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No cerrado mato-grossense, floresta é derrubada e queimada para dar lugar a pasto para animais que abastecem grandes frigoríficos brasileiros. Foto: Cesar Diniz

Fazendas de gado que abastecem os três maiores frigoríficos do Brasil – JBS, Marfrig e Minerva – desmataram em Mato Grosso, em menos de dois anos, uma área de Cerrado equivalente a toda parte urbana de Brasília e arredores, segundo um relatório inédito da organização britânica Global Witness divulgado com exclusividade no Brasil por SUMAÚMA. O estudo aponta ainda que a maior parte dessa destruição ocorreu sem autorização. Em 2023, o Cerrado ultrapassou a Amazônia e voltou a ser o bioma mais desmatado do Brasil, o que não acontecia desde 2018. A metade de sua cobertura florestal já foi destruída para dar lugar a pasto, lavouras – principalmente de soja, milho e algodão – e cidades.

Localizado na região Centro-Oeste do Brasil, Mato Grosso é o estado que abriga o maior rebanho bovino do país. Eram 34 milhões de animais em 2022, registra o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – ou nove bois para cada habitante humano. Foi também onde mais se mataram bois e vacas para a venda da carne em 2022: algo como 4,7 milhões, ou 16% dos quase 30 milhões de abates em todo o Brasil. O total de bovinos mortos no país aumentou 7,5% em relação a 2021.

O estado possui uma combinação única de biomas: a parte norte está na Amazônia; a porção mais ao centro e ao sul, de tamanho equivalente, fica no Cerrado. Isso permitiu que a Global Witness comparasse o impacto da pecuária em cada um deles. O resultado é estarrecedor: o desmatamento causado pelos fornecedores dos três grandes frigoríficos no Cerrado foi quase cinco vezes maior que na parte amazônica entre 2018 e 2019, período do levantamento da organização britânica. Cada boi ou vaca que JBS, Marfrig e Minerva compraram de Mato Grosso foi potencialmente responsável por uma média de 1.132 metros quadrados de desmatamento no Cerrado, aponta a organização. Já na porção amazônica do estado, cada animal criado para ser vendido e abatido causou, em média, a derrubada de 85 metros quadrados de floresta.

Segundo a organização, fazendas que fornecem animais a JBS, Minerva e Marfrig desmataram 59,89 mil hectares de florestas nas porções da Amazônia e do Cerrado de Mato Grosso entre 2018 e 2019. A maior parte deles – 59,32 mil hectares – foi derrubada sem autorização, afirma a Global Witness. Os frigoríficos discordam da metodologia usada no levantamento (leia mais abaixo).

Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

“A Amazônia possui proteções legais que o Cerrado não tem. Portanto, acreditamos que fazendeiros que atuavam na Amazônia estão se deslocando para áreas no Cerrado. Essencialmente, eles estão deslocando o problema”, diz Veronica Oakeshott, chefe de campanhas florestais da Global Witness, em entrevista a SUMAÚMA. Ela lidera a campanha da organização para proteger as florestas que podem frear a catástrofe climática, e trabalha para expor as empresas e os financiadores responsáveis pela destruição e para pressionar por mudanças legislativas que salvem a biodiversidade que nos resta.

Mato Grosso é um exemplo de como a legislação ambiental é mais tolerante com o desmatamento no Cerrado. O estado exige que apenas 35% de vegetação original seja preservada em propriedades rurais no bioma – na Amazônia, o percentual pode chegar a 80%. A Global Witness destaca ainda que um a cada três bovinos comprados por JBS, Marfrig e Minerva de fazendas localizadas no Cerrado mato-grossense viveu em áreas desmatadas especialmente para abrir espaço para a pecuária.

Boa parte dessa carne foi exportada. Em 2020, o Brasil vendeu a outros países quase duas vezes mais carne bovina de animais criados em pastos localizados no Cerrado do que na Amazônia. De longe, o maior comprador dos bois abatidos no estado costuma ser a China, seguida por Egito e Estados Unidos – apenas em 2022, para se ter uma ideia, a exportação gerou o equivalente a 2,6 bilhões de dólares.

O consumo crescente de carne pelos humanos é um dos fatores de destruição da floresta e do aquecimento global. Foto: Paulo Whitaker/Reuters

O apetite dos humanos por carne bovina tem sido um fator decisivo para a devastação das florestas brasileiras. “Dois terços das terras desmatadas nos biomas Amazônia e Cerrado foram convertidos em pastagens para o gado bovino, tornando o setor pecuário brasileiro responsável por um quinto de todas as emissões de carbono provenientes do desmatamento impulsionado por commodities [mercadorias] em todos os trópicos”, afirma uma pesquisa de 2020 publicada na Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS), a revista científica oficial da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Assim, “não é coincidência que Mato Grosso também tenha o segundo maior nível de perda de cobertura florestal do Brasil, de acordo com os dados mais recentes do Global Forest Watch”, ressalta a Global Witness. O primeiro colocado desse ranking vergonhoso é o Pará, outro grande produtor de bois e vacas para abate.

A destruição promovida pelos fornecedores de JBS, Marfrig e Minerva e revelada pela Global Witness é financiada pelos maiores bancos e fundos de investimentos do Brasil e do mundo. Bradesco BBI, Santander, BTG Pactual, XP Investimentos, Itaú BBA, HSBC, Barclays – banco britânico conhecido por patrocinar, durante anos, o principal campeonato de futebol inglês – e Merrill Lynch endossaram bilhões de dólares em títulos que permitem a JBS, Marfrig e Minerva tomarem dinheiro emprestado no mercado financeiro para impulsionar suas operações no Brasil.

Já fundos de investimentos famosos, como BlackRock e Capital Group, são acionistas desse trio de empresas. “Os frigoríficos têm uma grande responsabilidade sobre o desmatamento. Os lucros obtidos com a carne que é fruto do desmatamento do Cerrado estão indo para bancos e financeiras de todo o mundo, que precisam assumir a responsabilidade que têm no processo”, cobra Veronica Oakeshott.

Em respostas enviadas a SUMAÚMA e Global Witness, os frigoríficos, bancos e fundos de investimentos declararam seus compromissos com a sustentabilidade ambiental. Marfrig, JBS e Capital Group também questionaram os achados da pesquisa realizada pela organização britânica. Já o Black Rock assegurou que, em 2023, “votou contra ou se absteve de apoiar uma série de propostas de gestão na JBS, Marfrig e Minerva devido a preocupações relacionadas à governança corporativa”.

A caixa-preta das Guias de Trânsito Animal

Os achados da Global Witness são fruto do cruzamento de dados disponíveis ao público com outras informações que as autoridades costumam manter em sigilo. Esse é o caso das Guias de Trânsito Animal, as GTAs, um documento necessário para transportar animais no Brasil. Em tese, o documento deveria mostrar a origem do gado e por onde ele passa. Porém, por ser autodeclaratório, fraudes são comuns. Por exemplo: a GTA pode informar que os animais foram criados em uma fazenda legalizada e sem desmatamento ilegal, quando, na verdade, pastaram quase toda a vida em uma terra indígena ou unidade de conservação, locais proibidos, antes de serem levados à morte.

“A Guia de Trânsito Animal é o documento oficial para transporte animal no Brasil e contém informações essenciais sobre a rastreabilidade (origem, destino, finalidade, espécie, vacinações, entre outros)”, informa o site do governo federal. Ela deve ser preenchida por um médico-veterinário e permite saber, entre outras coisas, quem vendeu e quem comprou animais – e onde eles foram criados.

A Global Witness obteve na internet os dados das Guias de Trânsito Animal emitidas em Mato Grosso entre janeiro de 2018 e julho de 2019. As fazendas que venderam animais para abate nos três maiores frigoríficos – JBS, Marfrig e Minerva – tiveram seus dados pesquisados no Cadastro Ambiental Rural (CAR), um banco de dados públicos em que proprietários rurais registram informações como a localização geográfica de suas áreas.

A localização de cada fazenda foi sobreposta aos dados do sistema Terra Brasilis, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que reúne informações sobre desmatamento. Por fim, a Global Witness buscou por um documento chamado, em Mato Grosso, de Autorização de Desmate. Trata-se de uma licença necessária para o desmatamento de qualquer área, pública ou privada, em qualquer bioma. Ao cruzar todos esses dados, descobriu que 9,7% das fazendas, na Amazônia, e 42,8%, no Cerrado, desmataram áreas de floresta entre 2018 e 2019. E, nos dois biomas, 99% do desmatamento foi feito sem que fossem encontrados documentos de autorização emitidos pelo governo do estado, diz a organização britânica.

Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

O levantamento da Global Witness é restrito aos 18 meses entre 2018 e 2019 por um motivo simples: trata-se do intervalo de tempo no qual as Guias de Trânsito Animal emitidas em Mato Grosso estiveram acessíveis ao público. Desde então, esses documentos têm sido mantidos em sigilo por diferentes governos estaduais – e também pelo governo federal. Ou seja, na prática as autoridades prejudicam a fiscalização não governamental do desmatamento provocado pela carne brasileira.

A decisão é explicada em vários documentos, como por exemplo na nota técnica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, datada de abril de 2019, início do governo do extremista de direita Jair Bolsonaro (PL):

“Este Ministério entende que, em sua individualidade, tanto os dados cadastrais quanto de GTAs contêm informações de natureza pessoal, de modo que não são de interesse coletivo ou geral. Trata-se de informações eminentemente pertinentes à atividade de Defesa Sanitária Animal, que conferem rastreabilidade de rebanhos e controle de trânsito, sendo fundamentais no processo de tomada de decisão acerca de políticas públicas de defesa agropecuária mas não destinadas ao público em geral. Hão [sic] de se considerar, ainda, eventuais impactos sobre o mercado agropecuário”, afirma o documento, assinado por Bruno de Oliveira Cotta, um médico-veterinário que é servidor de carreira e coordena, até hoje, a área de Trânsito e Quarentena Animal do ministério.

Bolsonaro não é mais presidente desde janeiro de 2023, mas Cotta segue no mesmo cargo e o posicionamento do Ministério da Agricultura não mudou. A pasta é comandada, a convite de Lula, por Carlos Fávaro, um latifundiário de soja que é filiado ao PSD e senador por Mato Grosso. Questionado por SUMAÚMA, o órgão informou, via assessoria de imprensa, que “mantém a posição de que a GTA não se trata de um documento público, por conter informações de natureza pessoal. No entanto, o tema está em avaliação jurídica, de forma que, neste momento, não é possível definir se há possibilidade de o documento tornar-se público”.

O senador mato-grossense Carlos Fávaro, latifundiário de soja, é o ministro da Agricultura e Pecuária de Lula. Foto: Mateus Bonomi/Agif/AFP

A medida é alvo de diversas ações do Ministério Público Federal, o MPF. “A nossa posição é de que as GTAs [Guias de Trânsito Animal] são um dado público. Não há motivo para manter esses documentos sob sigilo”, diz a SUMAÚMA o procurador da República Daniel Azeredo, autor do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que, a partir de 2009, exige que os frigoríficos que atuam no estado do Pará auditem os dados sobre a origem dos animais que abatem.

O TAC evoluiu e deu origem, anos depois, ao protocolo Boi na Linha, atualmente coordenado em parceria com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola, o Imaflora. A Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) só aderiu formalmente ao protocolo em meados de 2023, embora alguns de seus integrantes – como JBS, Marfrig e Minerva – já fizessem parte dele.

O MPF também é autor de ações civis públicas que pedem, na Justiça Federal de 12 estados brasileiros, a abertura dos dados das Guias de Trânsito Animal. Em Mato Grosso, o MPF recomenda desde 2019 que o Instituto de Defesa Agropecuária, o Indea, torne públicas as informações constantes das GTAs emitidas no estado, inclusive com a identificação de compradores e vendedores de gado. Ignorada desde então, a recomendação deu lugar a uma ação civil pública, apresentada à Justiça em novembro de 2023. Como as demais ações movidas pelo MPF, a de Mato Grosso ainda não teve sentença.

SUMAÚMA questionou o Indea a respeito da falta de transparência das Guias de Trânsito Animal. Um dos coordenadores do órgão, João Néspoli, informou, via assessoria de imprensa, que as guias são publicadas, mas com a omissão de informações como nome, CNPJ e localização dos compradores e vendedores – o que, na prática, torna os dados inúteis a quem deseja rastrear a relação entre pecuária e desmatamento, como fez a Global Witness. O Instituto de Defesa Agropecuária usa a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, a LGPD, para justificar as omissões.

O procurador Azeredo, contudo, não crê que a transparência das GTAs elimine a relação entre a indústria da carne e o desmatamento. As Guias só permitem saber qual fazenda foi a fornecedora final, ou direta, a um frigorífico. “Mas essa fazenda normalmente compra gado de várias outras para revender ao frigorífico. São o que a gente chama de fornecedores indiretos”, explica.

Por isso, o procurador defende a implantação, no Brasil, de um sistema em que cada animal seja rastreado, desde o nascimento, via satélite, graças a um chip acoplado na orelha. “A gente vem defendendo isso há vários anos como uma medida necessária para combater o desmatamento”, diz Azeredo.

Como não há, porém, legislação que obrigue a adoção do sistema, o MPF fica de mãos atadas – não pode pedir que a Justiça mande cumprir uma lei que não existe. “Depende de decisão do governo, do Ministério da Agricultura, mas também de governos estaduais, das próprias empresas, de supermercados. Muita gente pode liderar esse processo”, afirma o procurador.

SUMAÚMA perguntou ao Ministério da Agricultura se existe estudo ou projeto em andamento para tornar obrigatório o rastreamento via satélite, em tempo real, de bovinos de corte, com a aplicação compulsória de brincos com chip nas orelhas dos animais. O órgão não respondeu.

Questionado sobre os achados da Global Witness em Mato Grosso, o Ministério da Agricultura disse que “não é possível emitir um posicionamento oficial sobre o levantamento citado, uma vez que o ministério não teve acesso à íntegra do documento”. Afirmou, ainda, “que o controle e a fiscalização de áreas desmatadas, independentemente da atividade econômica ali desempenhada, são de competência do Ibama”.

Procurado para comentar a resposta do ministério, o Ibama afirmou que “tem atuado na fiscalização da cadeia produtiva associada ao desmatamento ilegal, a exemplo da pecuária, […] e tem realizado operações […] de fiscalização dos frigoríficos que compram gado de área embargada”. A nota acrescenta que “a maior parte do desmatamento ilegal no estado de Mato Grosso está sujeita à competência primária de fiscalização e controle por parte do governo estadual. No entanto, o Ibama também desempenha papel ativo nesse processo”.

Já a Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso disse que “se manifestará após conhecer o inteiro teor do levantamento feito pela Global Witness”. Contudo, ressaltou “que tem agido com firmeza e tolerância zero no combate ao desmatamento ilegal e crimes ambientais, com a Operação Amazônia em campo, fiscalizações por imagens de satélite, aplicação de multas, embargo e apreensão dos maquinários de infratores”.

Veronica Oakeshott, da Global Witness, cobra ação dos frigoríficos para que haja real transparência das Guias de Trânsito Animal. “Até a China [principal comprador da carne mato-grossense] está cada vez mais interessada nisso, [embora] ainda não faça as exigências que, por exemplo, a União Europeia irá implementar a partir de dezembro de 2024″, analisa.  “No curto prazo, a China pode ser um mercado para a carne que é fruto do desmatamento. No longo prazo, suspeito que isso mudará, na medida em que o governo chinês se movimente e redefina suas exigências.”

Cerrado, o bioma sacrificado

Os dados levantados pela Global Witness em Mato Grosso são sintomas de um problema maior: o Cerrado é o bioma mais devastado pelo avanço do agronegócio no Brasil. Além do gado de corte, monoculturas de larga escala como soja, milho e algodão produzem sucessivos recordes de desmatamento. Em novembro de 2023, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima revelou que o Cerrado brasileiro perdeu impressionantes 11 mil quilômetros quadrados de vegetação entre agosto de 2022 e julho de 2023. É uma área equivalente a duas vezes o tamanho do Distrito Federal, que possui 5,76 mil quilômetros quadrados.

Cada 1.132 metros quadrados desmatados para a pastagem de um único animal podem ser o lugar natural de quase 100 lagartos. Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Pode parecer pouco, diante dos quase 2 milhões de quilômetros quadrados pelos quais se estende o Cerrado – cerca de 25% do território brasileiro – nos estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal. Mas mais da metade dessa área já está desmatada, fruto de um processo iniciado nos anos 1970, quando a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa, abriu uma corrida pelas terras do Cerrado ao introduzir o uso de calcário para aumentar a fertilidade de um solo antes considerado “pobre”. Ocorre que o bioma é crucial para a segurança hídrica de parte considerável da América do Sul. Oito das 12 regiões hidrográficas do Brasil – como as dos rios Araguaia, São Francisco e Paraná – têm nascentes no Cerrado, justamente conhecido com o “berço das águas”.

Um estudo científico concluído em 2022 e apresentado na edição anterior da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP-27, no Egito, verificou que os rios do Cerrado perderam 15,4% de sua vazão de água entre 1985 e 2022. As causas são o desmatamento promovido pelo agronegócio e as mudanças climáticas. Deve piorar: a perda chegará a um terço (34%) da vazão dos rios até 2050 se a devastação não for revertida, afirma o estudo, coordenado pelo geógrafo Yuri Salmona, doutor em ciências florestais pela Universidade de Brasília (UnB).

A paisagem do Cerrado é marcada pelas árvores de caules e galhos tortos e pelas imponentes chapadas como a Diamantina, na Bahia, ou a dos Veadeiros, em Goiás. O bioma abriga mais de 2,5 mil espécies de animais vertebrados, como o lobo-guará, além de mais de 11 mil espécies de plantas. Uma riqueza que rapidamente cede lugar à monotonia das vastas áreas de pasto e dos latifúndios produtores de monoculturas como a soja – em alguns estados, plantada até a beira do asfalto das rodovias – que liquidam a biodiversidade local.

O Cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul e é crucial para oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras. Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace

Os 1.132 metros quadrados de desmatamento provocados, de acordo com a Global Witness, por cada boi ou vaca que JBS, Marfrig e Minerva compraram no Cerrado de Mato Grosso, por exemplo, podem ser a casa de quase 100 lagartos e milhares de cupins, insetos fundamentais para a manutenção da vida selvagem no bioma, segundo cálculos de Reuber Albuquerque Brandão, professor do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília, e coordenador do Laboratório de Fauna e Unidades de Conservação da instituição.

“O Cerrado tem como uma de suas características principais a elevada diversidade de espécies entre uma e outra localidade. Mas mil metros quadrados podem ser o habitat de 80 lagartos de até dez espécies, por exemplo. E conter de quatro a cinco grandes cupinzeiros. É simplesmente impossível contar quantos cupins vivem em cada um, mas cada cupinzeiro consegue movimentar por ano umas 4 toneladas de solo, além de servir de abrigo para serpentes, roedores, lagartos, anfíbios e centenas de invertebrados”, diz o pesquisador.

Para obter seu doutorado, Brandão pesquisou o modo de vida de lagartos nas ilhas formadas pelo lago da Usina Hidrelétrica da Serra da Mesa, que desde 1998 barrou o rio Tocantins em Minaçu, norte de Goiás. “Se esses mil metros quadrados forem uma área alagável, é possível encontrar neles até 20 espécies de anfíbios”, garante o professor. “A remoção da flora de mil metros quadrados de uma área sazonalmente alagável, algo comum para a formação de pasto no Cerrado, significa a extinção do ambiente reprodutivo de umas 20 espécies de anfíbios, que podem alcançar facilmente 200 indivíduos em períodos de reprodução.”

Em mil metros quadrados do Cerrado mato-grossense também se pode encontrar 150 árvores de pelo menos 25 espécies, calcula a engenheira florestal Renata Françoso, professora da Universidade Federal de Lavras, em Minas Gerais. Toda essa vida – lagartos, anfíbios, cupinzeiros, árvores, além de fungos, gramíneas e outras espécies de animais – é destruída para abrir espaço a um único bovino destinado a gerar lucro para os grandes frigoríficos, segundo o levantamento da Global Witness.

O artigo 225, que abre o capítulo da Constituição destinado ao meio ambiente, estipula que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”. O 4º parágrafo do artigo especifica que “a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional”. O Cerrado, já àquela época alvo da cobiça do agronegócio, não aparece uma única vez no texto constitucional.

Um plano para conter o desmate

A falta de atenção do poder público explica por que o desmatamento no Cerrado é cinco vezes mais acelerado que na Amazônia. Em 2019, Jair Bolsonaro extinguiu, com um decreto, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado, o PP Cerrado, que havia sido criado em 2010. Em fins de novembro, ele foi relançado pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. “A natureza não está assimilando o que nós legislamos, até agora, para o Cerrado”, declarou Marina, em setembro passado, durante a solenidade que abriu a consulta pública para o PP Cerrado.

No lançamento do plano, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima informou que a expansão agrícola e a especulação fundiária estão entre as principais causas da destruição do bioma, que é pouco protegido pela legislação: mais da metade do desmatamento de 11 mil quilômetros quadrados registrado entre agosto de 2022 e julho de 2023 é autorizada pelos governos estaduais ou está dentro dos parâmetros aceitos pelo Código Florestal.

Com a nova fase do PP Cerrado, o ministério liderado por Marina Silva busca repetir o sucesso do PPCDAM, plano lançado em 2004 e que foi responsável por reduzir em 83% a devastação na Amazônia Legal até 2012. Resta saber se ainda há tempo para isso.

Quanta carne é sustentável?

Os achados da Global Witness na cadeia de fornecedores dos três gigantes frigoríficos brasileiros em Mato Grosso levantam uma questão inevitável: o mundo pode seguir comendo tanta carne?

A agropecuária foi responsável por 33% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa, responsáveis pelo superaquecimento global, em 2016, segundo a Quarta Comunicação Nacional do Brasil à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, documento produzido em 2020 – ou seja, durante o governo Bolsonaro. E nada menos que 19% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa se devem ao metano que bois, vacas e outros ruminantes produzem naturalmente, na digestão.

O Brasil possui, atualmente, um dos maiores rebanhos bovinos do mundo – em 2022 eram mais de 234 milhões de bois e de vacas, um número maior do que o de seres humanos no país. “A demanda vem crescendo cada dia mais: nos últimos 50 anos, a produção de carne mais do que triplicou. O mundo hoje produz mais de 340 milhões de toneladas por ano”, orgulha-se o site do Instituto Mato-Grossense da Carne, o Imac, um órgão vinculado ao governo do estado criado com “a missão de promover a carne bovina de Mato Grosso”.

É algo que custa caro ao meio ambiente. Os dados mais recentes do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg), divulgados no final de novembro de 2023 pela organização não governamental brasileira Observatório do Clima, revelam que a atividade agropecuária aumentou em 3% suas emissões de carbono em 2022 , comparada às emissões no ano de 2021. Foi o segundo ano consecutivo com uma elevação acima dos 3%, algo que não acontecia desde 2004, e se explica pelo crescimento do rebanho bovino brasileiro. “Mesmo com a queda do consumo de fertilizantes, que reduziu as emissões na agricultura, tivemos essa elevação na pecuária que trouxe todo o setor para cima”, afirma Gabriel Quintana, do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora).

A agropecuária foi responsável por 27% do total das emissões brutas brasileiras em 2022. A atividade é a segunda maior emissora do Brasil. A primeira é a que o Seeg classifica como “Mudança de Uso da Terra e Floresta”, cuja principal causa é o desmatamento, e responde por 48% das emissões brasileiras. Ou seja, agropecuária e desmatamento, duas atividades intimamente ligadas, são responsáveis por 75% dos 2,3 bilhões de toneladas brutas de gases de efeito estufa emitidos em 2022 no território brasileiro.

Mas há um elo final na cadeia: o consumidor, que precisa se lembrar de que o bife ou o hambúrguer que coloca no prato pode ser causador de desmatamento. Os frigoríficos colocaram no mercado brasileiro, em 2022, o equivalente a 28 quilos de carne bovina por habitante do país – número que já chegou a quase 43 quilos anuais em 2006. Somos um dos países que mais comem bois e vacas, mas ficamos atrás, dentre outros, de Estados Unidos (37 quilos no mercado por habitante, em 2020) e Argentina (47 quilos por habitante, também em 2020), onde o churrasco é parte da cultura local. No Reino Unido, sede da Global Witness, o consumo médio em 2020 por habitante foi de 18 quilos de carne bovina.

“Acho que as pessoas sempre vão querer comer carne. E nós não queremos impedir ninguém de comer carne bovina. Mas é totalmente insustentável para o mundo inteiro comer tanta carne quanto as pessoas no Reino Unido e nos Estados Unidos comem”, diz Veronica Oakeshott, da Global Witness. “Todos nós precisamos pensar em comer menos carne bovina. É uma escolha pessoal de cada um, mas é ecologicamente insustentável, e muito, ter uma dieta rica em carne.”

A agropecuária foi responsável por 33% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa, causadores da mudança climática. Foto: Rubens Cavallari/Folhapress

O que dizem os envolvidos

Questionada por SUMAÚMA a respeito dos resultados do levantamento da Global Witness, a JBS respondeu que “a análise [da organização britânica] desconsidera os termos do protocolo Boi na Linha, seguido por todo o setor da pecuária”. Com isso, diz a JBS, a Global Witness chega a “conclusões enganosas ao classificar qualquer propriedade com mais de 6,27 hectares sem cobertura vegetal, não necessariamente contínua, como ‘não conforme'”. Por fim, afirma que “todas as compras” em que o relatório se baseia foram regulares e atenderam “aos critérios socioambientais no momento da transação”. Numa outra resposta, mais longa e em inglês, enviada à Global Witness, a JBS disse que “identificou apenas 482 das 611 fazendas avaliadas pela Global Witness em seu banco de dados de fornecedores”.

A Marfrig disse a SUMAÚMA, em nota, que recebeu da Global Witness “apenas documentos de Cadastro Ambiental Rural de propriedades que teriam algum tipo de passivo ambiental, em especial desmatamento”. Ao analisá-los “à luz do Prodes Amazônia Legal, instrumento legal e oficial para apuração de desmatamento na região, a Marfrig evidencia e corrobora o cumprimento de 100% dos critérios de sua política de compra com zero desmatamento e total aderência aos demais compromissos”. Segundo a empresa, nove fazendas informadas pela Global Witness “não estão cadastradas nas bases de dados da Marfrig”. Das restantes, 214 não teriam registros de desmatamento no Prodes, sete registraram desmatamento com polígonos inferiores a 6,25 hectares (permitidos pelo Boi na Linha) e 16 foram posteriormente bloqueadas. Por isso, de acordo com a Marfrig, “as alegações [da Global Witness] não procedem”. A empresa diz, ainda, que além de cumprir o protocolo Boi na Linha, “não adquire animais de áreas desmatadas, unidades de conservação, Terras Indígenas, Territórios Quilombolas, áreas embargadas e propriedades que constem na lista suja de trabalho análogo à escravidão”.

A Global Witness explica que sua metodologia considerou que houve desmatamento em qualquer fazenda em que os satélites identificaram polígonos sem cobertura vegetal cujas áreas, somadas, sejam superiores a 6,27 hectares. O Boi na Linha só considera que há desmatamento quando cada polígono analisado tenha, individualmente, área superior a 6,25 hectares. Isso se deve à metodologia do Prodes – apesar de conseguir identificar retiradas da vegetação em áreas a partir de 1 hectare, o sistema só considera como desmatamento os que tenham área contínua superior a 6,25 hectares. Isso significa, por exemplo, que uma fazenda que tenha mais de um polígono de desmatamento, cada um com 4 hectares, mas em lugares diferentes, não será considerada como desmatadora pelo Boi na Linha, ainda que, no total, 8 hectares tenham sido destruídos.

A Global Witness diz acreditar que esse parâmetro não capta com precisão todo o desmatamento nas cadeias de suprimentos da pecuária. “Usamos um processo um pouco mais rigoroso em sua metodologia do que o MPF, para identificar pequenos casos de desmatamento em fazendas de gado, mas acreditamos que a diferença que isso fez em nossas conclusões gerais é mínima. Essa é a única pequena diferença em nossa abordagem em relação à do MPF, e ela torna nosso trabalho mais robusto”, diz o texto.

“A evidência que a Global Witness identificou é de uma falha de diligência em relação às cadeias de suprimentos. A Global Witness não sugere que a JBS, a Marfrig ou a Minerva tenham autorizado ou encomendado o desmatamento de qualquer terra de qualquer uma das fazendas ou ranchos que forneçam animais a elas. No entanto, as empresas estão em posição de influenciar a mudança de prática no local e de coibir o desmatamento ilegal”, afirma a organização.

A Minerva Foods não questionou nem abordou os achados do relatório da Global Witness nas respostas que enviou a SUMAÚMA e à organização inglesa. Em vez disso, lista o que considera ações de “compromisso com a sustentabilidade”. A Minerva diz ter sido “pioneira na aplicação do monitoramento geoespacial em 100% dos seus fornecedores diretos em todos os biomas do Brasil que possui operação (Amazônia, Cerrado, Pantanal, Caatinga e Mata Atlântica), em 2020”. “Isso significa que não há desmatamento ilegal, uso de mão de obra análoga à escravidão ou trabalho infantil, sobreposição a áreas protegidas e embargos ambientais na cadeia produtiva da Minerva Foods”, e que as auditorias externas que ela contrata indicaram “100% de conformidade nas transações realizadas entre janeiro e dezembro de 2021” em Mato Grosso. Os dados do levantamento da Global Witness, cabe lembrar, são de 2018 e 2019.

O banco Itaú, que endossou títulos emitidos em 2017 pela Minerva Foods, afirmou a SUMAÚMA, em nota, que “entende que a rastreabilidade na cadeia de carne traz uma série de benefícios não só para a questão ambiental, no que se refere ao desmatamento, mas também para a questão social e de segurança alimentar”. O texto diz que “o banco não comenta clientes específicos, [mas] reforça que está comprometido com o desenvolvimento de uma cadeia da carne mais forte e sustentável”, como avaliações de riscos ambientais e sociais para concessão de crédito a produtores rurais e a adesão ao protocolo da Federação Brasileira de Bancos, a Febraban, com normas que buscam o fim do desmatamento ilegal na Amazônia, inclusive na cadeia produtiva da carne, até 2025.

O banco Santander, que endossou títulos emitidos pela Marfrig em 2019, enviou nota a SUMAÚMA em que “esclarece que o financiamento ao agronegócio, incluindo os frigoríficos, é realizado em conformidade com a regulamentação aplicável e com base nas melhores práticas socioambientais”. “As emissões de títulos de dívida, em especial, estão também sujeitas a regras locais e internacionais do mercado de capitais e ao escrutínio dos investidores”, prossegue o texto. Por fim, o Santander afirma ser “membro do comitê de silvicultura e agronegócio da Febraban, que em março de 2023 aprovou protocolo que estabelece normas para gestão do risco de desmatamento ilegal na cadeia da carne bovina […] e exige que os clientes que processam carne bovina com frigoríficos na região da Amazônia Legal brasileira acabem com o desmatamento ilegal até dezembro de 2025”.

O Bradesco, banco que endossou títulos emitidos por Marfrig e Minerva Foods entre 2017 e 2019, foi procurado por SUMAÚMA para se pronunciar sobre o desmatamento na cadeia produtiva dos dois frigoríficos. Respondeu que não irá comentar. O BTG Pactual, subscritor de títulos da Marfrig, foi procurado, via assessoria de imprensa, coordenada pela agência de relações públicas FSB, uma das maiores do Brasil. As questões foram recebidas, mas jamais respondidas. O banco XP, outro subscritor de títulos da Marfrig, também foi procurado por meio da agência Fato Relevante, que o assessora, mas nunca respondeu às perguntas da reportagem feitas por e-mail e telefone.

O HSBC, que endossou títulos de Marfrig e Minerva, disse à Global Witness que “entende as preocupações ambientais relacionadas aos frigoríficos” e que “não deseja financiar impactos inaceitáveis nesse setor potencialmente de alto risco”. Apesar disso, prossegue o banco, “nosso compromisso de confidencialidade com o cliente impede a discussão de casos ou empresas específicas” […] “o nome HSBC aparece nos registros de ações de empresas por diversos motivos, inclusive quando atuamos como representante ou custodiante de nossos clientes”. […] “Nos envolvemos com as empresas, às vezes em colaboração com outros investidores, levantando questões que incluem o risco de desmatamento”, diz o HSBC.

O banco britânico Barclays, subscritor de títulos da JBS, informou à Global Witness que não iria comentar o relatório por motivos de confidencialidade na relação com seus clientes. Disse, entretanto, possuir “requisitos rigorosos que se aplicam a todas as empresas diretamente envolvidas em produção ou processamento de carne bovina em países com alto risco de desmatamento na América do Sul”, que “incluem a proibição do fornecimento de serviços financeiros para empresas que produzem ou processam carne bovina proveniente de áreas desmatadas da Amazônia e exigem que essas empresas tenham compromissos para obter cadeias de suprimento de carne bovina da América do Sul totalmente rastreáveis e livres de desmatamento até o final de 2025”.

O BlackRock informou ser “acionista minoritário da JBS, Marfrig e Minerva em nome de clientes” do fundo. “Quando consideramos que as empresas não progrediram o suficiente em questões relevantes para a criação de valor financeiro de longo prazo, expressamos nossas preocupações aos clientes que nos autorizaram a votar em seus nomes. Em 2023, o BlackRock votou contra ou se absteve de apoiar uma série de propostas de gestão na JBS, Marfrig e Minerva devido a preocupações relacionadas à governança corporativa”, acrescentou.

O Capital Group disse à Global Witness que “se envolve regularmente com as equipes de gestão das empresas em que investimos, inclusive a JBS, sobre uma variedade de questões”. Acrescentou que o relatório produzido pela organização britânica tem “números em desacordo com as divulgações da empresa”, e por isso sugeriu um contato direto com a JBS.


Reportagem e texto: Rafael Moro Martins
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Viviane Zandonadi (fluxo e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum

Com metade da cobertura florestal do bioma já destruída, a diversidade do Cerrado deu lugar a uma paisagem monótona. Foto: Cesar Diniz

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