Júnior Hekurari Yanomami fala devagar, como se as palavras o ferissem enquanto sobem até a boca. “Tinha uma criança de 2 anos com desnutrição, desidratação, pneumonia e malária. Tudo de uma vez. Foi removida direto para a UTI [em Boa Vista]”, diz. “Um bebê de um 1 ano e 5 meses morreu no domingo. Ele estava muito doente, com desnutrição e desidratação. A gente ia remover [para o médico] na primeira hora, mas começou a chover às 4h e só parou às 14h. O avião não conseguia voar. Ele morreu ao meio-dia e 13 [minutos]”, conta, com a precisão de quem não esquece o que viu. As histórias vão saindo, uma após a outra, em tom de desabafo. São depoimentos de suas visitas ao polo de saúde de Surucucu, sua comunidade dentro da Terra Indígena Yanomami, onde o governo federal montou uma força-tarefa médica para atender as vítimas do genocídio que ocorre no território demarcado. Os casos mais graves são levados de lá em aeronaves para um hospital em Boa Vista. “Na semana passada morreu um pai e um filho no mesmo dia. É todo mundo de luto o tempo todo. Acaba um ritual [fúnebre], começa o próximo”, explica. “Em uma comunidade morreu pai, filha, a liderança e outro jovem. Todos de malária.”
A força-tarefa no Surucucu reúne médicos e enfermeiros que fazem o atendimento de diversas aldeias ao redor. Houve reforço também das equipes de saúde em outras das 68 unidades de atendimento dentro do território Yanomami, por onde se espalham mais de 350 comunidades em uma área de 9,6 milhões de hectares. Quando há pacientes graves, aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB) ou de uma empresa privada contratada buscam o doente na comunidade onde ele está. Mas, muitas vezes, os Yanomami não conseguem se comunicar. E saem pelas trilhas da floresta em busca de ajuda médica. “Chegou um idoso que o pessoal trouxe por 12 horas nas costas. Alguns caminham dois, três dias”, conta Júnior. Os relatos lembram o fim de uma guerra, quando as bombas cessam e as vítimas, feridas e abaladas, procuram desesperadas pela ajuda que finalmente chegou. Só que essa guerra está longe de acabar.
O cenário é o resultado de quatro anos do governo do extremista de direita Jair Bolsonaro, em que a estrutura de saúde dentro do território Yanomami foi desmantelada. O garimpo, agindo livremente e incentivado pelo próprio presidente, expulsou equipes médicas que atendiam em várias aldeias sem qualquer reação do governo – atualmente, três postos de saúde ainda seguem fechados. A mineração destruiu a área em que os indígenas de muitas aldeias plantavam, caçavam e pescavam, provocando fome e desnutrição grave. Os rios dos quais eles bebem foram contaminados pelas fezes dos garimpeiros e passaram a provocar diarreias agudas. Os corpos fragilizados foram ainda infectados por doenças levadas pelos invasores, como gripe e malária, que se tornam graves sem médicos e remédios. E o pior ainda pode estar por vir, que são os efeitos a longo prazo do mercúrio usado no garimpo na saúde dos indígenas.
GALÕES DE COMBUSTÍVEL ÀS MARGENS DO RIO URARICOERA. ESSE É UM DOS PRINCIPAIS ACESSOS DOS GARIMPEIROS À TI YANOMAMI E UMA DAS ROTAS DE FUGA DOS QUE TENTAM DEIXAR LOCAIS DE MINERAÇÃO ILEGAL. FOTO: MICHAEL DANTAS/AFP
Desde que a força-tarefa foi montada no território, em 16 de janeiro, aeronaves já levaram indígenas em situação grave para Boa Vista 112 vezes. E voaram por mais 111 vezes para buscar doentes nas aldeias e levá-los para atendimento médico nos postos dentro da própria terra indígena. Para se ter uma ideia da magnitude da operação, em 2021 inteiro foram feitas 714 remoções de emergência no território Yanomami, uma média de 60 por mês, conforme dados obtidos por SUMAÚMA. “Nesses dias, temos observado pelo menos 10 remoções diárias ou mais. Houve um dia com 23 crianças com desnutrição removidas para o Hospital Municipal da Criança. No momento da visita no Hospital Municipal da Criança, dos 15 leitos de UTI, seis eram ocupados por crianças indígenas”, descreve um relatório do governo. Na Casa de Saúde Indígena (Casai) Yanomami, em Boa Vista, onde ficam alojados os indígenas que passam por atendimento nos hospitais ou estão em tratamento, há 281 Yanomami, a maior parte deles internada por desnutrição, pneumonia ou malária. “Infelizmente, o caso é tão grave que nós temos nos concentrado nessas ações de urgência e emergência. Tanto a Casai quanto o polo de Surucucu viraram verdadeiros campos de concentração”, afirmou o Secretário de Saúde Indígena, Ricardo Weibe Tapeba.
ATENDIMENTO AOS YANOMAMI NO HOSPITAL DE CAMPANHA DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA INSTALADO NA CASA DE SAÚDE INDÍGENA EM BOA VISTA. FOTO: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL
“O helicóptero da saúde não para. Vai das 7h30 até 18h buscando gente. Cabem 5 pessoas, mas o piloto vê a situação e leva até o limite possível [de peso]. Já que os Yanomami estão muito magrinhos, cabe mais”, conta Júnior, de sua pequena sala no Distrito Sanitário Especial Índigena (DSEI) Yanomami, na capital de Roraima. Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) Yanomami, órgão da sociedade civil que fiscaliza o trabalho do governo na saúde indígena, Júnior gritou durante anos sobre a grave situação de seus parentes a ouvidos que fingiam não escutar.
Foi daquela sala que saíram as primeiras fotos de crianças e velhos em pele e osso que foram publicadas, junto a outras obtidas por SUMAÚMA, na reportagem que revelou a morte de 570 crianças Yanomami com menos de 5 anos de idade durante o governo Bolsonaro, por falta de atendimento médico. “As ameaças [dos garimpeiros] aumentaram muito depois de tudo isso”, contou na última terça-feira. Sentado em uma cadeira, Júnior mantinha o braço esticado enquanto um pincel com tinta de jenipapo percorria seu braço, preenchendo-o com longas listras pretas. Ao lado, círculos precisos ajudavam a formar, pouco a pouco, sua nova capa de proteção espiritual. Dentro da pequena sala, é pintado com os grafismos de seu povo. E se conecta pela tinta à sabedoria de seus ancestrais para afastar o mal jogado em sua direção. “Precisa de muita proteção”, diz.
O governo federal chegou ao território Yanomami em 16 de janeiro para avaliar a situação no local após a morte de crianças em dezembro. Era, a princípio, uma missão exploratória, que tinha o objetivo de visitar com o apoio de Júnior algumas comunidades, para avaliar a situação de saúde e dos atendimentos médicos na região de Surucucu, conta um médico que participou da ação e pede para não ser identificado. “Era uma missão exploratória, mas a gente acabou assumindo várias funções de assistência por necessidade. E eu te digo claramente que ao menos três ou quatro crianças teriam morrido se a gente não tivesse chegado”, conta. Após a publicação da reportagem em SUMAÚMA, em 20 de janeiro, as imagens dos Yanomami desnutridos e a informação das 570 crianças mortas viralizaram nas redes sociais. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi até Boa Vista no dia seguinte para conversar com as lideranças Yanomami. O Ministério da Saúde publicou uma portaria que declarou situação de emergência em saúde pública no território, e foi criado o Centro de Operações de Emergência em Saúde (COE), uma equipe multidisciplinar que atua agora dentro do DSEI, em uma sala distante apenas a alguns passos da de Júnior. A FAB, pouco atuante no território nos últimos anos, montou um hospital de campanha na Casai.
AERONAVES APREENDIDAS POR ENVOLVIMENTO EM CRIMES AMBIENTAIS E GARIMPO ILEGAL NA TERRA INDÍGENA YANOMAMI NO PÁTIO DA POLÍCIA FEDERAL EM BOA VISTA. FOTO: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL
Na última segunda-feira, 6 de fevereiro, foi iniciada uma operação para a retirada dos garimpeiros de dentro do território, coordenada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), dois órgãos enfraquecidos e impedidos de agir de forma estratégica contra o garimpo durante a gestão de Bolsonaro. Nos dois primeiros dias de operação, foram destruídos um helicóptero, um avião, um trator, além de duas armas, três barcos e cerca de 5 mil litros de combustível. Os órgãos também montaram uma base de controle no rio Uraricoera, uma das vias usadas pelos criminosos para entrar no território indígena e, com isso, impedir o fluxo de suprimentos para o garimpo. “Além de gasolina e diesel, as voadeiras [barcos a motor] carregavam cerca de uma tonelada de alimentos, freezers, geradores e antenas de internet. Todos os suprimentos foram apreendidos e serão usados para abastecer a base de controle”, informou o Ibama por meio de nota. A apreensão mostra que o garimpo ainda tenta resistir no território, apesar do maior controle do governo na área.
A violência pode aumentar
As ações contra os garimpeiros provocam também a preocupação de reações por parte dos criminosos. No início deste mês, o governo criou uma zona de exclusão aérea para impedir o trânsito de garimpeiros e de suprimentos para os garimpos dentro do território Yanomami. Aeronaves não autorizadas estavam proibidas de voar, o que gerou pânico entre os infratores de que seriam abatidos pela FAB no ar, caso descobertos. Com isso, as aeronaves que ousaram voar ilegalmente, sempre baixo para tentar fugir dos radares de controle do governo, passaram a cobrar mais de 15 mil reais por pessoa que queria deixar às pressas o território. Em uma pista de garimpo, homens e mulheres protestavam contra os responsáveis pelo preço do voo. Reclamavam que não havia forma de sair, diante dos preços inflacionados. Vídeos de garimpeiros e de mulheres que trabalham no garimpo começaram a se espalhar na internet, mostrando grupos inteiros de homens se embrenhando em fila pela mata, para iniciar caminhadas que demoram semanas. Outros deixavam a Terra Indígena Yanomami em barcos até um porto clandestino localizado numa área remota – de lá, precisavam pagar mais de 300 reais pelo transporte até a cidade.
A tensão se ampliou no território. Na última sexta-feira, na região do Homoxi, uma das mais afetadas pelo garimpo, três jovens Yanomami foram alvos de tiros de garimpeiros. Um, atingido na barriga, acabou levado ao hospital em Boa Vista. Outro morreu no local. A Polícia Federal abriu um inquérito para investigar o caso e esteve na área para fazer diligências, mas não forneceu detalhes da visita à imprensa. Segundo Júnior, o corpo da vítima não foi retirado porque a mãe não autorizou. Queria que ele ficasse na aldeia para o ritual funerário. Em outra comunidade, também na sexta-feira, homens Yanomami que estavam na floresta se encontraram com garimpeiros. Houve troca de tiros e dois Yanomami e um garimpeiro teriam morrido, segundo informações recebidas por Júnior. O local, entretanto, fica no meio da floresta e até o momento não foi possível alcançar os corpos.
Trabalhadores da saúde que atuam em polos próximos a áreas de garimpo também relatam preocupação. Equipes que trabalham com indígenas isolados dentro do território temem que os criminosos tentem se abrigar ou abrir novas frentes de garimpo nas áreas mais remotas, onde estão grupos que vivem sem qualquer contato com não indígenas e não têm imunidade às doenças que os garimpeiros carregam. Também há medo de que os garimpeiros ataquem esses indígenas com suas armas em um eventual encontro na floresta, provocando um massacre. Uma base da Funai que protege a área dos isolados tem funcionários que também estão vulneráveis a uma possível invasão em massa de criminosos armados.
OS MINISTROS DA DEFESA, JOSÉ MÚCIO, DOS DIREITOS HUMANOS, SILVIO ALMEIDA, E A PRESIDENTE DA FUNAI, JOENIA WAPICHANA, ACOMPANHAM O ATENDIMENTO AOS INDÍGENAS YANOMAMI NO HOSPITAL DE CAMPANHA DA FAB. FOTO: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL
Diante do aumento da tensão, na segunda-feira, dia 6, o governo recuou e abriu parcialmente o espaço aéreo outra vez. Criou três corredores de voo para “possibilitar a saída coordenada e espontânea das pessoas não indígenas das áreas de garimpo ilegal por meio aéreo”. Esses corredores ficarão em funcionamento até segunda-feira, dia 13. Na prática, o governo deu uma semana para os criminosos escaparem. Possivelmente permanecerão dois tipos de garimpeiros: aqueles que foram abandonados, muitos deles vivendo em situação análoga à escravidão, caso da ponta mais frágil da cadeia do garimpo, ou aqueles que estão prontos para o confronto com as forças de segurança do Estado, provavelmente mais armados e ligados ao crime organizado que atua na região.
“Temos uma preocupação de não prejudicar inocentes. No garimpo, tem pessoas que trabalham para se sustentar. Tem mulheres, crianças, tem homens que estão trabalhando pelo seu sustento”, afirmou o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, em entrevista coletiva em Boa Vista na última quarta-feira. Questionado por um repórter se ele, de fato, considerava que os garimpeiros ilegais eram “inocentes”, afirmou que “não pode julgar isso”. “Primeiro nós vamos fazer essa avaliação”, afirmou. “Quando chegar a vez, vai ficar por conta da Polícia Federal e da Justiça ver quem são os culpados, que serão punidos”, afirmou. Ele não soube precisar, no entanto, quando a totalidade dos garimpeiros será retirada da área.
A operação abre ainda um outro flanco de preocupação. Há regiões em que o garimpo invadiu a área das comunidades e cooptou jovens para a atividade criminosa. Também tornou as comunidades dependentes dos alimentos trocados por trabalho. Teme-se que a retirada dos invasores de forma desordenada desequilibre ainda mais essas comunidades. “A determinação é tirar os garimpeiros não indígenas de dentro do território Yanomami, e o plano sequencial é garantir ferramentas, instrumentos para que os indígenas possam voltar a produzir seus alimentos próprios dentro do território”, explicou a SUMAÚMA a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, em visita a Boa Vista. “Inicialmente, tem esse atendimento emergencial com cesta básica para as famílias indígenas, mesmo para essas que já estão envolvidas, porque elas não estão ali por uma decisão, mas por falta de opção. Esse plano de desintrusão prevê esse cuidado com os indígenas que estão nos arredores ou mesmo já envolvidos com os garimpeiros porque não tiveram saída”, complementou ela.
A ministra sobrevoou a área no último domingo e considerou as imagens “chocantes”. “O território tomado pelo garimpo, pela destruição. Os rios todos contaminados de mercúrio ou mesmo de água suja, barrenta, por conta do manejo das máquinas do garimpo, inviabilizando que essa água seja consumida. Os Yanomami estão ali sem água para beber”, conta. “É realmente muito triste de se ver a que ponto chegou essa destruição do meio ambiente e essa crise nutricional do povo. Acho que a gente só consegue entender vendo com os próprios olhos. As notícias não dão conta de mostrar a realidade. É preciso um trabalho intenso e de longo prazo para dar fim a essa destruição.”
VISTA AÉREA DE PORTO DO ARAME, ÀS MARGENS DO RIO URARICOERA, QUE É O PRINCIPAL PONTO DE ACESSO PARA AS PESSOAS QUE TENTAM DEIXAR LOCAIS DE MINERAÇÃO ILEGAL DENTRO DAS TERRAS INDÍGENAS YANOMAMI NO ESTADO DE RORAIMA. FOTO: MICHAEL DANTAS/AFP