Jornalismo do centro do mundo

Com maracá na mão, Indígena Xukuru se senta na escadaria da Câmara dos Deputados, em Brasília, após marcha que partiu do Acampamento Terra Livre

O som de centenas de maracás sacudidos por Indígenas na Praça dos Três Poderes se multiplica ao ecoar nas vidraças do Palácio do Planalto. A sede da Presidência da República está a menos de 50 metros dos manifestantes, mas uma grade e dezenas de policiais militares impedem que eles se aproximem do prédio. Uma das janelas, no 1º andar, tem as cortinas baixadas. Ali, no final da tarde de quinta-feira, 25 de abril, tem lugar uma reunião entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e 40 lideranças dos povos originários brasileiros. As portas também estão fechadas, e jornalistas foram proibidos de entrar.

É um cenário muito diferente daquele de um ano atrás. Em 2023, o presidente participou do encerramento do Acampamento Terra Livre, o ATL, e assinou a demarcação de seis Terras Indígenas. Ainda que as lideranças e os milhares de presentes esperassem 14, Lula foi muito aplaudido e teve o nome gritado. Em 2024, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib, não o convidou para subir ao palco de seu evento anual em Brasília. Insatisfeita com o lento avanço das demarcações, cobrou do presidente que ele recebesse uma comitiva de lideranças Indígenas no Palácio do Planalto. A ideia era forçar o petista a se movimentar para anunciar avanços numa solenidade de tons políticos e festivos. Mas, sem nada consistente a entregar, Lula preferiu um encontro reservado, longe das câmeras e dos microfones da imprensa – e, mais importante, dos olhos, ouvidos e bocas dos mais de 8 mil Indígenas que viajaram à capital.

A edição de 20 anos do Acampamento Terra Livre, encerrada na última sexta-feira, 26 de abril, foi marcada por extremos. Por um lado, nunca a marcha anual dos povos originários a Brasília foi tão numerosa nem reuniu representantes de tantos povos diferentes – mais de 200, dos 305 existentes no Brasil, segundo a Apib. O ATL transformou um amplo terreno gramado próximo à Esplanada dos Ministérios na aldeia temporária de mais de 8 mil Indígenas – mais gente do que a população de 2 mil municípios brasileiros. Ali, Indígenas debateram políticas públicas, expuseram ataques e violência contra seus territórios, cobraram autoridades, cantaram, dançaram e exibiram um pouco da pujante diversidade de línguas e culturas que o Brasil insiste em ignorar.

Over 200 out of the 305 peoples attended to the annual march, according to the Alliance of Indigenous Peoples of Brazil

Por outro lado, os Indígenas saíram da capital frustrados e irritados com a lentidão do governo Lula em fazer avançar a pauta mais importante. A demarcação dos territórios tradicionais é uma obrigação imposta pela Constituição de 1988 que deveria ter sido concluída em 1993. Uma insatisfação sintetizada numa frase dita por Kleber Karipuna, coordenador-executivo da Apib, sobre o caminhão de som que liderava a marcha rumo à Praça dos Três Poderes: “Lula, só criar um Ministério dos Povos Indígenas não resolve nada”.

Pior ainda, perceberam que talvez venham a perder uma batalha considerada já vencida no Supremo Tribunal Federal: a do marco temporal, uma tese segundo a qual os Indígenas só podem reivindicar a demarcação das terras que já ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, dia em que a Constituição foi promulgada. Isso impede que os povos originários tenham direito aos territórios dos quais foram expulsos, na maioria dos casos pela violência, entre a invasão pelos portugueses do território que viria a ser chamado de Brasil, em 1500, e o ano de 1988. O próprio Supremo já julgou que o marco temporal afronta a Constituição. Mas, na segunda-feira, 22 de abril, Dia da Mãe Terra e da abertura do ATL, uma decisão individual do ministro Gilmar Mendes recolocou a questão sobre a mesa. Junto a outra ameaça: a mineração em Terras Indígenas.

A eleição de Lula e a criação do Ministério dos Povos Indígenas, o MPI, acenderam a esperança de que eles, enfim, teriam suas demandas tratadas com o devido respeito em Brasília. O MPI fez bem à imagem pública do presidente – principalmente no exterior. Mas ainda precisa ser muito fortalecido para fazer diferença para as populações originárias que há séculos lutam por justiça. Mesmo com estrutura frágil e quase nenhum dinheiro, a mera existência do MPI acirrou os ânimos dos inimigos dos Indígenas, representados no Congresso Nacional pela poderosíssima Frente Parlamentar da Agropecuária, lobista de interesses como os de fabricantes de agrotóxicos e de produtos ultraprocessados, latifundiários exportadores de soja, milho e algodão e criadores de bois e vacas para produção de carne.

No plenário da Câmara, mulher Indígena explica que demarcações conservam florestas um dia após Gilmar Mendes ameaçar com a volta do marco temporal

Trata-se de gente que também comanda ministérios no governo Lula e tem acesso facilitado à maioria dos gabinetes de ministros do Supremo. Diante da força dos inimigos, os Indígenas parecem estar num impasse: está ruim com Lula e no governo, mas seria bem pior fora dele – sem contar a ameaça do retorno da extrema direita nas eleições de 2026, que tomou o espaço e o eleitorado da velha direita brasileira. É difícil imaginar que a pauta Indígena possa de fato avançar sem o apoio e o envolvimento da parcela da sociedade brasileira que se importa com a emergência climática e a necessidade urgente de conservar o que ainda resta dos biomas naturais brasileiros.

Para entender o impasse dos Indígenas com Lula e o provável retrocesso em seus direitos que o Supremo dá sinais de estar preparando, é necessário recuar alguns dias no tempo.

18 de abril de 2024, Ministério da Justiça

Fazia muito calor naquele naquele fim de tarde no Salão Negro, um espaço amplo, com piso de mármore escuro e reservado a grandes eventos no prédio do Ministério da Justiça. Era o ato de encerramento da primeira reunião do Conselho Nacional de Política Indigenista, extinto por Bolsonaro em 2019 e recriado por Lula em 2023.

A irritação das dezenas de Indígenas que lotavam o salão era palpável e foi expressada já no anúncio das autoridades – Lula e os ministros Sonia Guajajara (Povos Indígenas), Rui Costa (Casa Civil), Ricardo Lewandowski (Justiça), Paulo Teixeira (Desenvolvimento Agrário), Paulo Pimenta (Secretaria de Comunicação Social) e Jorge Messias (Advocacia-Geral da União), além da presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai, Joenia Wapichana. Só os nomes das duas Indígenas foram aplaudidos.

A razão era mais um recuo nas demarcações. A Apib esperava que Lula homologasse – isto é, assinasse o documento de conclusão dos processos demarcatórios – seis terras. Elas fazem parte de um lote de 14 territórios cujos procedimentos aguardavam apenas a assinatura presidencial já em 1o de janeiro de 2023. Lula havia se comprometido a despachá-los nos 100 primeiros dias de seu terceiro mandato. Mas, em 2023, firmou apenas oito. Restaram seis.

Poucas horas antes, coordenadores da Apib souberam que apenas duas seriam homologadas naquela tarde: Aldeia Velha, do povo Pataxó, na Bahia, e Cacique Fontoura, dos Iny Karajá, em Mato Grosso. “Eu sei que vocês estão com uma certa apreensão, porque imaginavam que teriam a notícia de seis Terras Indígenas assinadas por mim”, admitiu Lula. “E nós decidimos assinar só duas.” Em seguida, tentou se justificar. “Fiz isso porque nós temos um problema. Temos algumas terras que estão ocupadas, algumas por fazendeiros. Outras, por gente comum, possivelmente tão pobre quanto nós. Tem uma que tem 800 pessoas não Indígenas ocupando. Alguns governadores pediram tempo para saber como é que a gente vai retirar essas pessoas. E vamos dar esse tempo.”

Lula e Sonia Guajajara durante a solenidade no Ministério da Justiça. Foto: Gabriela Biló/Folhapress

Não convenceu. Inconformados, dois Indígenas que assistiam à solenidade dirigiram protestos ao ministro da Casa Civil, único a permanecer sentado ao receber um selo criado pela Funai para certificar produtos de Terras Indígenas. “Levanta, Rui Costa!”, gritaram. E o político, sorrindo constrangido, obedeceu.

A postura de Costa foi considerada desrespeitosa, explicou depois o cacique Ednaldo Tabajara, que luta desde 2006 pela demarcação da terra de seu povo na Paraíba. “É um grito que está em nossa garganta há mais de 500 anos. A oportunidade de demarcar Terras Indígenas é agora, e a fala de Lula foi muito grave. Está na Constituição: Terra Indígena não se dá, não se vende e não se troca. Não se pode negociar.”

Assim que o evento se encerrou, os coordenadores-executivos da Apib se dirigiram à sede da entidade, na região central de Brasília, para uma reunião de emergência. “Se tem interferência dos governadores, nós nos preocupamos. Estamos encontrando mais uma barreira, a barreira política, dos governadores, para demarcação dos territórios. É um desrespeito à luta dos povos Indígenas e ao nosso texto constitucional”, disse o advogado Indígena Dinamam Tuxá, que é coordenador-executivo da Apib e representa os povos originários do Nordeste, transparecendo irritação no tom de voz elevado e na gesticulação agitada.

Segunda-feira, 22 de abril de 2024, Acampamento Terra Livre

“Prefiro um inimigo que não me dê tapas nas costas do que [sic] um que dê mas não faça nada por mim”, dispara Kretã Kaingang a uma plateia de poucos jornalistas numa das tendas do ATL. Coordenador-executivo da Apib em nome dos povos originários do sul do país, Kretã é um homem baixo, pesado, e traz no rosto uma expressão sempre severa. Não à toa – uma de suas filhas, Angélica, que o acompanhava em marchas e acampamentos lutando pelas demarcações, morreu de causas não divulgadas em fevereiro passado. Tinha 14 anos.

“Nada nos foi dado pelo governo. É fruto dos ATLs, das nossas lutas. Na luta pela terra, 70% dos que estão debaixo de uma lona são crianças. Elas estão na linha de frente”, Kretã prossegue. Como a de muitos Indígenas, a vida dele é marcada por sucessivas tragédias familiares. Seu pai, Ângelo Kretã, foi o primeiro Indígena a se eleger vereador no Brasil, em Mangueirinha, cidade construída sobre terras tradicionais dos Kaingang e dos Guarani. Morreu em 1980, em um acidente de carro numa estrada rural da aldeia em que morava, causado por uma emboscada que madeireiros lhe haviam preparado. O assassinato de Ângelo causou tal comoção que foi parar no Globo Repórter.

Guerreiras do povo Xikrin do Catete levaram suas crianças a Brasília para lutar por um futuro digno

Kretã está indignado com o novo atraso na homologação de duas Terras Indígenas do sul do país: Morro dos Cavalos e Toldo Imbu, ambas em Santa Catarina. “Queremos essas demarcações, porque é um estado racista, fascista, contrário aos povos Indígenas. É questão de honra. Enquanto não homologarem as duas, não vamos sossegar. Vamos construir uma programação para não deixar o governo dormir.”

A irritação não é só dele. Num gesto inédito, a Apib antecipou a divulgação de sua carta de reivindicações para o primeiro dia do ATL. Intitulado “Vinte anos de Acampamento Terra Livre e a Urgência da Ação”, o documento foi uma resposta às falas de Lula na semana anterior. “Em recente declaração do presidente Lula, foi mencionado que os governadores precisam de ‘um tempo’ para negociar sobre as demarcações. Mas e o nosso tempo, os tempos dos povos Indígenas? Nosso tempo é agora, urgente e inadiável. Enquanto se discutem marcos temporais e se concede mais tempo aos políticos, nossas terras e territórios continuam sob ameaça, nossas vidas e culturas em risco e nossas comunidades em constante luta pela sobrevivência.” Também nomeou quem os Indígenas veem como seu grande adversário no Palácio do Planalto. “Já estamos no segundo ano de governo, e as suas promessas sobre demarcações continuam pendentes. Rui Costa, ministro-chefe da Casa Civil, segue ‘mandando’ sobre as homologações de Terras Indígenas, e não podemos admitir essa situação.”

Naquela noite, contudo, o ataque não viria de Rui Costa ou do Palácio do Planalto, mas de outro prédio da Praça dos Três Poderes.

‘Prefiro um inimigo que não me dê tapas nas costas do que um que dê mas não faça nada por mim’, diz Kretã Kaingang

Mineração e marco temporal, juntos e misturados

Numa decisão assinada na noite de 22 de abril, o ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal, suspendeu três ações que pediam a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023. Trata-se do texto com que o Congresso Nacional, entre outras agressões aos direitos dos Indígenas, estabeleceu um marco temporal para as demarcações mesmo após o Supremo considerar que a tese viola a Constituição.

O ministro admitiu que “aparentemente, diversos de seus dispositivos [da Lei 14.701] podem ser lidos em sentido contrário ao entendimento a que chegou o Plenário desta Corte [no julgamento sobre o marco temporal]”. Ainda assim, não a suspendeu. Pior que isso: juntou sua decisão a um outro processo em que o Progressistas pede ao Supremo que interprete um trecho da Constituição que pode autorizar a mineração em Terras Indígenas. O Progressistas é o partido de políticos como o presidente da Câmara, o alagoano Arthur Lira, e o líder da bancada ruralista, o paranaense Pedro Lupion.

Trata-se do sexto parágrafo do Artigo 231, que regula as Terras Indígenas. Ele diz o seguinte: “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar”. Ocorre que essa lei nunca foi produzida. Por isso, o Progressistas quer que o Supremo regulamente provisoriamente o que é “relevante interesse público da União”.

Na prática, o ministro enfiou o tema da mineração em Terras Indígenas na discussão do marco temporal. E determinou, ainda, a criação de uma espécie de câmara de conciliação em que representantes do governo federal, do Poder Legislativo, dos Indígenas e de entidades do agronegócio devem negociar um acordo sobre os dois temas.

Indígenas protestam contra marco temporal e mineração, temas unidos pela decisão de Gilmar Mendes

A decisão foi considerada “trágica” por advogados dos Indígenas. “Ela sugere a regulamentação de exploração mineral e de recursos hídricos [nos territórios Indígenas]”, afirma a advogada e jurista Deborah Duprat, que foi vice-procuradora-geral da República e defende os povos originários em processos no Supremo. Com isso, abriu-se a possibilidade de que uma atividade de alto impacto ambiental e causadora de tragédias como as de Mariana e Brumadinho invada os territórios dos povos originários.

Coordenador jurídico da Apib, o advogado Mauricio Terena aponta a contaminação entre política e Justiça. “A ação do Progressistas não trata do marco temporal. A conexão [entre os dois temas] não existe. Esse é um julgamento político travestido em teses jurídicas. Percebemos que Gilmar Mendes, em especial, tem se reunido sistematicamente com a bancada parlamentar da agricultura aqui e, em especial, no exterior.”

Mauricio prossegue: “Nosso desafio é entender o que está acontecendo. Os Indígenas não almoçam com ministros do Supremo. E por vezes as decisões parecem ser tomadas num almoço desses. A gente já começa a negociação em desvantagem. Não tem paridade”.

Da Praça dos Três Poderes, Indígenas observam o Palácio do Planalto, onde Lula recebia lideranças a portas fechadas

Quando conseguiram ter acesso aos ministros, os Indígenas receberam sinais preocupantes. No início da noite de terça-feira, 23, o presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, se reuniu com o coordenador jurídico da Apib e uma comitiva de lideranças. “Barroso sinalizou para o movimento Indígena que o Supremo não vai mais entrar em disputa com o Congresso em pautas de minorias”, diz Mauricio.

A jornalistas, o advogado relatou ter havido um embate verbal entre ele e Barroso, no qual o ministro lhe disse que o Supremo não declarou a Lei 14.701 inconstitucional porque ela não existia na época do julgamento. SUMAÚMA enviou uma pergunta ao ministro acerca do caso. Na resposta, encaminhada pela assessoria do tribunal, Barroso respondeu que a decisão de setembro de 2023 sobre o marco temporal não foi tomada em julgamento “com entendimento abstrato e geral”. E continuou: “Isso só será feito no julgamento das ADIs [ações direta de inconstitucionalidade] sobre o marco temporal”. Para Mauricio, a conclusão é óbvia: “Pelo que estou entendendo, o STF pode desdizer o que já disse”.

A Apib vem tentando “insistentemente” – e, ao menos até o fechamento desta reportagem, sem sucesso – uma audiência com o ministro Edson Fachin, relator da ação que considerou que o marco temporal fere a Constituição. Ele e Barroso são considerados aliados das pautas Indígenas na Corte.

Um dia antes do início do ATL, a Folha de S.Paulo informou que o governo Lula quer forçar mineradoras a de fato explorarem as lavras que detêm. “O diagnóstico é que há milhares de minas paradas pelo país e que a medida em análise poderia movimentar um volume de recursos na economia nacional comparável aos investimentos anuais da Petrobras”, diz a reportagem. Em 15 de abril, Lula, Ricardo Lewandowski e Jorge Messias, além dos ministros do Supremo Flávio Dino, Cristiano Zanin – ambos indicados por Lula – e Alexandre de Moraes jantaram na casa de Gilmar Mendes. Dias depois, Zanin recebeu Indígenas em seu gabinete. Ele ouviu em silêncio os argumentos sobre a inconstitucionalidade do marco temporal. Quando abriu a boca, perguntou a opinião dos Indígenas sobre a mineração em seus territórios.

A decisão de Gilmar Mendes ainda precisa ser ratificada pelos demais dez ministros do Supremo. Isso deve ser realizado no plenário virtual, em que eles depositam seus votos por escrito. Mas a Apib tenta convencer algum dos ministros a levar o caso para o plenário da Corte – cujas sessões são públicas, com plateia e transmitidas pela TV Justiça. “A sociedade precisa assistir aos argumentos dos ministros”, cobra Mauricio Terena.

“Amanhecemos com um ministro do Supremo confirmando a continuidade da morte do povo Indígena”, dirá no dia seguinte, terça, 23 de abril, Alberto Terena, coordenador-executivo da Apib pelo Conselho do Povo Terena, de Mato Grosso do Sul. Ele fala no Salão Verde da Câmara dos Deputados, onde está para começar uma sessão solene em homenagem aos Povos Indígenas. Há poucos jornalistas para ouvi-lo – a maioria dos repórteres que cobrem a Câmara está a quilômetros dali, na residência oficial de Arthur Lira, onde os líderes partidários estão reunidos para decidir a pauta de votações da semana e a possível instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito destinadas a criar embaraços ao governo Lula.

Alberto prossegue mesmo assim: “O marco temporal, a Lei 14.701, é a morte do nosso povo”. Eleva então o tom de voz, suplicando: “Se vocês forem [ao ATL] vão ver que nós temos que trazer nossas crianças [a Brasília] para gritar ao mundo que o nosso direito de existência está sendo ameaçado. Congresso, Executivo, Supremo: façam cumprir a lei maior do nosso país”.

SUMAÚMA enviou, pela assessoria de imprensa do Supremo, um pedido a Gilmar Mendes para que comentasse as críticas dos Indígenas à sua decisão. Não houve resposta.

‘A lei do marco temporal é a morte do nosso povo’, diz Alberto Terena

Quinta-feira, 25 de abril, Palácio do Planalto

Após o fim das duas horas de reunião, Sonia Guajajara e Joenia Wapichana, da Funai, desceram para falar com jornalistas. Estavam acompanhadas de Márcio Macêdo, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência. Tendo a seu lado Dinamam Tuxá, Kleber Karipuna e Kretã Kaingang, da Apib, Macêdo disse que Lula se comprometeu a criar uma força-tarefa para, em duas semanas, resolver problemas “jurídicos e políticos” que travam as demarcações.

Pareceu uma solução improvisada. Questionado por SUMAÚMA sobre por que o governo levou um ano e meio para tomar a atitude – a situação das terras cuja demarcação ainda não foi homologada é conhecida desde o governo de transição, em fins de 2022 –, Macêdo simplesmente não respondeu. Em vez disso, passou a palavra a Sonia Guajajara.

As lideranças Indígenas deram mais um voto de confiança ao governo. Mas deixaram claro, a Lula, que a paciência está no fim. No encontro a portas fechadas, dez lideranças Indígenas falaram, fazendo cobranças duras e críticas a Lula e seu governo – inclusive pela inação no combate à pauta anti-Indígena tocada pelo Congresso Nacional. “Ele ouviu e sentiu as falas, que foram duras, fortes, de todas as lideranças”, diz Dinamam. “O único ente responsável por demarcar terras é o governo federal. Não é preciso conversar com governadores ou parlamentares. A Constituição é clara. Nós ajudamos a eleger este governo e estamos junto dele. Mas isso não quer dizer que não deixaremos de cobrar”, declara Kleber.

Lula y Sonia Guajajara al inicio de la reunión con líderes Indígenas en el Palacio de Planalto

Dois dias antes, na terça-feira, 23 de abril, falando a (poucos) jornalistas na Câmara dos Deputados, Sonia Guajajara resumiu a situação em que se encontram seus parentes. “Nós sabemos que aqui, no Congresso Nacional, temos pouquíssimos aliados. Em um ano e quatro meses, conseguimos homologar dez territórios. É pouco? É. Mas não pensem que é uma conquista pequena. Porque, se dependesse da decisão e da vontade do Estado brasileiro, nem essas teriam saído.”

Ao fim do ATL, a Apib publicou uma “declaração urgente” dirigida aos três poderes da República. Intitulada “Terra, tempo e luta”, ela deixa clara a insatisfação crescente entre os Indígenas. “A decisão deliberada dos poderes do Estado de suspender a demarcação das Terras Indígenas e de aplicar a Lei 14.701 (Lei do Genocídio Indígena) equivale a uma DECLARAÇÃO DE GUERRA [escrita assim, em letras maiúsculas, no original] contra nossos povos e territórios. Isso representa uma quebra no pacto estabelecido entre o Estado brasileiro e nossos povos desde a promulgação da Constituição de 1988, que reconheceu exclusivamente nossos direitos originários”, afirma o documento.

O documento também traz um recado aos não Indígenas – de políticos em seus gabinetes em Brasília a banqueiros na Faria Lima, plantadores de soja e criadores de gado no Cerrado e na Amazônia – que insistem em ignorar a emergência climática e a necessidade de conservação de rios e florestas. E que também pode ser lido como um recado a Lula e ao governo. “Nos preocupa a covardia de quem tenta dominar o tempo indomável e busca lucrar com as nossas mortes. Nessa declaração, afirmamos: NÃO HÁ MAIS TEMPO PARA VOCÊS!”


A vida nas quatro terras que Lula não demarcou

O cacique Valdecir Kaingang é o líder da Terra Indígena Toldo Imbu, uma das duas localizadas em Santa Catarina que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou de homologar. Os Kaingang foram expulsos daquela área por colonos italianos que chegaram ao município de Abelardo Luz em 1944. Eles se refugiaram numa área próxima e em 1998 começaram o processo de retomada, insatisfeitos com a demora nos estudos para demarcação iniciados 12 anos antes. Atualmente, 80 famílias Kaingang vivem em uma pequena área de 9 hectares cedida pela prefeitura.

A demarcação significará a retirada dos 37 posseiros que produzem soja e milho em propriedades relativamente pequenas sobrepostas à Terra Indígena – a maior delas, segundo Valdecir, tem 600 hectares. Desde 2007, o processo de demarcação da Toldo Imbu está pronto, faltando apenas a assinatura presidencial. Por isso, Valdecir chegou a Brasília esperançoso. “Vim avisado de que seria homologada. Mas aí, um pouco antes do evento [de 18 de abril, no Ministério da Justiça] veio a notícia de que não sairia. Me revoltei. Nem fiquei para ouvir Lula falar”, conta.

Os caciques Valdecir Kaingang e Anibal Potiguara foram a Brasília, mas a homologação de suas terras ficou na promessa

O cacique Aníbal Potiguara também embarcou para Brasília com a notícia de que veria o presidente assinar a homologação da Terra Indígena Potiguara de Monte-Mor, na Paraíba. Os colonizadores portugueses escravizaram os antepassados do povo liderado por Aníbal, ainda no século 17, para explorar pau-brasil e plantar cana-de-açúcar. No início do século 20, a região se tornou sede da Companhia de Tecidos Rio Tinto, empreendimento industrial da família de imigrantes suecos Lundgren, que também fundou as Casas Pernambucanas. No auge, a fábrica chegou a ser apelidada de Manchester paraibana e ergueu uma cidade, Rio Tinto, para abrigar seus trabalhadores.

A fábrica fechou definitivamente na década de 1990. Antes disso, seus donos haviam entregado boa parte das terras tomadas dos Indígenas a usineiros de cana-de-açúcar. É Potiguara de Monte-Mor a terra “ocupada por gente comum, possivelmente tão pobre quanto nós” a que Lula se referiu em seu discurso. Mas, segundo as assessorias jurídica e antropológica da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, a Apoinme, isso não é um problema. Os Indígenas sempre trabalharam para a Rio Tinto e viveram nas casas da fábrica. A vila tem 6 mil habitantes, dos quais metade é de Indígenas – os demais vivem em relação harmoniosa com os Potiguara, que inclusive não pleiteiam sua retirada, afirma a Apoinme.

Quem não deseja a demarcação são os usineiros que plantam cana-de-açúcar na Terra Indígena e são influentes na política local. O governador da Paraíba, João Azevêdo, do PSB, é alinhado a Lula e um dos que pediram “um tempo” ao presidente antes da homologação. “Foi uma surpresa para nós. Nos damos bem com o governador”, disse no ATL o cacique Aníbal. “Chegando às bases, vamos fazer nossas manifestações. Vamos para frente da assembleia e do Palácio do governo.” No dia seguinte ao anúncio de Lula, um juiz federal da Paraíba ordenou que a homologação de Potiguara de Monte-Mor seja concluída em até 90 dias.

As famílias de Arthur Lira e do senador Renan Calheiros (MDB) são as mais poderosas da política alagoana – e inimigas figadais. É possível que uma só causa as una: a oposição à demarcação da Terra Indígena Xucuru-Kariri, em Palmeira dos Índios. Segundo quem conhece a região, financiadores de campanhas eleitorais de ambos possuem terras sobrepostas à dos Indígenas – são quase 500 invasores. “Os posseiros lá são ruralistas, vinculados a grandes lideranças políticas que há mais de 20 anos vêm tentando barrar o processo demarcatório”, afirma o advogado Indígena Maynamy Xucuru-Kariri, que vive na terra cujo processo demarcatório aguarda uma assinatura presidencial desde 2010.

O primeiro pedido de reconhecimento da área como território tradicional dos Xucuru-Kariri data de 1822, ano da independência do Brasil. “Hoje, a área a ser demarcada é de 3,5 mil hectares, mas os estudos originais eram de 33,5 mil hectares. Para 5 mil Indígenas vivendo em 11 aldeias. É uma área de Mata Atlântica, que não pode ser utilizada para agricultura em larga escala. Para o nosso povo, a terra é uma extensão do nosso corpo, é a nossa mãe, a essência da vida. Para o não Indígena, a terra é uma moeda”, desabafa Maynamy. O pajé Antonio Celestino, uma antiga liderança dos Xucuru-Kariri, foi chamado a Brasília para assistir à homologação que não houve. “A reviravolta causou nele e em todo o nosso povo uma profunda tristeza”, diz o advogado. Celestino nem sequer ficou para o ATL.

Karai Tataendy Guarani, de Santa Catarina, diz que ‘os Indígenas sempre estiveram no Morro dos Cavalos’

Morro dos Cavalos, a quarta das terras cuja homologação Lula postergou, fica em Palhoça, litoral sul de Santa Catarina. De frente para o mar, com vista para o sul da ilha de Florianópolis e acesso pela BR-101, o lar de aproximadamente 500 Indígenas Guarani, Guarani Mbya e Guarani Ñandeva é alvo da cobiça do mercado imobiliário. “Esse processo de demarcação vem de longa data. Os Indígenas sempre estiveram ali”, afirma Karai Tataendy Guarani, coordenador estadual da Comissão Guarani Yvyrupa, em Santa Catarina.

Com 1.988 hectares, Morro dos Cavalos está pronta para ser homologada desde 2008. “Quando a Terra Indígena foi identificada [pela Funai, no início do processo de demarcação], havia bem poucos invasores. Mas chegaram cada vez mais”, diz Karai Tataendy. Segundo os Indígenas da região, os invasores construíram até casas de alvenaria, com piscina, em seu território. Mas poucos não Indígenas de fato vivem ali. Há outro complicador: a pressão de políticos e empresários catarinenses para que a rodovia receba um túnel sob o Morro dos Cavalos. A pressão aumentou após o deslizamento de uma encosta, causado pelo excesso de chuvas provocado pela crise climática, fechar a BR-101 por mais de dois dias em meados de abril.

O governador de Santa Catarina é o bolsonarista Jorginho Mello (PL), ex-senador que atuou na CPI da Covid como defensor intransigente do então presidente na gestão da pandemia que matou mais de 700 mil brasileiros. Ele se recusou a receber a ministra Sonia Guajajara, em Florianópolis, para tratar das Terras Indígenas pendentes de homologação. Seu governo tenta, ainda, reverter judicialmente a demarcação de Morro dos Cavalos. O processo está no Supremo, sob relatoria de Alexandre de Moraes.


Marcha do Acampamento Terra Livre, em 2024, sob o sol forte do outono brasiliense


Reportagem e texto: Rafael Moro Martins
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Chefa de reportagem:
Malu Delgado
Checagem:
Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução em espanhol: Meritxell Almarza
Tradução em inglês:
Sarah J. Johnson
Montagem de página e acabamento:
Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa:
Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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