Jornalismo do centro do mundo
Micélio

A guerreira Ayumã e os filhos Paulo e Luis Xipai: a Aldeia Tukamã foi a primeira a buscar reconhecimento oficial para seu povo nos anos 1990. Foto: arquivo pessoal

Ao meio-dia um grande estrondo soou. A violenta tempestade, jamais vista naquela região, fez com que o céu desabasse em direção à terra. No inigualável genocídio, apenas alguns Indígenas Xipai sobreviveram, refugiados embaixo de uma grande árvore que aguentou todo aquele peso por um dia inteiro. Quando a noite se aproximava, eles pediram a um Tatu e a uma Paca que perfurassem a abóbada celeste, varando para a parte superior. Alargaram os buracos e subiram. Foi quando a grande árvore se quebrou. No mundo superior, a superfície do céu se tornou o novo solo e o espírito Semãwapa foi ao encontro deles, ofereceu sementes para que pudessem plantar novamente e disse que poderiam viver ali sossegados, em seu novo mundo. Mas os alertou: “Um dia, o céu cairá sobre vocês novamente”.

A lenda Xipai, chamada “O desmoronamento do céu”, contada até hoje por alguns de nossos anciãos, poderia ser uma premonição. O céu, de fato, caiu novamente. Esmagou, sufocou e, por anos, calou as vozes e os cantos de nosso povo, que chegou a ser considerado extinto. Mas, assim como na história, uma enorme árvore seguraria a queda mais uma vez. Era Ayumã Xipai. Ela suportou o peso da busca pelo lugar de origem de seu povo, de onde um dia eles tiveram que fugir. A grande árvore que foi Ayumã também desabou, mas deixou sementes que são seus filhos e o restante de sua descendência.

Nós somos Yãkyrixi e Wajã Xipai, seus netos, jornalistas-floresta. E agora contamos sua história.

Yãkyrixi e Wajã Xipai: jornalistas-floresta e autores desta reportagem, ambos são netos de Ayumã. Foto: Soll/SUMAÚMA

Baú, a primeira não casa

Na década de 1930, os Xipai moravam na margem esquerda do Rio Curuá, no Pará, em uma aldeia conhecida como Baú. Fizeram morada ali após séculos de perseguição de brancos e outros povos Indígenas. Era o tempo da borracha e o Baú havia se tornado uma espécie de vila seringueira, onde viviam além dos brancos, que exploravam o trabalho dos Indígenas, os Xipai e os Kuruaya, que no passado haviam sido seus inimigos.

Em uma das famílias havia uma Indígena chamada Miudjã Xipai, que deu à luz três filhas, entre elas uma guerreira: Ayumã Xipai. Mais velha em uma família de mulheres, Ayumã tinha a obrigação de acompanhar seu pai, Arikafu, de origem Kuruaya, aonde ele fosse: trabalhar na retirada de castanha, cortar seringa ou fazer roça. “Quando ia para os serviços, a gente fechava a casa. Ficava arranchado na mata”, contava Ayumã. Dessa época, ficou um hábito que nossas famílias ainda tinham quando éramos criança, de deixar um pedaço de folha de Cipó-Imbé na casa para protegê-la: nos cômodos vazios, a planta se tornava uma cobra.

Naquela época, o Baú vivia em conflito por território com os Kayapó da região, que um dia invadiram a aldeia e mataram muitas crianças e adultos. Os inimigos estavam em maior número e os obrigaram a fugir. Os Xipai, então, se dividiram. Um grupo subiu o Rio Curuá e outro, com a família de Ayumã, desceu, rumo ao Iriri.

Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

Ayumã era criança. Ao relembrar de sua infância, ela contava que por alguns anos sua família viveu no tempo da roça: plantava, colhia e, logo depois, voltava a viajar, com medo da volta dos Kayapó. Seu pai passava noites inteiras vigiando o grupo por medo dos ataques. Nesse tempo, eles colheram muita mandioca, e, certa vez, seu pai fez uma farinhada muito grande que custou três dias em preparação para a próxima viagem. Na noite em que ele terminou o rancho, os Kayapó chegaram onde estavam acampados e acabaram com tudo.

O pequeno grupo fugiu em uma jangada de madeira para o outro lado do rio. De lá, observou a destruição de seus objetos e mantimentos. Quando eles voltaram, perceberam que tudo havia sido destruído. A farinha foi derramada por inteiro no chão e todas as panelas de barro foram quebradas. Os animais que criavam estavam mortos e os Kayapó haviam tocado fogo em tudo. Os Xipai tiveram que seguir com sua viagem, em busca de um lugar onde poderiam viver com sua família. Ayumã contava que seu grupo só queria uma terra onde pudessem plantar sem ser perseguidos por ninguém.

A vida dela não era fácil. Ela não teve uma infância em que pudesse viver em paz. Não podia sequer se apegar às coisas e precisava trabalhar muito para ajudar seu pai.

Cores da Aldeia Yupá: o verde da floresta sob o céu cinza e o marrom da casa de palha surpreendido pelo amarelo da borboleta. Foto: Wajã Xipai/SUMAÚMA

E chegam os brancos

A guerra de décadas com os Kayapó forçou os Xipai ao contato com os brancos ainda na região da Aldeia Baú. Arikafu, pai de Ayumã, começou a trabalhar para um homem chamado Antonio Meirelles, muito conhecido na região. A família foi convencida de que ao trabalhar para ele estaria protegida dos ataques dos Kayapó. E, assim, Arikafu passou a tirar látex e côro de gato – a pele de felinos da região – em troca de roupas e alimentação. Isso fez com que sua família tivesse que se adaptar à comida dos não Indígenas, como arroz e óleo. O patrão se fazia de amigo. Duas das filhas de Ayumã, Yupã (mãe de Wajã) e Kamadï (mãe de Yãkyrixi) contam que a mulher de Meirelles, com a justificativa de que não tinha filhas, pediu à família de Ayumã para levá-la com ela para a cidade, dizendo que daria à menina um bom estudo.

Quando Ayumã completou 15 anos, foi morar pela primeira vez longe de seu povo, no município de Altamira, que na época ainda era formado por poucas ruas.

Ayumã saiu de casa, mas já tinha a certeza em seu coração de que seu destino seria buscar um lar para sua família. Ao chegar na cidade, percebeu que não era nada daquilo que tinham prometido. Começou a trabalhar para a esposa de Meirelles. Cozinhar, passar e lavar trouxas e trouxas de roupas sujas era o trabalho de Ayumã naquela casa. Ela não ganhava nada pelo serviço que fazia e, segundo suas filhas, comia o resto das refeições da casa. O coração daquela jovem vivia aflito, mas lá no fundo ela tinha a certeza de que iria conseguir seu lugar.

Um dia, alguns meses depois de ter chegado em Altamira, ela lavava roupas no Rio Xingu quando avistou um rapaz em cima de um cavalo. Naquele momento seu coração bateu mais forte. Ayumã nunca tinha sentido aquilo por alguém. Aquele homem era Antônio Batista de Carvalho, um altamirense de mãe cearense e pai sergipano. Mas ele estava noivo. Antônio contava que, ao conhecer aquela “índia” de cabelos longos, logo se apaixonou e não quis mais saber do noivado, pois já tinha certeza de que Ayumã seria a mãe de seus filhos. Ela se apaixonou pela primeira vez, e não teve dúvidas de que aquele rapaz seria seu primeiro amor e se tornaria seu esposo. Os dois, então, fugiram. Ayumã foi viver com Antônio e seus irmãos e passou a ajudar a cuidar dos rapazes, pois os pais deles haviam morrido.

Ayumã engravidou meses depois de um homenzinho, e sua vida começou a mudar aos poucos. Ela morava na terra de seu marido, ainda em Altamira, mas sentia que aquele lugar não era livre para ela e sua família. Passaram-se alguns anos, o casal teve mais filhos, e Antônio decidiu vender a terra para morar em São Félix do Xingu, município vizinho, com a esperança de que a vida deles pudesse melhorar.

Ayumã Xipai e Antônio Batista de Carvalho: o campo de futebol fica em frente à casa em que eles moravam, na Aldeia Tukamã. Fotos: arquivo pessoal e Wajã Xipai/SUMAÚMA

E o chão também desaparece

A vida em São Félix do Xingu se mostrou difícil. Havia muito trabalho e pouco dinheiro para sustentar a família inteira, que logo começou a passar necessidade. Antônio prestava serviço para a prefeitura, mas ali não tinha como plantar ou pescar e era preciso pagar por tudo que queriam comer, só que nem sempre tinham dinheiro para comprar.

No canto da casa feita de tambor (grandes latas antes usadas para armazenar combustível), sentada em sua rede com o semblante abatido e lágrimas escorrendo por seu rosto, Ayumã falou para seu marido: “Meu lugar não é aqui! Nosso lugar não é aqui! Eu vim de uma terra farta de alimentos, e não é aqui que vou morrer com meus filhos”, conta Kamadï Xipai, uma das filhas de Ayumã, ao relembrar as palavras da mãe. “Tenho a esperança que enquanto eu tiver vida, vou achar o lugar que chamaremos de nossa casa”, sentenciou Ayumã. A essa altura, ela já tinha parido seus 24 filhos.

Antônio pediu ajuda a um amigo da cidade, que era piloto e se dispôs a tentar retirar a família de lá. Esse homem conhecia Indígenas Kayapó, os antigos inimigos dos antepassados de Ayumã, que concordaram em recebê-los. Antônio mandou, então, uma carta pedindo socorro ao Coronel Pombo, liderança da Aldeia Kikretum, que enviou transporte a São Félix do Xingu para buscar a família de Ayumã.

Chegando na aldeia, no entanto, eles foram informados de que poderiam ser aceitos ali e fazer parte da aldeia, mas com uma condição: as filhas de Ayumã teriam que se casar com os jovens da Aldeia Kayapó.

Ayumã ficou sem chão, pois não tinha pra onde ir e sua família precisava de um lugar pra ficar. Ela se negou a aceitar a condição e sua família pôde continuar no local, mas como trabalhadores da aldeia. Os Xipaya eram responsáveis pelo plantio de parte da roça da aldeia, e ficavam apenas com um pouco da comida que crescia.

Sombra e luz: caminho da Aldeia Yupá até a beira do Rio Iriri. Do outro lado também tem floresta. Foto: Wajã Xipai/SUMAÚMA

A busca por um lar

Ayumã sonhava com a terra de seus antepassados, onde poderia, realmente, viver em paz.

Sua ida ainda adolescente para Altamira não interrompeu totalmente o contato que ela tinha com sua família. Logo após se casar com Antônio, ela soube que Miudjã, sua mãe, tinha morrido ao contrair sarampo. Depois que ela se mudou para São Félix do Xingu, recebeu a notícia de que Arikafu, seu pai, estava indo à cidade visitá-la, mas acabou assassinado ainda no caminho, ao tentar separar uma briga. Sem os pais, ela foi perdendo o contato com as irmãs. E, assim, com qualquer outro Xipai que conhecia.

Mas ela não desistia de ir atrás de suas origens. A busca, no entanto, não era fácil. Ela não tinha na memória um lugar específico para onde ir, só sabia que seu povo havia habitado as regiões dos rios Iriri, Curuá e Xingu e lembrava, vagamente, de alguns dos locais em que morou com seus pais. A Aldeia Baú, onde ela nasceu e passou sua infância, agora pertencia aos Kayapó.

Um dia, quando a família ainda morava na Aldeia Kikretum, foi alertada por um antigo coordenador da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) que parte de seu povo ainda morava no Rio Curuá. A notícia encheu Ayumã de esperança e sua família decidiu de imediato voltar à terra de origem.

Ayumã, Antônio e os 12 filhos que ainda viviam com eles saíram da Aldeia Kikretum à procura de seu lar definitivo. Primeiro, pararam na cidade de Tucumã, onde um dos filhos de Ayumã, Wilson Xipaya, conheceu um homem interessado em garimpar na região do Rio Curuá. Com medo de chegar ao local com seu maquinário e não ser bem recebido, ele decidiu fretar um ônibus e levar a família de Ayumã com ele até Altamira, de onde poderiam partir de barco ao encontro de seu povo. O grupo embarcou, então, no Mão Divina, e navegou por cinco dias com a expectativa de, finalmente, encontrar seu lugar no mundo. Ayumã teria novamente contato com o povo de sua mãe pelo qual tanto chorava ao relembrar de sua infância.

Em 4 de janeiro de 1991, Ayumã, com pouco mais de 50 anos, encostou com sua família no porto da Aldeia Cajueiro. Desembarcaram suas coisas com a alegria de terem finalmente chegado na terra de seu povo. Mas logo ali, ainda no porto, receberam a triste notícia: a aldeia que eles tanto almejavam não era a que procuravam. O local não pertencia aos Xipai, e, sim, aos Kuruaya, os ancestrais do pai de Ayumã. Por mais que ela também pertencesse a esse povo, Ayumã se sentia fortemente ligada à família de sua mãe, os Xipai. Seus filhos contam que ela não conseguiu esconder o forte abalo em seu coração ao receber a notícia.

Após passar por todo esse transtorno, o chefe do posto da Funai local ofereceu à família alojamento em uma casa de apoio do órgão na região. Depois de alguns meses, Ayumã e sua família ainda não se sentiam confortáveis em morar com as pessoas daquela aldeia, com quem não tinham muita afinidade.

Então, os Xipai resolveram mudar para uma região a 1 quilômetro da Cajueiro. Construíram casas e fizeram suas plantações. Agora parecia que, finalmente, a vida de Ayumã estava melhor. Mas Yupã Xipai, uma de suas filhas, conta como sua mãe se sentia naquele período: “Por mais que naquela época a vida da mamãe parecia melhor, ela ainda estava triste por não estar no meio do povo que ela cresceu [o povo de sua mãe]”. A vida de Ayumã foi se tornando mais agradável quando ela começou a reencontrar e relembrar dos rostos de primas e primos Kuruaya que ela tinha visto quando era apenas criança. Mas ela ainda sentia que algo faltava.

Yupã Xipai na Aldeia Tukamã, em frente à Casa do Meio: o lugar onde acontecem reuniões e festas e as pessoas se encontram para fazer artesanato. Foto: Mitã Xipai

Enfrentando os pistoleiros

A vontade da família de se mudar para o lugar de seus antepassados era conhecida por todos da região. Os Kuruaya também lutavam pelo reconhecimento de suas terras e a presença dos Xipai ali poderia representar a divisão do território entre os dois povos, o que ambos queriam evitar.

Um dia, em meados de 1994, um Kuruaya amigo da família indicou a eles um lugar no Rio Curuá, bem abaixo da Aldeia Cajueiro, onde no passado viveram Indígenas Xipai. O local, chamado Remanso, tinha sido mais recentemente uma antiga morada de Beiradeiros, mas estava abandonado. Talvez tivesse sido ali um dos lugares onde Ayumã passou sua infância. E a família decidiu, então, se mudar para lá.

Levaram apenas o que era realmente necessário para construir sua nova vida. Mas, ainda assim, pegaram emprestada uma canoa grande do chefe de posto da Funai e precisaram fazer quatro viagens, em plena época de seca, para levar toda a família, já aumentada com os netos.

À beira do Curuá, um rio estreito de águas cristalinas, eles se empenharam em construir seu novo lar. Por dias, os homens retiraram madeira da mata e a carregaram nos ombros para depois cortá-la e transformá-la em paredes de casas. A palha dos Coqueiros-Babaçu da região foi usada para cobrir o teto das novas moradas, que depois eram fechadas nas laterais com barro. Mas, três meses depois, Ayumã, seus filhos, noras, genros e netos tiveram a incerteza de que viveriam mais um dia.

Era outubro de 1994 quando pistoleiros, a mando do dono de uma antiga fazenda chamada Juvilândia, foram até o Remanso para expulsar a família da terra. A Juvilândia foi um dos casos mais escandalosos de apropriação de terra da região. Ela era um imenso latifúndio, de 1,3 milhão de hectares — tamanho de metade do estado de Sergipe. Segundo a Justiça apontou, em 2008 era composta por 34 títulos de terra fraudados, que acabaram, depois, revogados.

Na época, entretanto, seu dono era um homem poderoso e seus capangas expulsavam na base da ameaça Beiradeiros e Indígenas de suas casas para se apossar do território. Os pistoleiros afirmavam que o lugar onde a família de Ayumã fez morada pertencia a esse homem e, por ordem de seu patrão, podiam assassinar Ayumã e seus filhos caso eles não saíssem dali naquele mesmo momento. Diante de uma escolha tão difícil, em que sair da terra ancestral de seu povo depois de tanta procura significaria viver, já ficar seria claramente um “pedido” de execução, Ayumã e seus filhos decidiram enfrentá-los.

Os pistoleiros sacaram seus revólveres. Ayumã e seus filhos empunharam seus arcos e flechas. Era uma luta não apenas pela terra, mas por uma história, por dignidade e esperança de vida. Quando os pistoleiros viram que os Xipai não cederiam, recuaram e retornaram à sede da fazenda. A família de Ayumã continuou a sofrer ameaças de morte, mas não tinha a quem denunciá-las. Ao procurar os funcionários da Funai da região, escutou deles que o órgão não poderia protegê-los, pois não os reconhecia como Indígenas. Para eles, os Xipai eram um povo extinto.

Ao ouvir aquilo, Ayumã não se conformou. Como seu povo poderia estar extinto se ela estava bem ali?

A família de Ayumã foi, então, informada sobre um outro lugar onde seus ancestrais teriam vivido no passado, chamado pelos não Indígenas de João Martins. Antônio e os filhos botaram ali uma roça e, dentro de um mês, já tinham construído um novo lar. Em 24 de dezembro de 1994, Ayumã se mudou para lá com quase todos os seus filhos – um deles decidiu permanecer com sua família no Remanso, onde continuou por muitos anos a sofrer ameaças. Mas agora Ayumã não queria mais uma morada passageira. Decidiu que viveria para sempre ali e lutaria para transformar aquele lugar em uma aldeia. Queria ver seu povo reconhecido oficialmente pelo governo.

Pôr do sol: o igarapé anuncia a chegada à Aldeia Tukamã. Foto: Wajã Xipai/SUMAÚMA

Agora, sim, uma aldeia

A primeira medida de Ayumã foi mudar o nome daquele local. João Martins, uma referência a um santo de uma igreja que por anos catequizou e escravizou Indígenas no Brasil, virou Tukamã, que em Xipai significa arco. No começo de 1995, Tukamã não era só mais uma morada. Era, agora, a primeira aldeia que buscava o reconhecimento oficial do governo para o povo Xipai.

Ayumã era movida a coragem. Estava determinada a não deixar um povo ser sufocado e enterrado sem que ninguém soubesse. Mas essa luta foi de muita dificuldade. Por eles não terem o reconhecimento da Funai, a família não tinha direito a atendimento de saúde pela Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai). O martírio provocado por doenças, especialmente a malária, era algo muito angustiante, lembram os filhos de Ayumã. “Como a gente não tinha apoio da Funai e da saúde, o sofrimento era muito grande”, conta Yupã Xipai, uma das filhas de Ayumã, hoje cacica da Aldeia Yupá. “A gente adoecia muito e o único remédio era o do mato, que nossa mãe fazia para tomar. A gente tomava muito chá. Não morreu ninguém porque ela cuidou. O conhecimento da mamãe foi muito importante”, relembra ela, com olhar de saudade.

A falta de reconhecimento oficial da Funai fazia com que Ayumã e seus filhos viajassem com frequência a Altamira para cobrar seus direitos, mas eles sempre escutavam que não eram Indígenas e por isso não tinham direito algum.

Em uma dessas viagens, um dos filhos de Ayumã, Manoel Xipai, então cacique da Aldeia Tukamã, conseguiu uma conversa com o Cimi [Conselho Indigenista Missionário], que ofereceu ajuda. O órgão enviou um representante à Aldeia Tukamã para fazer alguns registros, como fotos, gravações e entrevistas com Ayumã e sua família.

Depois que ele ouviu a história de Ayumã, elaborou, com a ajuda da comunidade da Aldeia Tukamã, um documento para a Funai relatando a existência e a permanência do povo Xipai em seu território. Ayumã ficou contente, pois finalmente alguém havia se proposto a ajudar na luta dela e de seus filhos. Alguém havia visto seus esforços para tirar seu povo da “forca”. Ainda assim, a Funai não considerou o núcleo familiar de Ayumã como Indígena de imediato. Isso demorou mais de um ano para acontecer.

Essa foi mais uma das muitas lutas de Ayumã, uma mãe que ensinou seus filhos a persistir mesmo diante das dificuldades. Mesmo na luta, nunca se deixou abater ou esqueceu de repassar seu conhecimento para seus filhos.

De vestido azul, cabelo amarrado, pés cruzados, sentada em um pequeno sofá em sua sala, com as mãos manchadas de urucum e os dedos entrelaçados, Kamadï Xipai, de 43 anos, filha mais nova de Ayumã, conta: “A vida da minha mãe foi boa, entre família. Ela foi uma mulher guerreira, que sempre incentivava nós, os filhos. Sempre foi trabalhadora e nos falava dos nossos direitos. Foi uma vida também sofrida, porque a gente não tinha tudo. Aprendi muito com ela. Mesmo na dificuldade, ela sempre estava alegre, dando palavras de conforto e incentivo”.

Ayumã também gostava de celebrar com seus filhos. “Quando tinha rodada de caxiri [bebida tradicional Indígena feita de macaxeira ou mandioca-braba], junto da família ela vinha, dava uma olhada. Não era de dança, mas sempre participava, contava a história do pai dela, de quando vivia com ele na mata e moravam no Baú. Ela sempre estava conosco nos orientando, falando da nossa luta e que não ia ser fácil. Mas dizia que nós ia vencer”, lembra Kamadï Xipai, enquanto segura com as mãos o colar de miçangas em seu pescoço, manchando-o levemente com urucum.

Kamadï Xipai, filha de Ayumã: ‘A vida da minha mãe foi boa. Ela foi uma mulher guerreira, que sempre incentivava nós, os filhos. E nos falava dos nossos direitos’. Foto: Wajã Xipai/SUMAÚMA

Depois que a luta da família de Ayumã conseguiu o reconhecimento oficial da existência dos Xipai, outros parentes, de outras regiões, apareceram e também se declararam Xipai. Muitos antes não falavam que pertenciam ao povo ou nem sequer se assumiam como Indígenas por medo das perseguições do passado ou vergonha após terem sofrido por várias gerações com o racismo dos brancos.

Com a ajuda do Cimi e o reconhecimento da Funai de que a família de Ayumã era realmente Indígena, ela e seus filhos começaram a vivenciar o sonho tão almejado. Mas em 1996, quando a aldeia tinha apenas um ano, eles tiveram que ser fortes mais uma vez. Precisavam, agora, defender sua permanência na terra de origem.

Uma empresa latifundiária chamada Rondon Projetos Ecológicos apareceu e mandou Ayumã e sua família irem embora daquela terra, pois alegava que era dona do lugar. A Rondon era dona da Incenxil, que reivindicava ter títulos de uma fazenda que depois ficou conhecida como uma das maiores áreas griladas do Brasil. “Depois que nós chegou aqui, a gente se autenticou mesmo como donos da terra. Não aceitava nenhum tipo de ameaça mais”, diz Yupã Xipai. “Então, a gente enfrentou eles”, conta ela, que bate com as mãos na mesa e firma a voz ao relembrar de quando teve que lutar por sua terra.

Vendo que Ayumã e sua família não deixariam a terra que a Rondon Projetos Ecológicos alegava ser dela, a empresa optou por um ato não tão radical e, estranhamente, a suposta dona da terra resolveu ajudar as pessoas da Aldeia Tukamã. A empresa se propôs a pagar todo mês um salário de 180 reais a cada família e doar a elas cestas básicas. Após um tempo, viu que não era o suficiente e resolveu mandar uma quantidade ainda maior de mantimentos. Em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), aberta em 1999 na Assembleia Legislativa do Pará para investigar a CR Almeida, controladora da Rondon, a empresa afirmou que ajudava os Xipai para auxiliar na manutenção da aldeia e que tinha com eles um “relacionamento amistoso”.

A comunidade aceitou as doações porque tinha muitas dificuldades para conseguir alimentos da cidade. As cestas básicas complementavam o que eles obtinham da terra, como a mandioca, o cará e a banana.

A Rondon Projetos Ecológicos começou também a levar medicamentos para a aldeia e, já que a bondade da empresa parecia ser genuína e inacabável, ela resolveu até trazer médicos de São Paulo para atender Ayumã e seu pessoal. A única coisa que pediu em troca era que as famílias assinassem um documento. Segundo os funcionários da empresa, isso serviria para comprovar que a aldeia estava mesmo usufruindo dos bens doados.

Após um ano de convívio com Ayumã e sua aldeia, a Rondon Projetos Ecológicos construiu uma base no Entre Rios, local onde os rios Curuá e Iriri se encontram, a cerca de 2 quilômetros da Tukamã. Ali ficava um coordenador, responsável por fazer reuniões com a comunidade para avisá-los de mudanças pedidas pelo chefe dele e que levava os documentos a serem assinados após as doações da empresa. Apesar de saber ler, a família de Ayumã não entendia totalmente o conteúdo do papel que assinava.

Em 1998, dois anos depois da chegada da Rondon Projetos Ecológicos no território, Ayumã e seus filhos ouviram de alguns funcionários da empresa o que já desconfiavam.

O coordenador da base e outros dois trabalhadores, um homem e uma mulher, deixariam a função, mas antes quiseram fazer uma última viagem à Tukamã.

Ao chegarem na aldeia pediram para fazer uma reunião na qual a verdade sobre a empresa foi revelada. Eles alertaram Ayumã e seus filhos a não assinar mais nada, pois, sem saber, estavam, mês a mês, abrindo mão da terra onde moravam em troca de cestas básicas. Os ex-funcionários disseram também que a comunidade deveria tomar cuidado com o novo coordenador da base, pois ele era um homem mal e iria fazer de tudo para tomar a terra dos Xipai.

Após a chegada do novo coordenador todo tipo de “doação” da Rondon Projetos Ecológicos foi cortada. A empresa agora não precisava mais esconder suas unhas e presas. A família de Ayumã foi até a base para expulsar os funcionários. No entanto, o novo coordenador chamou um grupo de homens armados, que apontaram suas armas para os filhos e filhas de Ayumã com seus bebês no colo. Um passo à frente e eles precisariam enfrentar a morte? Não sabemos. Mas essa decisão eles não tomaram. Recuaram para sua aldeia, onde pensariam em outro jeito de tirar a empresa de sua terra.
Enquanto a família de Ayumã não encontrava solução para expulsar a Rondon Projetos Ecológicos, foi proibida de retornar à base e coagida dentro de sua própria aldeia.

Helicópteros sobrevoavam suas casas com homens que apontavam armas na direção dos moradores. Foram alguns dias de terror. Ayumã tinha medo de perder a vida e mais medo ainda de perder a vida de algum de seus filhos ou netos. Mas, se algo acontecesse, ela sabia que ia morrer junto com eles, pois ninguém ali fugiria da luta de proteger a sua terra ancestral. Fugir não está no sangue de seu povo. No sangue que ela e seus filhos carregam em suas veias. Fugir nem mesmo foi uma opção.

De 1999 a 2000, a comunidade da Aldeia Tukamã encontrou uma forma de lidar com a Rondon Projetos Ecológicos. Decidiu pedir ajuda ao único parceiro da comunidade, o Cimi [Conselho Indigenista Missionário]. Um representante da entidade foi até a Tukamã e lá, juntamente com a comunidade, elaborou documentos para denunciar a empresa e pedir o reconhecimento e delimitação da Terra Xipaya. O material foi enviado para a Funai.

Depois disso, o Cimi se disponibilizou a levar o cacique da Tukamã, que já era Luiz Xipai, um dos filhos de Ayumã, e outras pessoas da comunidade para movimentos em Brasília. Lá, eles participavam de grandes reuniões sobre demarcação e homologação de Terras Indígenas e de outros eventos que ajudassem a viabilizar o território do povo Xipai. Nesse processo, Ayumã foi diagnosticada, em 2004, com diabetes. Ela já estava com cerca de 70 anos e sua saúde ficou mais frágil.

Jabuti pintado em tecido com tala de bambu: o mais-que-humano é símbolo de força e resistência. Arte: Yãkyrixi Xipai

Enfim, nossa terra

De cabelos amarrados, deitada na rede em uma casa coberta apenas por palhas e cercada por telas de arame, Pakuã Xipai, de 54 anos, ajeita seus óculos enquanto relembra a rotina de Ayumã, sua mãe, depois do diagnóstico de diabetes. “Ela trabalhava muito na roça mais o pai. Eles plantavam, ela ia no mato com ele caçar, e ficava na luta do dia a dia junto com a gente, orientando o que tinha que fazer”, diz ela, ressaltando a força de sua mãe.

Depois que a comunidade Tukamã e o Cimi [Conselho Indigenista Missionário] se manifestaram pela saída da Rondon Projetos Ecológicos da Terra Xipaya, a Funai exigiu a retirada da empresa, que acabou investigada na Justiça. Em 2005, Ayumã e sua família tiveram mais uma vitória: a Rondon Projetos Ecológicos deixou o Território Xipaya.
O primeiro registro existente na Funai de pedido de reconhecimento e demarcação do Território Xipaya foi em 1994. Ele foi feito pela Pastoral Indigenista da Prelazia do Xingu, que, com a comunidade da Aldeia Tukamã, elaborou documentos para mandar à Funai. Eles queriam respostas quanto antes, pois temiam que a terra em que viviam pudesse sofrer mais assédios de grileiros.

Em 1996, a Funai reconheceu que os Xipai eram uma etnia Indígena não extinta. Mas somente em 1999 o órgão criou o primeiro Grupo Técnico para realizar estudos e levantamentos de identificação da Terra Indígena Xipaya. O trabalho foi coordenado pela antropóloga Maria Elisa Guedes Vieira, que foi a campo ainda em 1999.

Em abril de 2002, Maria Elisa entregou o “Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Xipaya” comprovando a existência histórica do povo Xipai na região dos rios Iriri, Curuá e Xingu desde ao menos 1750, quando o padre Roque Hunderfund fez os primeiros relatos de nossos ancestrais. O documento entregue pela antropóloga delimitava a extensão do território.

Alguns Xipai pediram, depois, um reajuste nessa área proposta pelo Grupo Técnico. A comunidade Nova Olinda, autora do pedido, que era composta por alguns descendentes de Xipai e pessoas não Indígenas, pediu à Funai que a deixasse de fora do processo de demarcação.

Em virtude do ocorrido, a Funai solicitou, em março de 2004, um novo estudo que readequasse a delimitação do Território Xipaya. O antropólogo designado para fazer o levantamento foi Antônio Pereira Neto, que ouviu a comunidade da Tukamã e os descendentes de Xipai da Nova Olinda em julho de 2004.

Após todo o estudo antropológico, Antônio Pereira Neto elaborou um relatório que comprovou a necessidade de readequação do Território Xipaya. Ele afirmou que, próximo ao local onde fica a comunidade Nova Olinda, há uma área que já teve acampamentos de garimpeiros e é alvo do interesse de mineradoras. Os Xipai temiam que isso atrapalhasse o andamento do processo de demarcação ou que a terra deles fosse alvo, após demarcada, de uma invasão de garimpeiros ilegais, o que geraria conflitos. Ayumã sempre ensinou aos seus filhos que garimpo era uma prática errada e que comprometia a Natureza. Por isso, o Território Xipaya ficou com uma área final de 178.624 hectares.

O relatório feito pelo antropólogo foi acatado pelo presidente da Funai e publicado no Diário Oficial da União em 2005. Após todos os trâmites burocráticos do processo de demarcação, o Ministério da Justiça declarou, em dezembro de 2006, a posse permanente dos Xipai da área delimitada.

“Quanta luta, quanta superação! Isso mostra que vocês terão a terra de vocês”, exclamou Ayumã ao saber que a equipe havia começado a demarcação, relembra Lúcia Xipai, sua filha. “Hoje temos um lugar demarcado, reconhecido que é uma Terra Indígena. Nunca deixe que as pessoas humilhem vocês pelo que é de vocês! Estou muito feliz porque eu sei que, mesmo que eu não fique aqui por muito tempo, estão todos juntos no lugarzinho de vocês. Tenho certeza que ficarão protegidos dentro da nossa terra.”

Decreto presidencial de homologação da TI Xipaya

O decreto da Presidência da República que homologou a demarcação da Terra Indígena, último passo necessário para assegurar a terra, aconteceu em 5 de junho de 2012. Foi uma nova vitória para a família de Ayumã. Uma família que tanto tinha sofrido em busca de sua terra, do reconhecimento de sua identidade, e agora tinha seu território demarcado e homologado.

Ayumã voltou para casa. E com ela estavam sua família e um novo caminho para o povo Xipai.

Parteira de um povo

Mesmo com a idade avançada, Ayumã nunca deixou o costume de acordar cedo e levar o café da manhã para seu marido na roça. Ela também gostava de colher seus frutos, pois sempre sonhou em ter seu próprio lugar para plantar. Abrir o galinheiro e conversar com seus animais era um cotidiano de muita alegria para ela. Seu quintal era sempre cheio de flores, que, ainda pela manhã, ela regava para que não morressem. Ao meio-dia, Antônio chegava da roça e o almoço já estava pronto: peixe, batata-doce e farinha na mesa não poderiam faltar, eram os alimentos preferidos dela.

À tarde, Ayumã descansava e, por volta das 4 horas, acompanhava seu velho, um apelido carinhoso que ela tinha para o nosso avô, até a roça. Chegada a noite, eles voltavam para casa e jantavam juntos. Logo iam dormir, pois o dia havia sido bem cansativo. Antes, ela agradecia a Tupã (nosso Deus) pelo dia e pelo trabalho. Essa vida foi a que Ayumã sempre almejou em seu coração.

Em 2004, quando Ayumã foi diagnosticada com diabetes, ela começou a fazer viagens frequentes para Altamira, onde passava por atendimento médico. Essas idas se intensificaram em 2010, mas ela sempre retornava à Aldeia Tukamã após algumas semanas. Em 2011, quando Ayumã tinha 77 anos, sua saúde se tornou mais frágil. Por isso, ela e Antônio se mudaram de vez para Altamira, onde ficaram aos cuidados de uma de suas filhas até 2014. Porém, mesmo que Ayumã já tivesse morado na cidade, ela nunca se acostumou com aquele estilo de vida e sempre que podia voltava à Tukamã para visitar sua família.

Um ano depois de ter se mudado para a cidade, Ayumã começou a sentir dores e viajou para Belém, onde realizou exames. Descobriu, então, que estava com câncer no fígado. A partir daí, a saúde dela só declinou. Mesmo com o tratamento para combater a doença, Ayumã Xipai, nossa avó, não aguentou. Morreu em 21 de fevereiro de 2017, aos 83 anos.

Lua crescente no céu dos Xipai: quando uma pessoa morre, ela entra em sono profundo e se transforma em Natureza. Foto: Wajã Xipai/SUMAÚMA

Futuro ancestral

Ayumã partiu, mas sua descendência não fez pouco-caso de sua história. Os ensinamentos dela ainda ecoam em cada ação no Território Xipaya. Pelo contato cedo e forçado com os não Indígenas, Ayumã não teve a chance de aprender a língua de sua mãe. Ela sabia falar apenas algumas palavras, entre elas karaxu (colher), asa (farinha) ou kuradada (sapo), entre outras. Não teve tempo para aprender muito sobre a cultura de seu povo. Mas nem por isso deixou de se sentir menos Xipai e sempre incentivou sua descendência a vitalizar sua cultura, o que seus filhos e netos têm feito.

Quando éramos crianças, Yupã Xipai, minha mãe (no caso, mãe de Wajã e tia de Yãkyrixi), nos incentivou a entender a língua. Ela aprendeu com anciãos Xipai, que tiveram contato com o idioma quando crianças e viviam em Altamira. Um dos filhos de Yupã, Jãdatari Xipai, decidiu se aprofundar nos estudos e hoje, aos 25 anos, domina o idioma e prepara um livro sobre o assunto.

Na Aldeia Tukamã, a professora Warawara Xipai, nossa prima, ensina aos mais jovens a língua que Ayumã sonhava aprender para passar aos seus filhos. Eu, Yãkyrixi, hoje escuto meu filho, Mãzukawa, de 2 anos, dizer iya (água), abi (bicho), taeta (se banhar), ou sawazi (crianças) antes mesmo de saber esses nomes em português. E sei que, no futuro, ele aprenderá a fazer os artesanatos que eu aprendi com meu pai.

Hoje no Território Xipaya já existem seis aldeias, quatro delas da família de Ayumã e duas de outros núcleos familiares Xipai.

Os conselhos de Ayumã sobre o território são até os dias de hoje ouvidos, mas agora quem os repete são seus filhos e netos. Todos os projetos elaborados em nossa terra buscam a proteção de nosso lar, a preservação de mais-que-humanes e o fortalecimento de nossa cultura. Pois esse era o sonho de Ayumã.

Hoje nossa avó vive seu sono profundo, mas a vemos em cada ensinamento que seus filhos passam para as gerações mais novas, nas plantações de nossas roças, nas histórias compartilhadas na porta de nossas casas ou nas rodas de caxiri. E, enquanto houver um Território Xipaya e a nossa família estiver morando lá, a história de Ayumã não chegará ao seu final.

Ela está na terra que conquistou para sua família e onde hoje está enterrada. Ela vive a cada encher e secar do Rio Iriri, rio que ela ensinou sua família a respeitar. Vive naquela mata, que mostrou à sua família como proteger. E no povo Xipai, um povo que ela fez se reerguer.

Esta é a história da vida de uma mulher Indígena. Esta é a história de Ayumã Xipai, a parteira de nosso povo.

Netas e bisnetas na Aldeia Tukamã: ‘Enquanto houver um Território Xipai e a nossa família estiver morando lá, a história de Ayumã não chegará ao seu final’. Fotos: arquivo pessoal


Wajã Xipai, 17 anos, é Indígena, fotógrafo, cineasta, ativista e jornalista-floresta do Micélio-SUMAÚMA. Neto de Ayumã.
Nasceu e vive até hoje no território do povo Xipaya, na Aldeia Yupá, na Terra do Meio, no Médio Xingu, Pará, Amazônia brasileira, onde junto com outros jovens coordena a rede Sekamena de comunicadores Xipai, que busca fortalecer a comunicação e mostrar a cultura do seu povo.

Yãkyrixi Xipai, 21 anos, é Indígena, artesã, formanda em técnica de enfermagem, jornalista-floresta do Micélio-SUMAÚMA. Comunicadora da rede Sekamena, ativista e neta de Ayumã. Nasceu no território do povo Xipaya, na Aldeia Tukamã, na Terra do Meio, no Médio Xingu, Pará, Amazônia brasileira, e atualmente se divide entre a aldeia e a cidade de Altamira até terminar seus estudos. Ao longo do programa de coformação, percebeu que dentro da sua comunidade os jovens precisavam saber mais sobre a sua história para fortalecer ainda mais suas raízes. Foi aí que surgiu a vontade de escrever a reportagem sobre a parteira de seu povo.

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O Programa de Coformação de Jornalistas-Floresta Micélio-SUMAÚMA foi iniciado em maio de 2023. No total, 14 pessoas do Médio Xingu (quatro Indígenas, três Beiradeiros, uma Quilombola, uma camponesa, uma pescadora, uma enfermeira de saúde Indígena e jovens urbanos de Altamira) participam de encontros na floresta e na cidade, são acompanhadas por “sementoras” – jornalistas seniores de SUMAÚMA – e também as acompanham, porque a coformação é real e conjugada no cotidiano. Nesta reportagem-memória, que conta a história do povo Xipai, a sementoria foi de Talita Bedinelli.

Coordenado por Raquel Rosenberg, cofundadora do Engajamundo, o método pedagógico do Micélio-SUMAÚMA deliberadamente escapa de qualquer ortodoxia. O programa, idealizado por Eliane Brum (também responsável pela supervisão e pelo conteúdo) e Jonathan Watts, mantém o rigor, a responsabilidade e a precisão do jornalismo tradicional.

Micélio-SUMAÚMA conta ainda com a consultoria de cuidados da psicanalista Ilana Katz e a produção de Thiago Leal. A administração financeira é de Mônica Abdalla e Marina Borges é a assistente administrativo-financeira. Micélio-SUMAÚMA é apoiado por Moore Foundation e Google News Initiative.


Reportagem e texto: Yãkyrixi Xipai e Wajã Xipai
Edição: Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Infográficos: Rodolfo Almeida
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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