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Plantações de soja invadem até bairros de classe alta na área urbana de Sinop, uma das principais cidades do agronegócio brasileiro

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O palco está vazio. As arquibancadas que se estendem em uma das principais avenidas da cidade, também. São 4 da tarde de sábado. O termômetro marca 38 graus Celsius, a fumaça das queimadas domina o horizonte e o ar seco machuca ao respirar. Não fossem um homem com camiseta verde e amarela e algumas vitrines decoradas com as cores da bandeira, seria difícil dizer que estamos em Sinop, uma das capitais do agronegócio, uma das cidades mais importantes para a extrema direita de Mato Grosso, em uma data emblemática: 7 de setembro, o Dia da Independência do Brasil. É quando o militarismo faz sua demonstração nas ruas, mas o desfile, marcado para as 16h30, acabou cancelado pelas “altas temperaturas, baixa umidade do ar e severa estiagem”, afirmou a prefeitura. Foi cancelado pelo clima. Um clima cada vez mais descompensado pela destruição da floresta.

Sinop não parece, mas é Amazônia. Fundada pelos militares em 1974, um dos anos mais duros da ditadura empresarial-militar brasileira, é resultado da política de “ocupação” do regime que com o slogan “Integrar para não entregar” forjou municípios com inimigos imaginários no meio da floresta. Seu nome é simbólico: composto pelas letras iniciais da Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná (hoje Grupo Sinop), a empresa colonizadora que comprou uma gleba chamada Celeste, abriu as primeiras ruas e iniciou as primeiras construções. E sua consolidação também: parte do terreno que formou a cidade foi grilada, adquirida irregularmente como muitas terras na Amazônia, conforme laudo da Polícia Federal anexado a um processo judicial.

Há apenas meio século, tudo ali era floresta. Agora, 156 mil hectares de plantações invadem a cidade de 216 mil habitantes, sem diferenciar área rural de urbana, bairros ricos de pobres. O solo é marcado pelas raízes ressequidas e retorcidas dos últimos pés de milho da estação, grãos plantados na entressafra da soja, leguminosa que entre outubro e abril leva ao ar um cheiro de agrotóxico, contam os moradores. O horizonte na área rural é dominado por imponentes silos. Em 2022,  a cidade teve o maior Produto Interno Bruto do Agronegócio de Mato Grosso. E seu PIB per capita (por pessoa) foi quase igual ao de São Paulo em 2021. 

Na área rural de Sinop, barreiras de silos compõem a paisagem, assim como as Corujas-buraqueiras que sempre aparecem ao entardecer – mesmo com tanta floresta desmatada

Sinop é o plano da ditadura empresarial-militar que vingou. E se tornou um símbolo de como opera a extrema direita agrária do país. Daquela região saiu boa parte dos que atentaram contra a democracia em 8 de janeiro de 2023, segundo levantamento do UOL, na tentativa de derrubar o governo recém-eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para manter Jair Bolsonaro (PL) no poder. E na primeira eleição municipal depois da tentativa de golpe sua elite política duela para ver quem vai capitalizar o extremismo.

Se no pleito anterior, em 2020, houve seis candidatos à prefeitura de todos os espectros políticos, inclusive um do PT, neste ano disputam apenas dois. O prefeito Roberto Dorner (PL), que concorre à reeleição, e Mirtes Grotta da Transterra (Novo). Ambos são empresários endinheirados: ele, dono de uma rede de televisão, a afiliada do SBT no município;  ela, de família dona de uma das mais importantes construtoras da cidade, a Transterra.

Além de terem disputado o apoio de Bolsonaro, os dois participaram ou têm familiares ligados ao movimento que questionou os resultados eleitorais que deram a Lula a Presidência do país em 2022. Dorner esteve presente nas manifestações da extrema direita logo após o pleito, no final de outubro, que fecharam a BR-163 na altura de Sinop. Já o marido de Mirtes, Rogério Grotta, e a sua filha, Luane, foram denunciados pela Procuradoria-Geral da República por participação nos atos de 8 de janeiro em Brasília.

A candidata apoiada por Bolsonaro, Mirtes da Transterra (Novo), tem familiares envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro

E o apoio aos atos golpistas na elite política não para por aí. O presidente do partido de Mirtes em Sinop, Antonio Galvan, ex-presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja), é o “general” do chamado Movimento Brasil Verde e Amarelo, apontado como um dos principais organizadores dos atos golpistas em um relatório da Agência Brasileira de Inteligência obtido pelo jornal O Globo. Recentemente, o sojicultor foi indiciado pela Polícia Federal pelo ato de 7 de setembro de 2021, quando manifestantes estiveram em Brasília pedindo o impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal. Procurado por meio de sua advogada, Galvan não se manifestou.

Rosana Martinelli, ex-prefeita de Sinop pelo PL, que hoje ocupa uma vaga temporária no Senado, também é investigada por suspeita de participação no 8 de janeiro e está, inclusive, com seu passaporte retido – ela negou a SUMAÚMA que tenha participado, ainda que assuma que esteve em manifestações que aconteceram em Sinop.

Nesse início de setembro, ao contrário da fumaça, a campanha ainda não se faz visível nas ruas da cidade, a não ser por poucos adesivos nos carros e caminhonetes. “Assim como o Rio Teles Pires aparenta ser calmo, mas em suas camadas mais profundas tem águas turbulentas, temos em Sinop um cenário parecido”, afirma João Carlos Silva, um jovem de 32 anos formado em agroecologia que acompanha de perto a disputa fundiária e política da cidade. Ele fala pausadamente. Tem cabelos cacheados longos e barba clara bem aparada, com alguns fios grisalhos. João se refere ao rio de águas marrom-esverdeadas que passa a 18 quilômetros do centro da cidade por entre um raro corredor de floresta preservada. Ele tenta resumir a dança das cadeiras que foi intensamente noticiada pelos jornais locais em março e abril deste ano. “Todo mundo querendo surfar na política nacional e se tornar o apadrinhado de Bolsonaro.”

O prefeito Dorner era do Republicanos, partido pelo qual se elegeu quatro anos atrás, porém mudou de sigla quando foi convidado pelo presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, a se filiar. “Mas esqueceram de combinar com os russos, que era o PL municipal”, comenta João. “E os russos estavam conversando muito bem com o Jair [Bolsonaro].” Além de Rosana Martinelli, a ex-prefeita, estava no PL de Sinop Mirtes – ambas opositoras declaradas de Dorner. Com a chegada de Dorner ao PL, Mirtes migrou para o Novo. E conseguiu o apoio formal de Bolsonaro em um ato que lotou uma das praças da cidade, em abril deste ano, e que deixou o prefeito em uma situação “humilhante”, segundo matéria do Diário de Cuiabá. Ele tentou se aproximar do capitão reformado mais de uma vez durante sua passagem pela cidade – mas foi solenemente ignorado pelo ex-presidente. Mirtes se aproveitou e publicizou o encontro. Acabou condenada a tirar os posts de suas redes, pois o Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso considerou campanha antecipada.

No final das contas, o candidato do partido de Bolsonaro não conseguiu seu apoio. Mas, mesmo sem esse importante cabo eleitoral, Roberto Dorner tem se mostrado favorito na disputa.

Particularidades da cidade que, fora da política, são muitas. Sinop tem, por exemplo, plantações na zona urbana, tanto nas áreas ricas como na periferia. Caminhonetes de 6 metros de comprimento com o retrovisor alongado no estilo longhorn (chifre longo), um quiosque no shopping que vende facas para churrasco a 3.999 reais e quadrilhas criminosas que roubam agrotóxicos. Apesar de o município ter desmatado 205 mil hectares de floresta entre 1987 e 2023 (o equivalente a mais da metade da sua área total, ou a quase duas cidades do Rio de Janeiro), segundo o Mapbiomas, ainda é comum ver Araras-vermelhas e Canindés por suas ruas. No final da tarde, especialmente na área rural, são numerosas as Corujas-buraqueiras.

Sinop fica, segundo o biólogo e primatólogo Gustavo Canale, no maior ecótono tropical do mundo (área de transição entre dois biomas, no caso, Amazônia e Cerrado). “E essa singularidade faz com que a região tenha a maior diversidade de macacos do planeta”, diz o pesquisador de cabelos grisalhos da Universidade Federal de Mato Grosso. “Sendo que sete espécies, incluindo o Zogue-zogue-de-barba-vermelha, que só tem nesta região, estão ameaçadas por conta do avanço do agronegócio sobre áreas tropicais.”

Se nos primórdios de sua existência, ainda na época da ditadura, os padres abençoavam cada novo empreendimento que era construído, a cidade ainda hoje mantém a cultura de que bonito é o “progresso” – e o “progresso” só seria possível sem floresta. Na década de 1990, eram as madeireiras que comandavam a economia da região. Quando a madeira acabou, veio a soja, a partir dos anos 2000. Apesar do desapreço pela floresta, no altar da Catedral Sagrado Coração de Jesus há um mural com Cristo por entre frondosas Castanheiras e uma mata preservada. Suas ruas têm nomes de árvores: Avenida das Sibipirunas, das Acácias e Rua das Sapucaias. Há lojas chiques, vias planejadas, grandes rotatórias, poucos semáforos e canteiros centrais com paisagismo elaborado. Mas muitas de suas praças são áridas, cheias de Palmeiras que mal fazem sombras. Além do Parque Florestal e do Jardim Botânico, a área mais sombreada da cidade é o cemitério.

Sinop é o plano da ditadura empresarial-militar que ‘vingou’ com base na destruição da floresta – antes eram as madeireiras que comandavam a economia; depois veio a soja

Sinop também é reduto eleitoral de ruralistas de projeção nacional. Nilson Leitão, do PSDB de Mato Grosso, é um deles – foi prefeito da cidade entre 2001 e 2008, elegeu-se deputado federal em 2010 e hoje é presidente do Instituto Pensar Agro, organização financiada por grandes empresas do agronegócio que alimenta a Frente Parlamentar Agropecuária no Legislativo Brasileiro. Leitão tenta ajudar Mirtes a deslanchar sua campanha.

“É o candidato do Valdemar Costa Neto contra a candidata do Bolsonaro. Parece tranquilo, parece uniforme, mas temos um significativo número de trabalhadores que não votaram em Bolsonaro”, lembra João. Ele se refere aos 23% da cidade que, no segundo turno do ano passado, votaram em Lula – e que, neste ano, não têm opção para a prefeitura.

A oposição acuada

Enquanto a vereadora Graciele Marques dos Santos (PT) fala na tribuna da Câmara Municipal, seus colegas de trabalho conversam, olham o celular e mandam mensagens. “Esta tem sido uma semana muito triste para nós porque, pra todo lado que olhamos, estamos tomados pela fumaça, pela fuligem, em decorrência das queimadas.” Ela, que é a única vereadora mulher e de esquerda da cidade, tem a fala firme, mas há um timbre de tristeza na voz: “Um cenário de filme de terror. Tenho me perguntado até onde vai a ganância humana. Até o Parque Florestal pegou fogo, morreram animais ali, debaixo dos nossos olhos, no centro da cidade. Isso é lamentável. Estamos cavando nossa própria cova”.

Única mulher e representante da esquerda na Câmara Municipal, a vereadora Graciele Marques (PT) é ignorada pelos colegas ao denunciar queimadas e pedir medidas de contenção por causa dos incêndios

Graciele paga um preço alto por fazer parte de duas “minorias” na capital do agro. “Toda vez que eu falo alguma coisa sobre a questão climática, a minha fala é distorcida. Da última vez que falei do Parque Florestal, foi dito que eu falei mal do Corpo de Bombeiros. A minha fala aqui é gravada, eu nem mencionei o Corpo de Bombeiros naquela ocasião.” Ela termina seus dez minutos de discurso exigindo medidas da prefeitura para contenção das queimadas. Os colegas continuam conversando e mandando mensagens pelo celular.

Falas distorcidas são o que “de mais leve” acontece com a vereadora desde que assumiu seu primeiro mandato, há quatro anos. “Quando eu tomei posse, no primeiro mês, os ataques começaram, aí foi só ladeira abaixo… até hoje.” Ela se lembra de quando usaram uma motosserra para derrubar um outdoor que movimentos sociais haviam colocado na cidade criticando o governo Bolsonaro, em maio de 2021. De quando foi chamada de “vagabunda” e “desgraçada” na rua. E de quando foi ameaçada nas redes sociais. Lembra-se também de outubro de 2022, quando a BR-163 estava tomada por manifestantes contrários à vitória de Lula e soltaram a fake news de que ela tinha criado um projeto para retirar aquelas pessoas de onde estavam. “Fiquei uma semana sem dormir.”

Com os ataques e a perseguição, passou a ter cuidados inéditos: começou a evitar andar sozinha na rua, a mudar de rota, a não levar o carro para qualquer oficina mecânica. “Você não tem mais privacidade, não tem vida pessoal… Não é só ser de esquerda, é a questão de fazer a crítica ao agronegócio, é a questão de defender a pauta ambiental, de defender a população LGBTQIA+. Eles têm um ódio disso que é inexplicável”, diz. “Muita gente vê o que aconteceu comigo, as ameaças e intimidações, e desanima a sair candidato”, comenta Graciele, acrescentando que o PT até começou a articular candidatura para a prefeitura, mas desistiu por causa das poucas chances de vitória. Dos 208 postulantes a vereador neste ano, apenas 39 são de partidos de esquerda (11 da coligação petista, 11 do PDT e 17 do PSB).

Na avaliação da cientista política Camila Rocha, que estudou a extrema direita e fez pesquisa de campo entre os sojicultores de Mato Grosso, o agronegócio sempre foi muito próximo de partidos de direita. Mas a conexão com a extrema direita – representada por Bolsonaro – acontece, inicialmente, pela ligação histórica que existe entre a ideologia militar brasileira e a atividade agrícola. “O imaginário da ditadura militar de ocupação da Amazônia e de ocupar terras consideradas ‘vazias’, ignorando a presença de Indígenas e Quilombolas, passa pela concepção de desenvolvimento ligado sobretudo à agropecuária, entre outras atividades econômicas. E essa ideia da ditadura reaparece de maneira forte no governo Bolsonaro [que é capitão do Exército]”, afirma a pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e autora do livro Menos Marx, Mais Mises (Todavia, 2021)

Em meados de setembro, o céu de Sinop e de parte de Mato Grosso estava dominado pela fumaça das queimadas

Em segundo lugar, continua Camila, durante o governo Bolsonaro, há uma intenção de ultrapassar limites constitucionais – por meio, por exemplo, do marco temporal, a tese de que só têm direito à terra os Indígenas que as ocupavam na época da promulgação da Constituição, ou do esvaziamento da fiscalização ambiental – que terminam por favorecer o agronegócio ao avançar a fronteira agrícola e dar acesso a terras até então inacessíveis. “Há ainda essa sensação de parte do agro se sentir livre para fazer coisas ilegais ou criminosas e saber que eles não serão punidos por isso”, completa.

É importante considerar que o agronegócio brasileiro é heterogêneo. Ele é composto por diversos setores e entidades representativas, que vão dos chamados “negacionistas” (os mais extremistas à direita) a grupos mais moderados (defensores da redução do desmatamento e de políticas de incentivo à economia de baixo carbono), conforme explica o pesquisador Caio Pompeia no artigo “As correntes do agronegócio durante o governo Bolsonaro: Divergências e acordos em questões socioambientais”. No Centro-Oeste brasileiro, há sojicultores do grupo mais extremista, reunidos especialmente em torno da Aprosoja-MT, comandada até 2020 por Galvan, o presidente do Novo em Sinop.

A aproximação da organização com Bolsonaro começou a acontecer em 2016, segundo Caio, e se intensificou em 2017, depois que o Supremo Tribunal Federal considerou constitucional que a União cobrasse dos empregadores rurais as dívidas referentes ao Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural) – um tributo que custeia parte da aposentadoria de trabalhadores do campo.

“Foi em conexão com os grupos que não aceitavam o pagamento das dívidas do Funrural que a candidatura do então deputado federal Jair Bolsonaro à Presidência ganhou impulso nos meios rurais”, escreve Caio em artigo publicado na revista piauí. E os principais defensores da extinção das dívidas eram Nabhan Garcia, da União Democrática Ruralista, e o Galvan, que viria a ser presidente nacional da Aprosoja anos depois. Ambos se tornaram base fundamental de sustentação do candidato Bolsonaro e, posteriormente, tiveram ingerência no governo. Nabhan se tornou secretário de Assuntos Fundiários e Galvan, líder do Movimento Brasil Verde Amarelo, que financiou e organizou diversas manifestações antidemocráticas em apoio ao ex-presidente extremista de direita. Já a Aprosoja do Mato Grosso iniciou um movimento que culminaria na criação do Instituto Pensar Agro, um escritório de produção legislativa, estratégia política e de comunicação que abastece a bancada ruralista no Congresso.

A gestão Bolsonaro, então, cumpriu o que prometeu: “Passou a boiada antiambiental” em medidas que beneficiam o agronegócio, especialmente na questão fundiária. Nabhan suspendeu a reforma agrária, Bolsonaro proibiu a demarcação de Terras Indígenas. Na avaliação do geógrafo e pesquisador Warllen Torres Nannini, o benefício a setores do agro é imediato. “O aumento criminoso da degradação dos recursos naturais e o avanço do agronegócio sobre os biomas brasileiros são algumas sequelas da política antiambiental posta em prática pela agenda política de Bolsonaro, cujo pacote de flexibilizações e decretos incentivou e, ao mesmo tempo, premiou diversos infratores que promoveram o aumento sistemático do desmatamento e da grilagem de terras no país”, escreve.

Nabhan Garcia (de óculos) e o sojicultor Antonio Galvan (à dir.) fazem parte do grupo mais extremista de ruralistas que apoiam o ex-presidente Bolsonaro. Fotos: Alan Santos/PR e reprodução/Internet

‘Ai Se Eu Te Pego’

É noite de sexta-feira, 13 de setembro, véspera do aniversário de 50 anos de Sinop. A campanha de Dorner organizou um ato – em um centro de treinamento – com a presença do governador do estado, Mauro Mendes (União), e de outros políticos mato-grossenses aliados. É o primeiro grande ato de campanha. O campo de futebol está lotado. Bandeiras brancas e azuis se agitam. O som repete o bordão “Vote 22”. A 4 quilômetros dali, no Estádio Municipal, o sertanejo Michel Teló, famoso internacionalmente pela música Ai Se Eu Te Pego, entrará no palco em algumas horas para celebrar o meio século de existência da cidade.

Dorner (PL) investiu 2 milhões de reais nos festejos, que incluíram shows sertanejos e religiosos, torneio de pesca e romaria no Rio Teles Pires. Mirtes, a adversária, tentou suspender na Justiça as comemorações, questionando a legalidade de festas gratuitas feitas com verbas públicas durante as eleições. A Justiça Eleitoral, no entanto, rejeitou o pedido.

Entre os presentes, há todo tipo de gente – inclusive uma eleitora de Lula que acha “uma palhaçada os sinopenses ficarem exaltando os atos golpistas”, como disse a SUMAÚMA Luciene da Costa, de 34 anos. Ela estava com as amigas Leide Cavalcanti e Maria Saul, uma delas apoiadora de Bolsonaro.

No palco do ato político se exaltam o crescimento econômico da cidade, a obra de duplicação da BR-163 no trecho entre Sinop e Sorriso, os mais de 350 milhões de reais investidos pelo governo do estado no município. “Em time que se ganha não se mexe, se acelera. Que Deus abençoe essa campanha”, diz o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, ao elogiar o mandato de Dorner. O prefeito-candidato sobe ao palco na sequência e fala por breves dez minutos.

O governador Mauro Mendes (União) faz campanha pela reeleição do atual prefeito. Roberto Dorner, quemigrou para o partido de Bolsonaro (PL), mas não conseguiu o apoio do ex-presidente

“Eu queria falar de obras, mas estamos todos cansados… Todo mundo sabe quantas obras já fizemos em Sinop, temos 14 pontos de asfalto na cidade.” Ele usa um chapéu de palha, marca da sua vestimenta, que faz com que opositores o chamem de “Veio do chapéu”.

A fumaça que todos respiram e a seca cada vez mais longeva – que prejudica o agro e vem provocando reduções na safra de soja – são solenemente ignoradas nos discursos. Mas, no plano de governo, Dorner dedica uma página ao tema “meio ambiente” em que defende uma cidade “mais verde, sustentável e preparada para o futuro, onde o meio ambiente é uma prioridade e um patrimônio a ser protegido”. A palavra “desmatamento”, entretanto, não aparece.

A palavra também não faz parte do plano de governo de Mirtes. Na noite anterior, ela havia realizado uma caminhada em um bairro da periferia da cidade, o Jardim América. Entre duas e três centenas de apoiadores esperavam a chegada da candidata. Sua cor de campanha também é o azul, a mesma do adversário. Mirtes, assim como Dorner, não respondeu aos pedidos de entrevista de SUMAÚMA.

Se nas largas avenidas de Sinop a campanha não se faz tão presente, o mesmo não se pode dizer de quem segue o canal de WhatsApp de Mirtes – 1.469 mensagens em cinco dias – ou o Instagram dos dois candidatos. Por entre fotos, vídeos e registros diversos, um post chama especial atenção: uma foto bem produzida de Mirtes em frente a um clube de tiro da cidade. Poucos dias depois, Dorner não deixou barato. Postou um vídeo dentro do Patriotas, um dos cinco clubes de tiro de Sinop cuja fachada é de vidro espelhado.

A incompatibilidade de modelos

Marciano Silva respira com dificuldade. Ele fala devagar e faz pausas para recuperar o fôlego. Coloca a mão no peito, parece preocupado. Não sabe se o peso nos pulmões tem relação direta com a fumaça perene no horizonte ou se poderia ser algo mais grave. “Tenho consulta médica amanhã, vamos ver o que dizem. Eu tenho para mim que é nervo”, conta o agricultor de 46 anos. Ele pede para que a entrevista se limite a falar da produção, da agroecologia e de coisas boas, porque quando ele fala dos problemas é ameaçado.

Marciano Silva e colegas do assentamento 12 de Outubro são adeptos da agroecologia, modelo de produção que se opõe à monocultura e ao uso de agrotóxicos

Marciano é um dos primeiros moradores do Projeto de Desenvolvimento Sustentável 12 de Outubro, um assentamento da reforma agrária regularizado pelo Incra em 2012 após um grupo de trabalhadores ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) terem ocupado, em 2006, uma fazenda improdutiva no município de Cláudia, nos arredores de Sinop.

Ele, como alguns de seus vizinhos, se dedica à produção agroecológica. Planta tomate, alface, rúcula, salsinha e uma variedade de leguminosas e frutas dentro da lógica sustentável, sem agrotóxicos e usando tudo o que o próprio território oferece. A produção é vendida em Sinop, aos sábados, dentro do Projeto Cantasol, que os ajuda a vender os produtos na cidade; eles também contam com o apoio do Projeto Gaia, que há cinco anos cuida da formação de familiares para se aprimorarem na técnica agroecológica.

“Poucos conseguem resistir”, conta Marciano sobre a produção agroecológica e também sobre a luta que é conseguir estruturar a vida em um assentamento sem apoio do poder público. Ele tem hoje uma casa de alvenaria, mas tudo que conquistou foi com seu próprio esforço e com o da mulher, Teca, já que nunca conseguiram crédito para plantar ou para construir. Marciano compara os dois modelos, o agronegócio e a agroecologia. “A destruição do meio ambiente faz parte da natureza do agronegócio. O latifúndio é muito egoísta. O meio ambiente é apenas um instrumento, um recurso. Nós [seres humanos] somos parte da Natureza e a parte menos importante da Natureza. A Natureza, com nós, ela é todo dia machucada, ferida e sujeita à morte. Sem nós, ela vive maravilhosamente bem.”

Ele mostra a sua horta com orgulho. “Tiro 2,1 mil reais por mês com ela.” No seu terreno, todas as árvores, incluindo uma jovem e parruda Castanheira, foram plantadas por ele. “Quando chegamos aqui, a fazenda só tinha 45% de área de reserva [preservada]”, lembra. Os primeiros moradores se encarregaram de reflorestar algumas áreas e de cuidar da floresta nativa – que foi designada como área coletiva.

Mas hoje o assentamento está ainda mais desmatado. Na entrada, perto da BR-163, há uma grande área com imponentes Castanheiras – mas praticamente sem floresta em volta. “Era tudo mato”, conta Marciano. Já perto da vila, onde estão a escola, o posto de saúde e uma loja de material de construção, há um terreno recém-queimado. A pouca área de floresta que se vê fica ao fundo, perto do rio. Uma placa ao lado da escola anuncia a venda de terrenos. A poucos metros dali, uma porteira fechada traz os dizeres “Chácaras Lagoa Dourada – acesso restrito”.

A grilagem de terras se faz ainda mais presente no assentamento desde que a Usina Hidrelétrica de Sinop alagou uma parte da floresta, bloqueou o Rio Teles Pires e criou um reservatório ao lado do assentamento, em 2019. Perto do “alagado”, como os moradores chamam o reservatório, há estradas abertas, casas em construção e áreas recém-desmatadas. A atividade é ilegal, já que se trata de uma área do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concedida a agricultores. Movimentos sociais de Sinop fizeram denúncias aos órgãos competentes – sem resultados efetivos até agora. A Sinop Energia, responsável pela hidrelétrica, diz que a área é de responsabilidade do Incra, mas que denúncias “feitas pela empresa foram desdobradas pelas autoridades em ações como fiscalização pela Polícia Militar Ambiental e instauração de inquérito pela Polícia Federal”. Procurado, o Incra disse que realizou vistoria no local em junho de 2023 com o objetivo de “contribuir com  os encaminhamentos para a retirada de invasores da área de reserva legal”, em processo que se encontra na fase administrativa.

Além do desmatamento e do impacto da monocultura, a cidade tem uma usina hidrelétrica que sequestrou águas do rio e deixou cemitérios de árvores

O reservatório obrigou algumas das cem famílias originalmente assentadas a saírem do 12 de Outubro e agora força as que ficaram a lidar com grileiros. Houve também assentados que venderam seus terrenos para produtores de gado e soja. O que traz mais um problema para os camponeses: o agrotóxico.

Calixto Crispim e sua mulher, Alessandra, viveram por alguns anos ao lado de uma plantação de soja – dentro do assentamento. Quando ela estava grávida, foram obrigados a passar uns dias em outra casa. “Esse cara passava veneno cinco vezes por saco de soja, mais cinco por saco de milho. Estava ventando favorável à nossa casa. E aí minha esposa inalou essas coisas… e começou a sentir enjoo. O barrigão desse tamanho. Que desespero”, lembra Calixto. “O meu filho é autista. Eu não consigo provar que o transtorno dele pode ser causado por uso de agrotóxicos. Mas existem estudos que apontam o aumento abusivo de casos de TEA muito em função de má alimentação e envenenamento.”

Calixto é alto, negro e de sorriso grande e frequente, mesmo quando fala de coisas tristes. Como seu vizinho e cunhado Marciano, ele tem uma horta agroecológica e vende seus produtos em Sinop. Tem diversos tipos de árvores no atual terreno – Pitomba, Murici, Cajueiro. Tem também uma criação de abelhas sem ferrão, a Jataí. Além do trabalho na horta, é professor da escola do assentamento.

Ele conta que o desmatamento e a grilagem no 12 de Outubro começaram em 2015, mas pioraram muito no governo Bolsonaro. Calixto evita falar dos problemas e conflitos que teve com os invasores. Se limita a dizer “que quase adoeceu”.

O professor e agricultor Calixto Crispim mostra com orgulho sua criação de abelhas e sua horta agroecológica – a produção é vendida em Sinop

‘Agrossuicídio’

“Uma safra para esquecer.” Esse foi o título de um artigo que a Associação dos Produtores de Soja, a Aprosoja Brasil, principal entidade do setor, publicou em maio, prevendo uma redução de até 21% na safra do grão para o estado de Mato Grosso este ano. Ainda que tenha superestimado o tom e o percentual, a organização não estava errada. Dado publicado em 12 de setembro pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) estima que a safra 2023/2024 feche em 147 milhões de toneladas, uma redução de 4,7% ante a safra passada, que foi de 154 milhões. Em Mato Grosso, o impacto foi maior: a produção caiu quase 13,7% (de 45,6 milhões de toneladas para 39,3 milhões nesta safra). E em Sinop houve queda de 9,3% (de 678.427 toneladas na colheita passada para 615.483 toneladas nesta), segundo levantamento do Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária.

“A queda observada se deve, principalmente, ao atraso do início das chuvas, às baixas precipitações e às altas temperaturas nas áreas semeadas entre setembro e novembro”, diz a nota da Conab. A leguminosa deve ser plantada entre setembro e novembro – período em que a Amazônia enfrentava a pior seca dos últimos anos, enquanto no Rio Grande do Sul as chuvas eram excessivas.

Os produtores costumam reagir à queda de produção ou à seca ampliando a área de plantação – e os números mostram isso. Nesta safra, a área dedicada à leguminosa cresceu 4,4%, mas a produtividade caiu 8,7%.

Para o engenheiro florestal Argemiro Teixeira Leite-Filho, pesquisador do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais, aumentar a área de produção é mais um “tiro no pé”. Na verdade, talvez seja um tiro no coração, porque o cenário é tão delicado que Argemiro cunhou um termo autoexplicativo para o fenômeno do agronegócio brasileiro: agrossuicídio. Ele estuda, desde 2016, a relação entre desmatamento, chuvas e produção agrícola. E é taxativo ao dizer que a relação é direta: quanto maior o desmatamento, maior a redução das chuvas e maior a queda na produção agrícola.

“Entre 1999 e 2019, as regiões amplamente desmatadas apresentaram um atraso de aproximadamente 76 dias no início da estação chuvosa. Essas regiões também registaram uma diminuição de 360 milímetros na precipitação e um aumento da temperatura máxima do ar de 2,5 graus Celsius”, diz trecho de um artigo por ele publicado em fevereiro deste ano.

Outra conclusão interessante de seus estudos é a confirmação de que o desmatamento local também impacta as chuvas do território. Ou seja, não é só o desmatamento no sul do Amazonas que afeta as chuvas em Mato Grosso – o desmatamento do próprio Mato Grosso reduz as chuvas em suas plantações. “A conservação [da floresta] é fundamental para a produção agrícola”, resume.

Argemiro passou alguns meses entrevistando produtores rurais no Pará. Ele observa que, apesar de os fazendeiros terem dificuldade de reconhecer a emergência climática, eles estão adotando medidas de adaptação, como aumentar a área de produção, adquirir sementes melhores ou conseguir créditos para irrigação. Mas, para o pesquisador, “ver a vegetação nativa como parte da produção é tão importante quanto o produtor pensar que no ano que vem ele tem que comprar uma semente melhorada.” Além de ser a medida mais barata para manter a produtividade de suas terras em alta.

Depois de ter 205 mil hectares de floresta desmatados entre 1987 e 2023, são poucas as áreas preservadas em Sinop, como as margens do Rio Teles Pires

A ocupação que não tem nome

Alexsandra de Sousa Silva mostra as ervas que planta em casa – babosa, manjericão, capim-limão – e reclama da secura e do calor. “O pessoal fala que a vinda de Jesus está próxima, mas não é não, é o ser humano mesmo que tá acabando com a Natureza, com tudo.” Ela é uma das poucas moradoras da ocupação sem nome, na periferia urbana de Sinop, que têm um piso de azulejos em casa. Seus vizinhos têm casas de madeira com piso de terra batida.

Na falta de nome, ela chama o bairro de “Grilo”. São ruas sem asfaltamento, sem energia elétrica regular e sem esgotamento sanitário que ficam em frente a uma plantação de soja e ao lado do bairro Jardim Araguaia.

Quando chegou a Sinop, há cinco anos, Alexsandra trabalhou como empregada doméstica no bairro Aquarela. Hoje, cuida da casa. Seu marido e um de seus filhos, de 17 anos, trabalham na construção civil. Ela nasceu em Floriano, no Piauí, e se criou em Paraupebas, no Pará. E, apesar de estar numa das cidades mais ricas de Mato Grosso, que produz 615 mil toneladas de soja por ano, Alexsandra diz que “tudo o que queria era ter dinheiro para comprar um jantar”.

Alexsandra de Sousa diz que adora Sinop, apesar de viver em uma ocupação sem esgoto e sem nome na periferia da cidade

Ela conta que o marido está para receber 6 mil reais, e o patrão não paga. Fica na espera. Cada dia uma eternidade. Mas ela não se abala – e não se queixa. Só comenta que acha um desperdício o prefeito gastar 2 milhões de reais em festa. “Ele deveria estar cuidando das pessoas carentes.” Em 6 de outubro, Alexsandra não tem candidato. “Na hora que a gente precisa, ninguém ajuda.”

Das estruturas de ferro montadas na avenida principal para o 7 de Setembro, agora inutilizadas, é preciso apertar o olho para ver, ao fundo, a silhueta da Catedral Metropolitana. O horizonte é dominado pelo que parece uma neblina forte, mas o ar entra pesado, arranha a garganta e força um pigarro. As queimadas que impactam boa parte do país neste início de setembro também cercam a cidade. Há um cheiro de fumaça misturado a mosto, um odor adocicado-fermentado de milho, que alimenta as usinas de etanol da região.

O futuro apocalíptico já dá seus sinais.

Mas lá no fundo a paisagem entrecortada por pedaços de mata nativa insiste em lembrar que Sinop é também Amazônia. E só com a floresta é possível sobreviver.

Em meio à aridez e à fumaça, uma ‘ilha’ de floresta insiste em lembrar que tudo ali é Amazônia


Reportagem e texto: Ana Magalhães
Edição: Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Gustavo Queiroz
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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