Jornalismo do centro do mundo

‘Nascido e criado na Vila Ivonete, bairro de classe média da capital acriana, nos meus 36 anos de vida eu nunca tinha visto as águas do igarapé São Francisco chegarem perto’, relata o repórter após ver sua casa inundada. Foto tirada no dia 24 de março de 2023 por Fábio Pontes

O transbordo do igarapé São Francisco na noite do último 23 de março, em Rio Branco, capital do Acre, poderia ser apenas mais uma cobertura jornalística para um repórter da Amazônia acostumado a escrever sobre as enchentes nos meses do “inverno amazônico”. Mas à medida que as águas avançavam sobre a minha rua, entrando casa após casa, eu percebia que não teria condições de escrever sobre aquela cheia, mais uma em meu histórico de jornalista. A partir daquele momento, eu estava do outro lado dos fatos. Eu era a notícia. Eu fazia parte das estatísticas. Eu era mais um entre milhares de alagados.

Minha preocupação não era mais relatar o transbordamento do igarapé, cujo leito fica a apenas 800 metros de distância da minha casa. Todas as minhas atenções estavam voltadas para tentar salvar meus móveis e eletrodomésticos da água barrenta que invadia todos os cômodos da casa. Uma luta vã: depois que a água entra, não há mais retorno. A sensação é de total impotência, desespero e, ao mesmo tempo, incredulidade.

Nascido e criado na Vila Ivonete, bairro de classe média da capital acriana, nos meus 36 anos de vida eu nunca tinha visto as águas do igarapé São Francisco chegarem perto, muito menos ameaçarem entrar em nossa casa. Em fevereiro de 2021, o igarapé também inundou a rua, mas a água permaneceu a alguns metros de distância da nossa porta. A cheia anterior havia ocorrido em 2004, com um significativo intervalo entre um evento e outro. Desta vez, menos de dois anos separaram a enchente de 2021 da de 2023. E ela veio com muito mais intensidade.

Para um jornalista amazônida que desde 2006 acompanha eventos climáticos extremos – tanto as enchentes quanto as secas –, ter a própria casa tomada pelas águas do igarapé era algo que nunca tinha passado pela minha cabeça. Perdi a conta de quantas vezes coloquei os pés nas águas do rio Acre e andei de canoa para contar a trágica história de pessoas atingidas por enchentes. Agora, meus pés, joelhos e cintura estão submersos dentro do meu lar.

23 de março: um igarapé furioso

Era quinta-feira, 23 de março. A semana de trabalho havia sido intensa. Para relaxar, eu tomava uma cerveja e ouvia música. Ao longo do dia, os jornais locais tinham anunciado o transbordamento de alguns igarapés. O fato já era esperado e previsto numa cidade amazônica de infraestrutura precária.

Horas antes, um dilúvio tinha caído sobre a cidade. Foram mais de 12 horas de chuva torrencial e ininterrupta. De acordo com a Defesa Civil, o volume de água chegou a 180 milímetros ao meio-dia daquela quinta-feira. O nível do rio Acre subiu rapidamente, represando os igarapés, o que agravou a situação. Para ter uma noção do volume das águas, o nível do rio estava em 9,76 metros pela manhã e à noite já registrava 14,65 metros. Nunca na história do Acre o rio havia subido 5 metros num único dia. Em 2015, o nível do rio chegou a 18,4 metros. Em 1997, a 17,72 metros. A cheia deste ano, 2023, foi a terceira mais intensa em cinco décadas.

O fim do “inverno amazônico” nessa porção sul da floresta amazônica é marcado pelas chuvas de março. É o contrário do que ocorre no sudeste do Brasil, como cantava Tom Jobim, quando as águas de março fecham o verão. Aqui, nossas vidas são regidas por esses dois ciclos. O inverno amazônico, período das chuvas, começa em outubro e vai até março. Já o verão vai de abril a setembro, os meses mais secos, quando as queimadas acontecem com força. A cada ano que passa, esses eventos climáticos estão mais extremos.

Passava das 18h30 quando percebi uma movimentação atípica de veículos pela minha rua. Os motoristas que circulavam pela avenida principal do bairro, a Getúlio Vargas, entravam na minha rua em busca de um caminho alternativo. Logo concluí: o igarapé tinha transbordado. Calcei as sandálias e fui checar. Àquela altura, apenas ônibus, caminhões e picapes conseguiam passar na avenida. Horas depois, só canoas, voadeiras e jet skis teriam condições de circular pelas ruas submersas. Com a água pelas canelas, os moradores tentavam salvar o que era possível: aparelhos de televisão, malas abarrotadas de roupas, carros e animais de estimação.

Coloquei os pés na água e caminhei rumo ao leito do igarapé. Me dirigi à área que havia ficado mais submersa pelo transbordamento. Moradores e comerciantes estavam em desespero. Farmácias, açougues, oficinas, clínicas médicas, lanchonetes: tudo estava debaixo d’água.

Voltei para a minha rua para monitorar o movimento das águas. Minha sensação, até aquele momento, era de “tranquilidade”. Afinal de contas, em quase 40 anos vivendo ali, as águas do igarapé nunca tinham nos atingido. Aos poucos essa tranquilidade foi dando lugar à preocupação com a invasão sorrateira da água, já a poucos metros de nossa casa. Abri a porta do banheiro e vi que a água começava a entrar pelo ralo. A água barrenta do igarapé ia tomando conta do nosso quintal. Era preciso correr para amenizar os danos, tentar manter o equilíbrio e pensar no que é prioridade.

A invasão da água foi rápida e intensa. Quando vi, não havia mais cômodos secos. O piso branco tinha virado um açude de água barrenta. Em casa estávamos minha mãe, minha irmã e eu. Tentávamos salvar alguns móveis quando, de repente, o fornecimento de energia foi cortado. Ficamos às escuras. A única iluminação vinha de uma lâmpada de emergência. Sem luz, a situação era ainda mais desesperadora.

Conseguimos suspender o rack da antessala e o colocamos em cima das cadeiras da mesa da cozinha. Trabalho inútil: minutos depois, a água cobriu quase tudo. Sofás e camas flutuavam. Precisávamos tirar os cachorros do quintal. Liguei para minha irmã, que mora em outro bairro da cidade, não atingido pelas inundações. A missão dela seria nos ajudar a salvar os animais e trazer tijolos para que pudéssemos suspender as camas e os sofás, numa última tentativa de amenizar os danos. Pedimos ajuda a uma equipe do Corpo de Bombeiros, mas era tarde demais: a água barrenta, suja e contaminada, vinda da rede de esgoto, já passava de 1 metro de altura.

Sem nada mais a fazer, minha mãe foi para a casa de minha irmã tentar dormir – como se isso fosse possível. Eu decidi ficar. A adrenalina e o estresse estavam muito altos, mas não queria sair dali, mesmo sem ter onde e como me acomodar.

Na varanda, a rede (ainda) estava seca. Suspendi-a o suficiente para que, com o meu peso, ela não entrasse em contato com a água do São Francisco, que adentrou minha casa sem ser convidado. É assim que moradores às margens do rio Acre, nas casas de palafitas, enfrentam as enchentes: transformam as redes no único abrigo seco até o rio baixar. Quem tem uma canoa faz dela lugar de terra firme.

Mesmo com os apelos das autoridades para que as pessoas ficassem em abrigos oficiais, elas resistiam, com medo de que as casas fossem invadidas pelos “ratos d’água”: na calada e escuridão das noites dos bairros inundados, ladrões embarcam em canoas e furtam o que encontram em nossos lares desabitados.

Não sei se por medo dos ratos d’água, também resisti. Com a rede numa altura considerável, rezei para que as cordas não se rompessem. Deitado na rede, minha parceira em tantas reportagens de campo, eu continuava a monitorar o comportamento da água. Minha referência era a casinha da bomba de nosso poço. Pela marca da água barrenta nos azulejos brancos, conseguia acompanhar o nível. A cada foco da lanterna, para meu desalento, a água só subia.

Decidi não mais confrontar a força da natureza. Aceitei a situação. Não havia nada a fazer. Apenas esperar. Tentei tirar um cochilo. Mas a noite estava um pouco fria, e a bermuda encharcada aumentava ainda mais essa sensação. A água, pouco abaixo de mim, estava gelada. O céu, com nuvens carregadas, reduzia as esperanças de uma vazante breve. Rezei para que no dia seguinte não chovesse.

24 de março: à espera da vazante

Aos poucos, a luz do dia dá as caras. Com a iluminação natural, é possível ter uma dimensão do desastre. Todas as casas tinham sido inundadas. As únicas intactas são as que estão na parte mais alta da rua. Tenho 1,74 metro de altura. A água ficou acima da minha cintura. A casinha do poço usada como “régua de medição” já está completamente submersa.

Ainda na madrugada, meu pai havia chegado para ajudar. Fui convencido a ir para a casa da minha irmã para tomar um banho e o café da manhã. Ando descalço. Minhas sandálias de borracha foram levadas pelo igarapé. Tento carregar comigo o que é possível. É preciso andar com cuidado, arrastar os pés para não me machucar com pedaços de pau e bichos trazidos pelas águas. É comum cobras e jacarés serem arrastados nas inundações. Por sorte, não recebemos a visita de nenhum animal, há apenas muito entulho.

Vez ou outra esbarro em tijolos e móveis submersos. Arrasto-os para os cantos das paredes. Retiro os ventiladores debaixo d’água, estão com as palhetas e o motor intactos. Com sacos de lixo, pegamos as roupas de vestir e de cama do guarda-roupa da minha mãe. Era um pedido dela para que pudéssemos usá-las na casa da minha irmã.

No meu quarto, a cama flutua, mas a mesa onde ficam meu notebook e a televisão permanece imóvel. A água estava a centímetros de encobri-la por completo, para meu desespero. Coloco a TV, a impressora e as fontes de energia na prateleira mais alta. O computador, meu instrumento de trabalho, fica seguro na mochila, que levo para o carro.

Da geladeira, também flutuante, tiro os frangos congelados que tinham sido comprados na tarde anterior. São os únicos alimentos que poderemos comer. Todo o resto foi contaminado pela água suja. Com a ajuda de vizinhos, colocamos a geladeira deitada sobre a mesa e retiramos as duas TVs.

Igarapé estabilizado, estrago visível. Agora é esperar a vazante. Canoas e voadeiras (sem os motores, apenas com remos) trafegam num vaivém incessante, retirando móveis de casas e escritórios.

O desalento em mim é grande. A água invadiu meu pequeno mundo, onde achava estar a salvo. Entendi que ninguém mais está a salvo da crise climática, das respostas da natureza: não importam a cor, o credo nem a classe social.

As marcas no portão de casa são um sinal de que a água está baixando. Aos poucos o igarapé vai voltando para o seu lugar – ou somos nós os invasores?

25 de março: o recomeço

A casa só se esvazia de água na manhã de sábado, 25 de março. Na noite anterior eu havia dormido novamente numa rede, na casa da minha irmã. Seco, de banho tomado e numa rede mais confortável. Ainda bem cedo retorno à nossa casa. Abro o portão. No lugar da água, a lama. O sentimento é de alívio pela vazante, mas o desalento permanece

Entro e gravo o estrago feito. Ainda não há energia. Os móveis estão espalhados por todos os cantos. A máquina de lavar está segura pelas mangueiras. O mesmo acontece com o botijão de gás. O quarto da minha irmã foi arrasado. Prejuízo total. Os guarda-roupas foram todos para o lixo. Desmanchavam-se como papelão molhado.

Em fevereiro de 2021, o igarapé também inundou, mas a água permaneceu a alguns metros de distância da casa do jornalista. Em 2023, o rio subiu 5 metros num único dia, o que nunca tinha ocorrido na história do Acre. Foto: Fábio Pontes

Os estragos são imensuráveis. Por sorte, a geladeira voltou a funcionar. Uma despesa a menos. Colchões e sofás também podem ser recuperados. Em frente de casa, vejo uma montanha de entulho. Catadores e recicladores reviram o local. Aos poucos, o piso original da casa vai reaparecendo. Aquele seria apenas o primeiro dia de um trabalho de reconstrução que perdura até hoje.

Não se trata apenas de uma reconstrução física. Entendi que as marcas de uma inundação não ficam somente nas paredes. Estão também dentro de nós. Os traumas e os medos permanecem. A cada chuva intensa, ficará sempre aceso o alerta vermelho. Durante as duas semanas seguintes, em que o rio Acre continuou acima da cota de transbordamento, não consegui ficar tranquilo. Temia um novo dilúvio, mais transbordamentos dos igarapés.

O transbordo provocou em mim uma sensação de total impotência, de pequenez. A vida continua, estamos vivos e com saúde para prosseguir a reconstrução. O igarapé está logo ali. Aquele igarapé tão judiado e maltratado, ao longo das décadas transformado num depósito de lixo e esgoto, deu um duro recado a todos nós. Ele e nós teremos que seguir nossas trajetórias. Que possamos aprender, com tantas tragédias, algumas lições.


Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga

O rio Acre seguiu acima da cota de transbordamento nas duas semanas que se seguiram à tragédia do dia 23. A imagem acima foi registrada no dia 31 de março. Foto: Gleilson Miranda/Fotoarena/Folhapress

TAGS

© Direitos reservados. Não reproduza o conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita de SUMAÚMA