo avanço da soja e da grilagem. No final de 2001, ela e Daniel subiram em uma motocicleta e, depois de cinco dias de viagem, chegaram a Trairão.
O município paraense fica em uma vasta área conhecida como Terra do Meio, um território com praticamente duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro. Osvalinda instalou-se no assentamento Areia II. As estradas até lá eram também passagem para caminhões abarrotados de toras de madeira arrancadas livremente de três unidades de conservação do entorno: a Floresta Nacional do Trairão, a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio e o Parque Nacional do Jamanxim.
Ali Osvalinda fundou a Associação das Mulheres do Areia II, porque para ela não bastava a luta, era preciso empoderar. Criou projetos comunitários de hortas, de criação de peixes, galinhas, e artesanato.
Em 2012, ela começou a denunciar a extração ilegal de madeira e a incomodar os poderosos da região. A contragosto das autoridades policiais, registrava boletins de ocorrência sobre as ameaças que recebia. Citando nomes, redigia documentos nos quais narrava com detalhes os crimes dos grileiros. Protocolava-os no Ministério Público Federal, e ia até Brasília, se fosse necessário.
Em uma dessas idas à capital federal teve o desprazer de ouvir de um delegado da Polícia Federal que ameaça de morte não é crime. Quando me contou isso, ouvi a voz dela se exaltar um pouco, mas bem pouco. Na ocasião, perguntou ao então delegado se ela precisava morrer para que eles tomassem uma atitude contra os pistoleiros e grileiros que a ameaçavam de morte. Ficou sem resposta.
Quando a conheci, ela já estava no programa de proteção aos defensores de direitos humanos por causa das seguidas ameaças. Planejamos tudo com muito cuidado para que eu pudesse entrevistá-la sem pôr sua vida em risco. A capacidade de Osvalinda de se adaptar a situações difíceis ou estressantes parecia ser mais uma de suas tantas qualidades, e ela ainda fazia isso com leveza, doçura e gentileza.
Entre as histórias que ela me contou, gosto de uma que chamávamos de “a história do cupu”.
Certa tarde em Trairão, em meio a uma chuva, viu cerca de 12 homens ao redor de sua casa. Cumprimentou todos e os convidou a entrar para que não se molhassem. “Vamo entrando que vou fazer um suco pra todos nós”, disse ela.
Com o suco de cupuaçu pronto, percebeu que havia pistoleiros armados posicionados próximo às janelas e à entrada da casa dela. Mesmo assim serviu um “suco de cupu dos melhores”. Os homens ofereceram dinheiro a Osvalinda para que ela parasse de fazer o que fazia. Ela não aceitou. Então eles disseram que quem fazia o que Osvalinda fazia corria o risco de morrer. Ela perguntou se eles a estavam ameaçando. Os homens disseram ironicamente que não e depois saíram.
O coração ‘grande’, que Osvalinda descobriu ainda menina, se tornou a metáfora de toda uma vida de luta e de afetos. Foto: Thais Borges
Entre tantas ameaças, uma das mais brutais, talvez a mais noticiada, aconteceu em 2018. Osvalinda acordou e foi até a lavoura colher maracujás com o marido, Daniel. Lá, encontrou dois buracos no chão. Duas covas abertas. Duas cruzes fincadas. Em cada uma delas, nomes escritos: o dela e o dele. Quando se lembrava disso, ficava nitidamente aflita e, como que para acalentar a si mesma, botava a mão no peito.
Em meio à luta e aos problemas de saúde, foi operada três vezes para trocar a válvula mitral. Tirou um rim, a vesícula, um pedaço do pâncreas, do fígado, fez três cesarianas, era hipertensa. Ainda assim, lutava como se nenhuma dessas limitações físicas pudesse impedi-la de denunciar o que mais lhe fazia o coração doer: ver a floresta ser saqueada impunemente por grileiros.
Desde que conheci Osvalinda nos falávamos com alguma frequência. Em maio de 2023, ela mandou uma mensagem muito feliz dizendo que iria fazer nova cirurgia, pela qual tanto havia lutado, recorrendo até à Justiça. Daniel não estava em Belém, e uma das filhas de Osvalinda, Fabiana, veio para acompanhá-la.
Dias depois, a cirurgia foi adiada, por falta de sangue. Outros ativistas, admiradores de Osvalinda, jornalistas, inclusive eu, compartilhamos em nossas redes sociais o pedido por doações de sangue para ela. Em 25 de maio veio a tão sonhada cirurgia.
Osvalinda permaneceu dias internada. Mandei mensagens, que ficaram sem retorno. Um dia ela respondeu por texto dizendo que estava bem, mas não podia falar devido a uma traqueostomia.
Seguimos trocando mensagens, até que ela me contou que retornaria para Trairão. Além da doença, do saque da floresta, das injustiças, algo que a deixava muito triste era viver longe de casa.
Quando questionei se não era perigoso voltar, ela respondeu que estava morrendo ficando na cidade. “Não aguento mais”, dizia. Sei que algumas pessoas têm dificuldade de entender como alguém ameaçado de morte volta para o local onde pode ser assassinado. Apesar de tudo o que foi obrigada a passar, Osvalinda amava a vida e tinha orgulho de tudo o que construiu por sua comunidade em Trairão.
Foi ela que, depois de concluir um curso técnico sobre sistemas agroflorestais, ensinou às pessoas da comunidade o que elas poderiam fazer. Com uma lousa, explicava pacientemente que era sim, possível, ter produção o ano inteiro. Que das frutas se podia tirar a polpa para vender, que das sementes se fazia artesanato. Sabia que a floresta alimenta mais e gera mais renda para a população em pé do que no chão.
Fiquei de visitá-la no hospital, mas, consumida pelas demandas cotidianas, adiei. Disse a mim mesma que a veria no aeroporto, antes que ela voltasse a Trairão, mas novamente não consegui. Agora, não poderemos mais nos encontrar. A morte é aquele momento que nos confronta com a impossibilidade, lembrando dolorosamente que o que poderia ser feito ficou no passado. Osvalinda era admirável de tantas formas que somente um texto não é capaz de dar conta de sua grandeza.
No fim do ano passado, a saúde de Osvalinda piorou. Por ter contraído covid-19 quatro vezes, precisou tirar um pedaço do pulmão esquerdo e teve pneumonia. Foi internada no Hospital de Itaituba no final de 2023.
Em 3 de janeiro deste ano chegou a Belém já em coma. Desenganada pelos médicos, acordou em fevereiro como se nada tivesse acontecido, exceto pelo fato de que precisava receber oxigênio praticamente em tempo integral. O programa de proteção aos defensores de direitos humanos lhe deu todo apoio em seus últimos dias de vida.
Osvalinda Pereira morreu no dia 12 de abril, aos 55 anos. Deixou duas filhas e 11 netos. Seu legado se mantém vivo nas agricultoras de Trairão e Mato Grosso, que seguem na árdua luta de denunciar os desmandos de grileiros, sojeiros e madeireiros.
Osvalinda e Daniel sempre buscaram uma terra para viver – e sempre encontraram grileiros e madeireiros barrando seu caminho. Foto: Walter Guimarães