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Arqueólogos escavam área perto de onde um morador achou uma ponta de flecha de mais de 7 mil anos. Projeto quer recontar a história da floresta escrita pelos colonizadores. Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

Do Carmo caminha pelo terreno que conhece desde criança como se nem mesmo percebesse o chão. Age com o costume de quem já viu a cena muitas vezes quando um grupo de arqueólogos olha para o solo e começa a achar, sem nenhum esforço, pedaços de cerâmica cobertos de terra – restos de potes usados por indígenas séculos atrás – um após o outro em uma pequena volta por seu quintal. “É o que mais tem aqui”, diz o homem, que há décadas revira aquela área para plantar macaxeira, banana e tudo o mais que quiser brotar. Do Carmo já viu o extraordinário. Com passos tranquilos segue em direção a sua casa de madeira e volta orgulhoso para mostrar. Ajeitado em um pequeno saco plástico transparente está ali o objeto pontiagudo, do tamanho da palma de uma mão, que ele guarda com cuidado há alguns anos. Vinícius Honorato, um dos arqueólogos, o retira do invólucro e sorri. É uma ponta de flecha esculpida em rocha lascada e que pode ter mais de 7 mil anos.

Aquela ponta, o objeto precioso de Do Carmo, foi achada a poucos metros dali, bem ao lado de um pé de manga, após uma chuva forte que revirou a terra. Mesmo sem saber o que era, ele sentia que estava diante de algo especial e, por isso, resolveu mantê-la protegida em uma estante. Quando em 2017 Vinícius passou por sua comunidade na Reserva Extrativista (Resex) do Rio Iriri, no Pará, o ribeirinho mostrou a descoberta e teve a certeza do que já pressentia: era um artefato lítico lascado. “Um tipo muito raro aqui na Amazônia”, explicou o pesquisador.

Não demorou muito para a notícia se espalhar. Um dia, uma voadeira com homens desconhecidos parou a poucos metros de sua casa. Eles caminharam até Do Carmo e pediram para ver o objeto. “Te dou 300 reais nessa ponta agora”, disse um, já tirando as notas do bolso. Do Carmo nem sequer pensou. “Eu não vendo, não!”, respondeu. Sentado em um banquinho no quintal, ele explica: “Meu pai falava: ‘Meu filho, antes de nós existia gente nesta terra’. Eu penso: será que essa era uma flecha deles? É uma coisa que tem uma história”.

Do Carmo sabe que história não tem preço.

Do Carmo observa, nas mãos do arqueólogo Vinícius Honorato, um pedaço de cerâmica indígena. Morador da Terra do Meio, o beiradeiro já encheu um balde de 20 litros com vestígios do passado encontrados em seu terreno. Foto: Alessandro Falco/Sumaúma

Manoel do Carmo Neves de Souza, um seringueiro de 57 anos, cresceu na comunidade Manelito, apelido do primeiro morador, seu pai, à beira do rio Iriri, um afluente de águas cristalinas do rio Xingu de onde despontam grandes pedrais que formam uma paisagem onírica. A história do Brasil – e dessa terra vastamente habitada bem antes da invasão portuguesa – se conta naquelas águas, nas árvores centenárias que estão em seu quintal, no solo em que ele pisa e planta, em uma pedra na beira do rio que forma um buraco, uma leve depressão, onde, pode-se imaginar, alguém se debruçou muitas vezes no passado para fazer ferramentas. E em seus próprios antepassados, que chegaram à região a partir do primeiro ciclo da borracha, no fim do século 19, como os de muitos descendentes de nordestinos da Amazônia, e se tornaram beiradeiros – moradores de comunidades na beira do rio, com um modo de vida totalmente próprio. Foi ali, a poucos metros de onde a ponta de flecha emergiu, que o grupo de arqueólogos decidiu abrir uma clareira e iniciar uma escavação. Que histórias aquele solo poderia recontar?

Os cientistas fazem parte do projeto Amazônia Revelada, que pretende identificar sítios arqueológicos na porção brasileira da floresta para ajudar a remontar um passado escrito pelas tintas dos colonizadores. E também para mostrar a diversidade de ocupação da Amazônia, onde vestígios de 12 mil anos atrás foram encontrados, mas cuja história continua sendo construída, tanto pelos indígenas que sobreviveram quanto pelos seringueiros e seus descendentes. Uma ocupação contínua e conectada de um território que muitos governos, por interesses econômicos e políticos, tentaram apagar ao espalhar para o mundo o imaginário de uma floresta inóspita e perigosa que teria mais utilidade derrubada. E que iniciativas como o marco temporal, que defende a demarcação apenas de territórios ocupados pelos indígenas na promulgação da Constituição, em 1988, continuam a atacar.

Identificar novos sítios na Amazônia é importante também para que a própria floresta, que ajuda a regular o clima do planeta, ganhe uma nova camada de proteção. Sítios arqueológicos são protegidos pela legislação brasileira e devem ficar sob a guarda do poder público. “É um projeto de arqueologia política”, define Bruna Rocha, que, assim como Vinícius, é professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e uma das coordenadoras do projeto, que é financiado pela National Geographic e pela Iniciativa Darwin. “Estamos diante de uma crise climática. Nos perguntamos: o que a arqueologia pode fazer para contribuir com essa luta?”, diz.

Jovem da comunidade Manelito, na Reserva Extrativista do Rio Iriri, se banha ao pôr do sol. Foto: Alessandro Falco/Sumaúma

A parte prática do trabalho começou em julho deste ano em comunidades da Terra do Meio – como é chamada a área de 28 milhões de hectares entre os rios Tapajós e Xingu – e vai aliar o conhecimento de indígenas e beiradeiros, como Do Carmo, a uma tecnologia de detecção e alcance de luz chamada LiDAR. Em 2018, o sistema identificou uma pirâmide soterrada na floresta de Tikal, cidade maia no norte da Guatemala. Além da Terra do Meio, essa primeira fase do projeto vai mapear e escavar possíveis sítios arqueológicos em outros locais até o fim de 2024: o leste acriano e o sul do Amazonas, áreas tomadas por fazendas; a Reserva Biológica do Guaporé e a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, onde há povos originários isolados e outros territórios tradicionalmente ocupados que estão em definição. Comunidades das regiões a serem sobrevoadas foram consultadas e autorizaram o trabalho, destaca Bruna.

Em julho, o LiDAR começou a sobrevoar o Acre. Os dados estão agora sob a análise dos pesquisadores. A tecnologia, sigla em inglês para Light Detection and Ranging (detecção de luz e distância), emite feixes de laser infravermelho capazes de fazer modelos tridimensionais da superfície da terra abaixo do dossel das árvores. Em outras palavras: é como se uma foto do solo fosse tirada depois de se ter removido todas as árvores da floresta. Com isso, será possível ver, por exemplo, montículos de terra que podem indicar antigas áreas de morada ou estradas usadas por indígenas do passado e já retomadas pela vegetação. “Vai nos ajudar a ter as ocupações do passado e do presente bem mapeadas”, espera Vinícius. As imagens servirão para que os pesquisadores identifiquem possíveis locais para futuras escavações.

Em um desses sobrevoos já se descobriu, por exemplo, um geoglifo: um quadrado com duas pontas de estrela como braços. Esse tipo de estrutura geométrica, escavada no solo, começou a aparecer na região na década de 1970, desvelada pelo desmatamento. Mas os cientistas acreditam que muitas delas ainda estejam encobertas pelas árvores. No início especulava-se que esses locais tivessem funcionado como fortes, mas pesquisas recentes têm revelado que eles poderiam ser sagrados, utilizados para a realização de cerimônias. O emprego do sensoriamento remoto com o LiDAR pode ajudar a mapear a existência dos geoglifos e ampliar o conhecimento sobre eles.

Animação mostra o trabalho do LiDAR: na primeira imagem, a floresta densa; na segunda, o geoglifo descoberto abaixo da copa das árvores (arraste o círculo para mudar de uma para outra)

Do Carmo segue a caminhada por seu terreno. A postura perfeita de seu corpo esguio ajuda a equilibrar os óculos de armação fina quase no meio do nariz. À frente dele, o rio calmo em que navegou desde menino para pescar ou visitar seus vizinhos. Ao redor, a floresta de mata densa de onde o canto dos pássaros disputa atenção com o dos galos do quintal. Quando limpou aquela área, por onde seus animais ciscam, o beiradeiro encheu “um balde de 20 litros com um bocado de coisa” que tirou do solo, conta.

“Tinha um tantão de machadinha, uma bem grande, inteira”, relata, levando uma das mãos à altura de seus olhos e a outra perto do peito. Os objetos dos moradores do passado foram entregues a um indígena da aldeia Tukamã, próxima dali – os Xipaya, que vivem naquele território, são retratados nos primeiros registros de exploradores brancos que estiveram na região em meados do século 17, mas a guerra com outros povos indígenas, primeiro, e a chegada dos brancos, depois, quase os exterminaram. Tiveram que fugir da região, para onde só conseguiram retornar em meados dos anos 1990. Naquele sábado de julho, quando estivemos na casa de Do Carmo, em um pequeno quadrado de terra já haviam aflorado um grande disco cerâmico quase intacto, provavelmente o fundo de uma vasilha usada por indígenas entre 2 mil anos atrás e a chegada dos brancos, e uma tampa de ferro fundido, marca das ocupações seringueiras entre o final do século 19 e a primeira metade do século 20. Lado a lado, a história contínua do passado daquela terra, que tem em Do Carmo o presente.

Do Carmo mostra a ponta de flecha encontrada ao lado de sua casa, na comunidade Manelito. Foto: Alessandro Falco/Sumaúma

O homem de fala calma contrasta com a vida pulsante da floresta ao redor, por onde, vez ou outra, um grupo de queixadas passa em carreira desenfreada e o obriga a escalar árvores como um ginasta. Os animais são atraídos por sua roça, colocada mais acima do terreno, onde fica a parte mais fértil, rica em terra preta, ou “terra de maloca”, como os beiradeiros chamam aquele solo, em referência à antiga casa dos indígenas. Uma terra que foi enriquecida justamente pela presença dos povos originários na área, segundo apontam as pesquisas feitas nos últimos anos. “A gente acredita que essas terras pretas foram formadas por anos de descarte de coisas como palha de casa, resto de comida, excrementos, ossos, sepultamentos, cerâmicas, penas, sementes”, enumera a arqueóloga Bruna. Essas áreas de ocupação indígena acabaram formando um solo rico em matéria orgânica, que se tornou ideal para as roças de descendentes dos indígenas e também para os seringueiros e os beiradeiros.

As pesquisas têm mostrado que, após a quebra do sistema no segundo ciclo da borracha, por volta de 1945, os seringueiros, que viviam até então em locais determinados por seus patrões, ao serem abandonados na floresta passaram a escolher onde viver, explica Vinícius. “Uma pergunta que a gente faz é: até que ponto, uma vez que esses seringueiros já conheciam o ambiente, eles saíam das colocações, lugares que foram escolhidos pelos patrões, e se realocavam em áreas que tinham sido ocupadas anteriormente por indígenas, às vezes sem nem saber, por identificarem ali uma abundância deixada pelos moradores do passado?”, questiona o pesquisador. Quando o pai de Do Carmo, Manuel Alves de Souza, que começou a trabalhar nas estradas de seringa do padrasto aos 12 anos, escolheu viver ali, já sabia que naquela área suas plantações poderiam prosperar: o patrão já tinha botado uma roça antes.

Nessa área de terra preta perto da roça, os arqueólogos abriram uma segunda escavação para avaliar se ali foi, de fato, a morada de indígenas, como a hipótese indica e como o quintal de Do Carmo parece querer contar.

Artefatos achados na comunidade Manelito. À esquerda, fragmento cerâmico do tempo dos indígenas; em seguida, um objeto de pedra usado como machado; uma ferramenta lítica lascada e, por último, uma tampa de ferro fundido usada por seringueiros. Foto: Alessandro Falco/Sumaúma

Carlos Magno Ataíde da Conceição, de 30 anos, se esgueira pelo buraco quadrado para raspar a terra com uma colher de pedreiro – a colher própria para arqueologia é cara e não se acha com facilidade no Brasil, explica Bruna. Estudante do último ano de arqueologia da Ufopa, ele é voluntário no projeto e se dedica à segunda escavação na Manelito com o mesmo instrumento que seu pai e seu tio, pedreiros, usaram a vida toda.

Nascido no bairro da Cabanagem, em Belém, ele é o penúltimo filho de seis irmãos e faz parte da primeira geração da família a fazer universidade. É da nova leva de arqueólogos amazônidas em formação. Os Santos e os Silva – netos e bisnetos de nordestinos que migraram para a Amazônia – começam a tomar o lugar de sobrenomes como Coudreau e Von Martius, cientistas estrangeiros que por décadas lideraram a narrativa sobre a história da região. Ao longo dos anos, esses exploradores brancos levaram muitos dos achados daquelas terras para museus dos Estados Unidos e da Europa, onde estão até hoje mantidos, a maior parte em salas de arquivos técnicos, longe dos olhos do público e daqueles que compartilham dessa trajetória.

“Nós somos amazônidas. Nós somos descendentes dessas populações. A maior parte das gerações oriundas das parcelas mais pobres não conhece a história de suas famílias, não sabe dizer o nome de seu avô, do bisavô, como sabem os das classes mais abastadas. Quando nós usamos espaços como esses, da universidade, nós também estamos conhecendo a nossa própria história”, afirma ele, que trabalha ao lado de outros dois estudantes de arqueologia amazônidas, Emily Roberta da Silva Santos, de 22 anos, e Marlos Douglas Silva Rocha, de 20. Por um mês, medem, marcam, escavam, peneiram a terra, e guardam e registram cada achado. Eles se aproximam, centímetro a centímetro terra abaixo, das próprias origens.

Ao final, ao lado de Vinícius e Bruna, retiraram mais de uma dezena de sacos com vestígios do passado, que foram levados à universidade e estão sendo limpos e analisados. Entre os achados, muitas cerâmicas, que por meio de seus estilos e grafismos podem revelar que povos viveram ali.

Da esquerda para a direita: a professora Bruna na escavação da Manelito ao lado dos estudantes Marlos e Emily, que cobre o rosto para se proteger dos mosquitos; Carlos Magno trabalha na segunda área de escavação; Vinícius mostra uma cartela de cores do solo, que ajuda a descobrir a terra preta. Fotos: Alessandro Falco/Sumaúma

Um grupo de 19 jovens beiradeiros se aproxima da primeira escavação. São moradores das comunidades da Terra do Meio, um mosaico de reservas extrativistas, áreas indígenas e uma estação ecológica, que estão sendo treinados para ajudar na identificação de novas áreas que podem ser escavadas para o projeto. “Esse lugar aqui é muito interessante. Se a gente pensar em toda a história da Amazônia, é como se a gente tivesse um resumo. Aqui perto, Do Carmo encontrou essa ponta de flecha, que é uma das coisas mais antigas que se pode ter em toda a América do Sul. Aqui tem um pouco de terra preta, esses cacos cerâmicos de indígenas que viveram antes, as ferramentas de pedras deles, as machadinhas. E tem os próprios materiais que estão relacionados com a vida seringueira, com a vida beiradeira”, explica Bruna aos estudantes, ao lado da escavação.

Curiosos, os jovens se espalham no entorno do buraco, já profundo. E trocam conhecimento com os pesquisadores para ajudar a montar o quebra-cabeça histórico da região. “Tem muito tempo aquela mata, mas se você chegar e colocar uma roça, vão nascer vários tipos de plantas que você não plantou”, diz Rafael Ferreira de Souza, de 23 anos, olhando para a floresta. “Na minha comunidade, eu escolhi um lugar e coloquei uma roça. Nasceu goiaba, mamão, mandioca-brava, que eu não plantei”, conta. “Muitas terras de maloca são como bancos de sementes. Têm coisas guardadas que são resultado das pessoas que moraram muito tempo antes”, explica Bruna.

Como parte das atividades do projeto, os estudantes foram orientados, meses antes, a percorrer o entorno de suas casas em busca de novos vestígios e a registrar o que encontram em um aplicativo instalado em seus celulares e compartilhado com a equipe de pesquisadores. Em uma definição criada com a ajuda dos próprios jovens, os achados são divididos em categorias de tempo: o dos índios (ainda que hoje o termo mais aceito seja indígena), o dos patrões (seringalistas) e o das resex (criadas na região no começo dos anos 2000, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva). Já mapearam 160 vestígios desde o início do projeto.

Vinícius exibe uma escavação para os moradores da Terra do Meio. Rafael Ferreira (ao centro) fica curioso com as sementes que achou em sua roça. Foto: Alessandro Falco/Sumaúma

“Onde a gente mora é meio que um sítio arqueológico. Você dá um passo e acha um caco, um pote. Esses dias mesmo eu achei uma vasilha perfeita de cerâmica na frente da minha casa”, conta Liliane Santos da Silva, de 21 anos.

Sentada sob uma mangueira, Crislene dos Santos Silva, de 17 anos, enumera o que descobriu em sua terra: “Meu marido achou tipo uma flechinha, que a gente acha que era do tempo dos índios. Também tinha uma machadinha do tempo da seringa, porque antes de se começar a cortar [a árvore para extrair o látex] com faca, eles cortavam com a machada [de metal]”, explica.

Os jovens foram escolhidos por participarem de um curso de gestão territorial promovido pelo Instituto Socioambiental (ISA), onde aprendem, entre outros assuntos, sobre a importância da arqueologia e como o estudo do passado pode reforçar a luta de todos eles pelo direito ao território. Provar que aquelas áreas da Amazônia foram habitadas por seus ancestrais ou por povos indígenas, sempre em harmonia com a floresta, pode ser crucial para garantir a permanência deles.

“A imagem que se propagou por anos é que a floresta é uma inimiga a ser vencida”, explica Bruna aos alunos, durante uma das aulas do projeto, ainda na comunidade Manelito. Ela mostra uma propaganda da época da ditadura militar-empresarial brasileira (1964-1985) que comemora a construção da Transamazônica, estrada que desmatou e dizimou muitos povos pelo caminho. “Era a ideia de que a floresta não tem nada de positivo a não ser riqueza que pode ser extraída, como o minério. Era vista apenas como um lugar para escoar a produção, não um lugar onde tem gente”, diz. Esse pensamento não era casual. Assim como a colonização dizimou os povos originários para abrir caminho para a exploração do território, a ditadura militar-empresarial brasileira – e os ruralistas de hoje – veem nos povos-floresta um empecilho para seus interesses econômicos. Ignorar as vidas da floresta, portanto, sempre foi essencial para um projeto que entende a Amazônia e a natureza como uma fonte de lucros privados.

Quando os europeus invadiram o continente viviam na bacia amazônica entre 8 milhões e 10 milhões de pessoas, estima o arqueólogo Eduardo Neves, coordenador do Amazônia Revelada, em artigo publicado em SUMAÚMA. Muitos desses indígenas acabaram mortos pelas doenças dos colonizadores, por tentarem defender seus povos ou pela escravidão. “Quando os primeiros cientistas começaram a viajar pela Amazônia, no século 18, encontraram a região esvaziada e seus antigos assentamentos cobertos por florestas. A ausência de estruturas de pedra contribuiu para a falsa ideia de ausência consolidada ao longo dos tempos”, escreveu Neves.

A professora de arqueologia Bruna Rocha durante uma aula: os jovens do curso de capacitação ajudam a identificar possíveis áreas de escavação em suas comunidades. Foto: Alessandro Falco/Sumaúma

A arqueologia tem sido fundamental para mostrar que a Amazônia foi um importante centro de produção agrícola, onde se cultivaram pela primeira vez plantas como cacau e mandioca. As terras pretas – ou terras de maloca –, que começaram a ser produzidas há 5,5 mil anos na região hoje chamada de Rondônia e acabaram disseminadas por toda a bacia amazônica a partir de 2,5 mil anos atrás, são uma prova, ao lado de estruturas como aterros, estradas e montículos descobertos pelos arqueólogos nos últimos anos, de que ali viveram populações sedentárias, que formaram comunidades similares a cidades. Esses povos deixaram para trás seus vestígios e mudaram a paisagem. Hoje, já é consenso entre a melhor ciência que parte da floresta foi plantada pelos ancestrais dos atuais indígenas.

Apoiado em uma mesa de madeira dentro de uma sala na Manelito, Vinícius olha para a tela do computador. Aponta para um desenho colorido, feito por um beiradeiro do Riozinho do Anfrísio, uma comunidade próxima dali onde ele e a equipe do projeto haviam trabalhado na semana anterior. É um mapa ilustrado que mostra, enfileirados, o rio, a casa dos moradores, a área de roça (rica em terra preta) e, logo atrás, um caminho que leva aos castanhais. Um padrão de ocupação observado em outras comunidades por ali – incluindo a Manelito, de Do Carmo. “Tem estudos que mostram que para se ter essa concentração de castanheiras em um mesmo lugar, algo que possa ser chamado de castanhal, isso normalmente se relaciona com a presença humana. São pessoas que mantêm essas áreas, que abrem clareiras para as castanheiras jovens poderem florescer”, explica Bruna. “E a gente vê que o castanhal não atravessa a terra preta [área de morada e de descarte dos antigos indígenas]. Isso faz todo sentido porque ninguém quer uma castanheira em cima da sua casa para os ouriços ou a própria árvore caírem ali”, continua Vinícius.

Na floresta, os não humanos também recontam a história.

As seringueiras da estrada onde Do Carmo ainda trabalha quase todos os dias recriam o passado de ocupações. Ele guia os estudantes por entre as árvores. Ensina os jovens a fazer nas cascas os precisos cortes diagonais que permitem que o látex escorra. É necessário um pouco de força, mas não muita, para que a seringueira não se machuque e crie uma ferida. Ele usa uma espécie de faca fina, um pedaço de madeira com um metal levemente curvo e afiado na ponta. Mas em muitas daquelas árvores que Do Carmo conhece desde criança estão os golpes das machadinhas utilizadas pelos companheiros de seu avô e pelos indígenas que vieram antes deles. Os braços esticados quase não alcançam mais essas fraturas, culpa da passagem do tempo que espichou aqueles troncos. As marcas da história, porém, sempre estarão ali, resistindo a todas as tentativas de apagamento.


Reportagem e texto: Talita Bedinelli
Checagem:
Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Fluxo de edição e estilo:  Viviane Zandonadi
Direção: Eliane Brum

Do Carmo mostra aos estudantes como é feito o corte em uma seringueira para extrair látex. As árvores também guardam as marcas históricas da ocupação. Foto: Alessandro Falco/Sumaúma

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