Em meados do século 20, os Yawanawá viviam como mão de obra explorada em seringais do Acre, no sudoeste da floresta Amazônica. A partir dos anos 1980, uma nova geração de lideranças colocou seu povo no rumo de uma retomada da cultura ancestral. Os Yawanawá reocuparam seu território tradicional, numa luta que culminou, em 2023, na demarcação da Terra Indígena Rio Gregório. Expulsaram dele seringueiros, madeireiros, pecuaristas e missionários evangélicos. Estes, porque se opunham a rituais milenares que os Indígenas recuperaram e que envolvem o consumo da ayahuasca. Bebida preparada com duas plantas amazônicas, a ayahuasca – mais conhecida pelo uso em cultos do Santo Daime – é alucinógena e considerada sagrada pelos Yawanawá.
No percurso, os Yawanawá aprenderam a tirar proveito de suas relações com os não Indígenas. Vendem sementes de urucum a uma fabricante de cosméticos dos EUA e mantêm contratos de licenciamento com marcas de moda brasileiras que lhes rendem um bom dinheiro. Sua principal liderança, Tashka Yawanawá, de 49 anos, fala português e inglês fluentemente e divide um perfil no badalado site de palestras TED com a esposa, Laura, uma Indígena Mixteca-Zapoteca nascida no México – os dois se conheceram nos Estados Unidos, onde estudavam. Os Yawanawá realizam em seu território festivais anuais que atraem dezenas de não Indígenas de todo o mundo interessados em experimentar a vida na floresta, consumir a ayahuasca e mergulhar nos rituais xamânicos e na cosmologia Indígenas.
Tashka Yawanawá, o líder do povo Indígena que Alok diz ter inspirado uma transformação em sua vida: ‘Ele estava em busca de si próprio’
Foi para lá que, no final de 2015, rumou Alok Achkar Peres Petrillo. Àquela altura com 24 anos, Alok já era apontado como o melhor DJ do Brasil por uma revista especializada e estava a meses de emplacar um hit global, Hear Me Now, em parceria com Bruno Martini e Zeeba, que o transformaria no artista brasileiro mais tocado na plataforma de streaming Spotify. “Meu intuito era gravar as canções da tribo e fazer o remix eletrônico [delas]. Eu não imaginava que essa seria a jornada mais incrível da minha vida”, diz o próprio Alok, num documentário registrado por uma equipe de vídeo profissional que o acompanhou na viagem a Rio Gregório. A palavra “tribo“, usada à época por ele, é rejeitada pelos indígenas, que a consideram pejorativa.
A jornada, segundo ele, foi o ponto de partida para o primeiro álbum de uma carreira até então construída a partir de singles (músicas lançadas individualmente). Intitulado O Futuro É Ancestral, o trabalho traz nove faixas que consumiram 500 horas de gravação num estúdio na zona rural de Minas Gerais. Elas misturam a produção pop eletrônica de Alok a cantos tradicionais de Indígenas Guarani Nhandeva, Huni Kuin, Kaingang, Kariri Xokó e Yawanawá, ao hip-hop de Owerá, um Guarani Mbya da periferia de São Paulo, e dos Brô MC’s, formado por jovens Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul, e a uma fala potente da ativista Célia Xakriabá, deputada federal pelo PSOL mineiro.
O álbum foi lançado em 19 de abril passado, Dia dos Povos Indígenas, num evento minuciosamente calculado para não dar a impressão de que Alok busca se promover à custa dos artistas originários. A começar pela data e pelo local – o Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília. A entrevista coletiva à imprensa de todo o Brasil é conduzida pelo jornalista Geraldinho Vieira, que toma o cuidado de dirigir uma pergunta a cada um dos sete Indígenas sentados em torno do famoso DJ antes de abrir o microfone aos repórteres presentes. Vieira, também conhecido como Devam Bhaskar, nome que recebeu do polêmico guru indiano Osho, é um jornalista experiente e respeitado. Trabalhou em grandes veículos de imprensa e, durante anos, dirigiu a premiada Agência de Notícias dos Direitos da Infância, a Andi. Ele é tio de Alok e atualmente comanda, desde a fundação, em 2020, um instituto que leva o nome do DJ e patrocina ações de filantropia no Brasil e na África.
“Eu estava num momento depressivo, buscando inspiração, quando me deparei com os Yawanawá. Foi transformador”, diz Alok, 32 anos, nascido em Goiânia de um casal de DJs de música eletrônica experimental que ele acompanhava em baladas desde que era criança. “Para mim, música era algo para estar na parada de sucessos. Para os Indígenas, era para gerar cura. Foi quase um chamado.” Ele prossegue: “Meu papel [no álbum] é potencializar as vozes Indígenas. É o projeto mais importante da minha carreira, e não é sobre mim”. Alok teve dúvidas sobre colocar seu nome na capa do álbum; cogitou aparecer apenas nos créditos, como produtor. Foi convencido do contrário pelos próprios Indígenas. A assinatura do mais famoso DJ brasileiro, é claro, deverá ajudar a impulsionar o trabalho.
Para os Indígenas do projeto, as falas de Alok soam sinceras e suas atitudes denotam generosidade: ele diz que todo o dinheiro gerado pelos streamings e pelas vendas do álbum irá para os Indígenas que participaram dele. Não que Alok esteja abrindo mão de muita coisa, na verdade: plataformas como o onipresente Spotify remuneram mal os artistas – ter uma música sua tocada no aplicativo rende uma fração de 1 centavo de dólar ao autor. Assim, nomes bem-sucedidos lucram principalmente com os shows que fazem. É o caso do DJ brasileiro.
Por outro lado, é razoável supor que o status de Alok – notadamente no exterior – vai crescer com a associação com os Indígenas. Já começou: rendeu a ele um prêmio no prestigiado Festival de Cannes, na França, em 2023. A comparação com a associação entre o cacique Raoni Metuktire e o roqueiro britânico Sting é tentadora, mas não precisa. À época, Sting já tinha uma carreira respeitada liderando a banda The Police. Em 1989, o baixista e compositor viajou a Altamira, no Pará, para participar do Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, um evento de cinco dias abertamente contestador e que confrontou os planos para a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte – então chamada de Kararaô. Naquele encontro, a guerreira Tuire Kayapó colocou um terçado sobre o rosto do engenheiro José Antônio Muniz Lopes.
A associação aos Indígenas brasileiros confere a Alok a aura de respeitabilidade e de um artista sensível a questões sociais e políticas. Os povos originários são os principais responsáveis por conservar os biomas brasileiros, algo urgente nestes dias em que a emergência climática já deixou claro seu poder de devastar o mundo como o conhecíamos. Parece faltar ao DJ, contudo, compreender como é complexa a causa que abraçou. E que ela tem inimigos poderosos.
Lançamento de O Futuro É Ancestral no Memorial dos Povos Indígenas em Brasília: aqui, Indígenas e Alok ficaram lado a lado no palco. Fotos: Filipe Miranda
A emergência climática é ‘pop’
Um dia antes de o badalado Alok convocar jornalistas ao Memorial dos Povos Indígenas para falar de O Futuro É Ancestral, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia reunido lideranças dos povos originários brasileiros a alguns quilômetros dali, no Ministério da Justiça. Elas esperavam o anúncio da demarcação de seis Terras Indígenas. Lula frustrou-as, demarcando apenas duas.
No recuo do presidente, pesou a influência de latifundiários que plantam soja, cana-de-açúcar, criam bois e vacas para produção de carne e das indústrias de agrotóxicos e produtos ultraprocessados sobre centenas de deputados federais e senadores, ministros do Supremo Tribunal Federal e integrantes do próprio governo Lula. O agro, nome que essa turma deu a si mesma, é um rolo compressor em Brasília. É também o principal responsável pelas exportações do país – ou seja, pela entrada de dólares na economia brasileira. Seu apetite por mais terras é insaciável. Avança indistintamente sobre porções preservadas do Cerrado, da Amazônia, do Pantanal, dos Pampas, da Mata Atlântica. Azar de quem está no caminho – vegetação nativa, mais-que-humanos, Ribeirinhos, Quilombolas, Indígenas, segurança climática.
Como quer muito nos convencer de que também é pop – já é chamado assim pela principal emissora de TV brasileira, a Globo –, o agro ajuda a impulsionar a carreira de artistas que exaltam o modo de vida dos latifundiários da soja e do boi. Alok é uma das estrelas do Circuito Sertanejo, uma turnê itinerante de artistas do estilo que percorre cidades como as paulistas Ribeirão Preto e Barretos e a goiana Caldas Novas.
A entrevista coletiva de O Futuro É Ancestral se aproxima do fim quando SUMAÚMA explica a Alok o tamanho da oposição dos latifundiários à pauta Indígena e questiona se ele teme ser rejeitado – ou mesmo boicotado – pelas plateias do agro. “Vou te falar uma parada: os Brô MC’s tocaram comigo nos maiores rodeios de Mato Grosso e foram aplaudidos de pé. Toda vez que a gente traz essa narrativa, acaba segregando. Você falou sobre o agronegócio ser inimigo dos povos Indígenas. Eu discordo. Todo mundo aqui vive com o agronegócio, se alimenta de produtos do agronegócio familiar, do [agronegócio] de grande escala”, responde. “Se a gente começar a falar sobre inimigos, a gente divide. E o grande ponto é unificar. Se é para reflorestar mentes, vamos falar para quem já está com a mente florestada? Aí a gente não vai fazer a transformação que precisa. Eu tenho a felicidade de poder transitar em múltiplos territórios, é minha grande virtude.”
Ameaçados por cantar a verdade
Os Brô MC’s são Bruno Veron, Clemerson Batista, o Tio Creb, Kelvin Mbarete e Charlie Peixoto. Indígenas Kaiowá e Guarani, eles têm por volta de 30 anos, nasceram e vivem na Reserva Indígena Dourados. Trata-se de uma área de 30 quilômetros quadrados criada há mais de 100 anos para amontoar os povos originários que escaparam da morte quando foram expulsos de seus territórios tradicionais para dar lugar a pastos e monoculturas – atualmente, de milho e soja. Mais de 15 mil Indígenas se espremem nas duas aldeias da reserva (Jaguapiru e Bororó), que na prática é parte da periferia pobre da segunda cidade mais populosa de Mato Grosso do Sul. Indígenas urbanos, os Brô MC’s abraçaram o rap para cantar a realidade que vivem – e em que os seus são mortos quase diariamente. Estão para Dourados como os Racionais MC’s para a cidade de São Paulo.
Tio Creb, Charlie, Kelvin e Bruno, os Brô MC’s, que gravaram com Alok, são alvo de ameaças e racismo em Dourados, cidade onde vivem em Mato Grosso do Sul
Com a crescente superlotação de Jaguapiru e Bororó, os povos originários da região de Dourados, em sua maioria Guarani-Kaiowá, resolveram lutar por seus territórios tradicionais – os Tekoha, como os chamam. “Perto da nossa aldeia tem retomada”, explica Bruno, numa conversa com SUMAÚMA em Brasília. Retomada significa ocupar os territórios que foram Indígenas e se tornaram área privada de plantadores de soja, criadores de gado. É claro que há reação. “Os líderes das retomadas são mortos. As casas deles são queimadas”, diz Kelvin.
Um levantamento do Instituto Socioambiental, o ISA, publicado em 2021, dá conta de que nada menos que 77% dos conflitos fundiários registrados no estado entre 2005 e 2019 ocorreram em áreas de retomada de territórios tradicionais por Indígenas. Em poucas regiões do Brasil morrem tantos Indígenas quanto em Mato Grosso do Sul: 39% dos assassinatos de Indígenas cometidos no Brasil entre 2003 e 2019 ocorreram no estado, assim como 64% dos suicídios de Indígenas registrados entre 2000 e 2019. Segundo o documentário Guarani e Kaiowá: pelo Direito de Viver no Tekoha, da Organização das Nações Unidas, houve 450 homicídios e 700 suicídios de Indígenas no Mato Grosso do Sul entre 2001 e 2016.
Em 2021, diz o ISA, Mato Grosso do Sul tinha a maior população em Terras Indígenas fora da Amazônia (cerca de 85 mil pessoas) e grandes propriedades rurais, com mais de mil hectares cada uma, ocupando 83% da área do estado. Muitos Indígenas vivem, na prática, como sem-terra, acampados em barracas de lona, nas margens de rodovias, espremidos nos poucos metros que separam o asfalto das cercas de arame farpado das imensas fazendas do agro. São mortos, ameaçados, agredidos por reivindicarem a posse de menos de 2% do território de Mato Grosso do Sul. Quase nada, num estado que já foi todo ele de domínio Indígena, mas muito, coisa demais, inaceitável, para o agro, que quer avançar sobre todo metro quadrado disponível. Uma das principais lideranças da região, Norivaldo Guarani-Kaiowá, vive com uma bala de revólver alojada no coração.
Bruno e Clemerson são netos de outra grande liderança Guarani-Kaiowá, o cacique Marcos Veron, assassinado com cerca de 75 anos, em 2003, após liderar a retomada de uma fazenda de gado. Ele foi espancado por capangas e em seguida largado para morrer, inconsciente, na beira de uma rodovia. O desprezo pelos Indígenas é tão grande no estado que o júri popular que analisou o caso inocentou os três acusados do crime de homicídio em 2011. Condenados apenas por tortura e sequestro, receberam sentença de 12,3 anos de prisão. A primeira condenação pelo assassinato de Indígenas que lutam nas retomadas, em Mato Grosso do Sul, só viria em 2023.
Primeiro grupo de rap Indígena do Brasil, os Brô MC’s surgiram em 2009, e só ganharam notoriedade com um público mais amplo ao se apresentarem no festival Rock In Rio em 2022. Em sua cidade natal, Dourados, só fizeram dois shows até hoje. Em ambos, houve relatos de ameaças aos músicos. Uma de suas canções, que afirma que Mato Grosso do Sul “é feito com cadáveres do povo Guarani-Kaiowá”, foi vetada em um evento organizado pelo governo do estado. Anos antes de conhecerem Alok, eles trabalharam como operários diaristas na montagem da estrutura de um festival em que o famoso DJ iria se apresentar em Dourados. Na hora do show, tentaram espiar, mas foram expulsos pelos produtores do evento – “Ninguém quer ver vocês aqui”, contam.
“Quando ele nos chamou e fomos gravar com ele, isso estava atravessado na gente. Não nos queria por perto e daí nos convida para gravar? Ele ficou muito mal quando contamos”, relata Tio Creb. A ordem não teria partido da produção de Alok, mas da organização local do evento. Os Brô MC’s veem sinceridade nos propósitos de Alok. Além disso, a chancela do famoso DJ aumentou a notoriedade do grupo em sua terra natal.
Em O Futuro É Ancestral, os Brô MC’s cantam JAHARA. O rap de Bruno, Tio Creb, Kelvin e Charlie é quase todo em Guarani. Quando a canção se aproxima do final, vem um recado em português: “A gente grita e ninguém nos ouve/Aprendi a sua língua/Não Indígena, essa é pra você, ó/Quando tristeza e pobreza andam lado a lado dentro de um barraco caindo aos pedaços/Passando fome, sem gás/Bebendo só água suja/Com a roupinha furada/E seu cachorro do lado/Debaixo de pau/Mantendo a gente isolado”.
Promovida pelo Sindicato Rural de Dourados, a entidade de classe dos latifundiários da cidade, a 58ª edição da Expoagro começou em 10 de maio passado. Alok fez um dos shows da abertura do evento.
‘Ele se entregou para a floresta’
Tal qual os Brô MC’s, os demais Indígenas que participaram de O Futuro É Ancestral com quem SUMAÚMA conversou não têm dúvidas sobre a sinceridade de Alok. Até mesmo dentro do movimento Indígena é difícil achar quem o critique. Sabe-se que o escritor Ailton Krenak, que usa a expressão “Futuro Ancestral” como título de um de seus livros, preferiu não se envolver no projeto, e que a Hutukara Associação Yanomami foi procurada, mas o xamã Davi Kopenawa nem sequer sabia quem é o DJ. Por outro lado, nenhuma porta foi fechada para eventuais colaborações no futuro.
Do camarim, Indígena observa Alok no alto da pirâmide: quando chamados, os povos originários cantaram de um palco muitos metros abaixo
“Alok estava em busca de si próprio. E a gente estava em nosso lugar”, nos disse Tashka Yawanawá. A principal liderança dos Yawanawá foi a Brasília participar da entrevista coletiva e, no dia seguinte, 20 de abril, da primeira apresentação das canções do álbum no Brasil, num show que comemorou o aniversário de 64 anos da capital federal.
“Fiquei admirado de ter ido até lá”, afirmou Matsini Yawanawá, cacique da Aldeia Mutum que recepcionou Alok na Terra Indígena Rio Gregório em 2015. “Já o conhecia de nome. Naquela primeira noite, fizemos uma cerimônia [xamânica, com ayahuasca] e ele passou por um processo muito forte. Se emocionou, chorou muito. Ele se entregou para a floresta, participou de todos os rituais que estávamos fazendo. E aí passou a nos perguntar sobre as músicas. Eu respondi: essa aqui tem mais de 500 anos. É passada de geração em geração.”
Mapu Huni Kuin ficou famoso por participar, em 2023, da novela Terra e Paixão na TV Globo. Tinha 34 anos. Para seu povo, os Huni Kuin, do Acre, ele é uma figura central desde antes de nascer. “Quando a minha mãe engravidou, o meu avô me escolheu como líder espiritual. A gente não escolhe isso, é escolhido”, explicou. Mapu contou ter viajado pelo Brasil e por 17 países difundindo a medicina sagrada – os Huni Kuin também usam a ayahuasca em seus rituais –, que enxerga como “a cura para a humanidade”. Estava no Líbano quando Alok o convidou para participar do álbum após vê-lo, na internet, cantando ao violão durante um ritual xamânico.
Em O Futuro É Ancestral, Mapu canta Yube Mana Ibubu, uma preciosidade pop de pouco mais de dois minutos que sua voz potente e um refrão instrumental grudento e assobiável transformam em potencial candidata a hit. “Ele está sendo uma plataforma importante de uma luta, de um movimento dos nossos ancestrais, para levar nossa voz ao mundo, para falarmos ao mundo”, disse Mapu a respeito de Alok. Nascido na Terra Indígena Kaxinawa/Ashaninka do Rio Breu, na fronteira com o Peru, o líder espiritual dos Huni Kuin atualmente vive num local chamado Centro Huwã Karu Yuxibu. Trata-se de uma área de preservação ambiental próxima à capital, Rio Branco, que serve como morada para Indígenas que viviam fora de aldeias. O local é privado – Mapu comprou-o com o dinheiro que recebe nos rituais xamânicos com os quais percorre o mundo.
Mapu Huni Kuin, liderança espiritual de seu povo no Acre, é estrela de novela da Globo e voz da canção que pode ser o hit de O Futuro É Ancestral
O Instituto Alok foi fundado em 2020 com um orçamento de 38 milhões reais – parte dele oriunda de um cachê que o DJ recebeu por participar de um videogame on-line – e bancou obras como as da construção de uma cozinha, um salão de refeições e banheiros no Centro Huwã Karu Yuxibu. À aldeia Mutum, dos Yawanawá, o Instituto conseguiu que uma revendedora de tratores, que é fornecedora do agronegócio, doasse equipamentos agrícolas. Aqui, o ecumenismo ideológico de Alok rendeu frutos. O Instituto também apoia a construção de um estúdio de gravação para os Brô MC’s na Reserva Indígena Dourados.
No alto e na base da pirâmide
Minutos após as 22 horas de sábado, 20 de abril, o público de estimadas 500 mil pessoas delira quando Alok começa a caminhar até uma imensa pirâmide montada na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. O percurso do DJ superstar até seu lugar no topo da pirâmide é exibido em imensos painéis de LED que ocupam as quatro faces da estrutura de 25 metros de altura. No camarim reservado aos artistas Indígenas, Mapu Huni Kuin, Gwyrapadju Guarani Nhandeva e Everton Guarani Nhandeva mal percebem que o show está para começar. Os três dançam ao som de Yube Mana Ibubu, que jorra de uma pequena caixa de som portátil.
Everton, mais conhecido como Cacique Lalau, é a principal liderança da Terra Indígena Yvyporã Laranjinha, no norte do Paraná. Ali, estimados 300 Indígenas vivem numa área de 10 quilômetros quadrados, já pequena para que os Guarani Nhandeva possam viver de acordo com sua cultura tradicional. Por isso, parte do grupo retomou em 2005 um antigo território tradicional próximo dali, a Aldeia Posto Velho. “Nossos avós viviam lá, mas saíram por causa de uma pandemia de febre [amarela, em 1918] com a promessa de que voltaríamos assim que ela passasse. Nunca aconteceu”, explica Lalau. No processo de retomada, os Indígenas enfrentam a oposição do agronegócio de Santa Amélia, município paranaense onde se cultiva – para variar – soja. A principal rua da pequena cidade homenageia a família Pavan, que iniciou a colonização da região e expulsou seus moradores originais, os Guarani Nhandeva.
Gwyrapadju Guarani Nhandeva ajuda a pintar o rosto do Cacique Lalau Guarani Nhandeva: eles lutam contra o agronegócio por um território em que possam viver conforme as tradições
Lalau fez parte de um grupo de algumas dezenas de Indígenas que foram a Brasília, em junho de 2021, para lutar contra o que era então apenas o projeto de lei do marco temporal para a demarcação de Terras Indígenas, proposto e defendido pelo agro. O protesto do grupo ocupou o teto do Congresso Nacional. “O guerreiro Kretã [Kaingang, uma das principais lideranças Indígenas do sul do Brasil] fez então uma fala muito forte, que o DJ Alok repercutiu [nas redes sociais].” Logo depois, surgiu o convite para participarem do disco.
Ao contrário de Mapu Huni Kuin ou dos Brô MC’s, os Guarani Nhandeva e os Kaingang que estão em Brasília nunca subiram a um palco para se apresentar como artistas. O nervosismo deles é palpável à medida que se aproxima a hora de serem chamados. Já é madrugada de 21 de abril quando Alok anuncia O Futuro É Ancestral e convida os Indígenas para ocuparem a base da pirâmide. Representantes de sete povos se revezam ao microfone, com o DJ fornecendo as bases das canções. Os Yawanawá, o rapper Owerá e Célia Xakriabá, os Brô MC’s, os Kaingang liderados por Kretã e os Guarani Nhandeva do Cacique Lalau se sucedem em versões encurtadas das faixas do álbum. Os Kariri Xokó encerram a apresentação, que dura exatos quinze minutos.
“Não dá pra olhar pro público, senão trava”, conta depois Lalau. “Mas queremos repetir. Quando Alok for tocar perto de nós, quem sabe fazer nosso canto inteiro.” A empolgação transborda para o camarim dos Indígenas, que seguem cantando e dançando, de mãos dadas. Quando a adrenalina começa a baixar, Kaingang e Guarani Nhandeva alcançam um violão e passam a entoar suas canções tradicionais. Foi curto, mas os Indígenas deram seu recado a 500 mil pessoas e agora celebram juntos, felizes.
São quase 2 da madrugada quando uma van deixa um grupo que inclui Kretã Kaingang e o Cacique Lalau numa praça na região central de Brasília. Ali, eles vão dormir em barracas e, a partir da segunda-feira, participar do Acampamento Terra Livre, marcha anual dos Indígenas à capital. Será uma semana intensa e de muitas más notícias.
No domingo pela manhã, Alok já está viajando para Ribeirão Preto. Na capital do agronegócio paulista, vai exibir sua fábrica de hits no Circuito Sertanejo. Dias depois, ele participaria de uma live com o governador do Pará, Helder Barbalho, do MDB, um político que tenta vender a imagem de defensor da Amazônia enquanto apoia o garimpo, a mineração e a exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas – todas atividades potencialmente danosas à sobrevivência dos Indígenas. Numa conversa aparentemente ensaiada e devidamente filmada, o DJ aceitou o convite de Barbalho para ser embaixador da próxima Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP-30. “Tá na hora de a gente contar a história real de como [a Amazônia] realmente é”, diz Alok. Mas, para isso, será preciso entender que o direito dos Indígenas e a conservação da floresta sempre foram inconciliáveis com a cobiça dos latifundiários.
Reportagem e texto: Rafael Moro Martins
Edição: Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Chefa de reportagem: Malu Delgado
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum