Jornalismo do centro do mundo

Vista aérea de ruas inundadas no bairro Sarandi, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 5 de maio de 2024. Foto: Carlos Fabal/AFP

É só o começo. Esta é a verdade desconfortável da qual não podemos escapar quando olhamos para as imagens da colossal devastação no Rio Grande do Sul.

Uma das piores e mais intensas inundações da história do Brasil levou pelo menos 149 vidas, forçou a evacuação de mais de meio milhão de pessoas (incluindo vários integrantes e parentes da comunidade SUMAÚMA) e deixou cerca de 2 milhões sem eletricidade nem água potável. Imagens surreais de estradas transformadas em rios e estádios de futebol convertidos em lagos, além de um cavalo preso num telhado, superaram as expectativas de uma realidade estável. Cidades inteiras ficaram à deriva. E a certeza parece ter perdido o rumo.

Nesta edição, publicamos um angustiante artigo de opinião escrito por uma moradora de Porto Alegre, a bióloga e jornalista Jaqueline Sordi. Ela questiona os motivos de inúmeros avisos terem sido ignorados e explora o jogo fútil de culpabilização entre políticos que pouco ou nada fizeram para resolver os problemas em sua raiz. Outra voz do Rio Grande do Sul que participa desta edição é a do artista de SUMAÚMA Pablito Aguiar, que vive em Alvorada. Ele entrevistou pessoas de cidades próximas a Porto Alegre e desenhou as situações tristes e desesperadoras em que muitas se encontram agora.

Um cavalo foi encontrado preso em um telhado em Canoas, no estado do Rio Grande do Sul. Maio de 2024. Foto: reprodução do ‘Jornal Nacional’/TV Globo

Não será a última vez que iremos testemunhar tais cenas no Brasil e no mundo. No mês passado, vimos destruição semelhante em Dubai e na província de Guangdong (Cantão), no sul da China. Em 2023, milhares morreram em inundações na Líbia. Alguns anos antes disso, cemitérios na Alemanha foram despojados de seus mortos por uma inundação-relâmpago. Em todo o planeta, são histórias cada vez mais comuns, que vão se repetir, tornando-se mais frequentes e mais destrutivas enquanto a humanidade continuar queimando árvores, petróleo, gás e carvão. Essas são as atividades que aquecem o planeta e desestabilizam o clima. Elas potencializam os impactos dos desastres naturais causados pela ação ou pela omissão humana.

É claro que a Terra sempre teve chuva e inundações, mas elas estão mais intensas e frequentes. O planeta está, hoje, entre 1,2 grau Celsius e 1,3 grau Celsius mais quente do que antes da Revolução Industrial. Esse calor adicional significa que a atmosfera retém 8,4% mais umidade do que era capaz há 200 anos. O resultado são mais inundações e tempestades intensas, bem como outros tipos de condições meteorológicas extremas, como secas, incêndios florestais e ondas de calor.

Como SUMAÚMA advertiu no ano passado, trata-se de uma calamidade para a vida humana e mais-que-humana. Tornou-se mais difícil cultivar alimentos e prevenir doenças. Na semana passada, a Organização Meteorológica Mundial relatou dezenas de milhares de mortes relacionadas com o clima na América Latina em 2023, além de pelo menos 21 bilhões de dólares de danos econômicos e a “maior perda calórica” [por causa da crise climática, as pessoas têm acesso a menos calorias do que precisam] já registrada em qualquer região.

A onda de calor em curso – e as inundações e secas a ela associadas – talvez tenha sido vista por alguns, no início, como algo atípico, um ponto fora da curva. Mas o fato é que os acontecimentos assustadores são cada vez mais frequentes num mundo que flutua na crescente instabilidade climática. O professor Jose Marengo, diretor do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, disse que os cálculos antigos já não se aplicam: “Falar de um evento do tipo que só acontece uma vez a cada 100 anos não funciona como antes. Foi assim que descrevemos a seca da Amazônia de 2005. Mas depois vieram as de 2010, 2016 e 2023. São quatro eventos de ‘uma vez a cada 100 anos’ em menos de 20 anos”, advertiu. E isso é apenas o começo.

Vista aérea da cidade de Beruri, no Amazonas. Em setembro de 2023, a região foi atingida por uma seca severa e sofreu com a fumaça do desmatamento ilegal. Foto: Michael Dantas/SUMAÚMA

Os impactos climáticos se aceleram mesmo quando os sistemas climáticos desaceleram. Um preocupante fenômeno recente faz com que as frentes frias e quentes fiquem presas, isso significa que mais chuva ou mais calor permaneçam concentrados num local por mais tempo, aumentando seu poder destrutivo. No caso de Porto Alegre, Marengo explicou que uma frente fria vinda do sul se combinou com uma forte umidade da Amazônia, ao norte, e em seguida estagnou acima da cidade porque uma seca no centro do Brasil “operou como uma parede” e prendeu ali o sistema de chuva.

Muitos desses problemas foram corretamente previstos. No fim de 2023, Francisco Eliseu Aquino, professor de climatologia e oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, disse que a queima de combustíveis fósseis criou uma dinâmica “assustadora” entre os polos e os trópicos. Frentes frias e úmidas da Antártida interagiram com calor recorde e seca na Amazônia para criar tempestades sem precedentes no meio desses dois pontos.

Para Aquino, as inundações do ano passado no sul do Brasil, que mataram 54 pessoas no início de setembro e depois voltaram com força devastadora semelhante em meados de novembro, foram uma amostra do que viria com o mundo entrando em níveis perigosos de aquecimento. “A partir deste ano, vamos entender concretamente o que significa flertar com 1,5 grau Celsius [de aquecimento] na temperatura média global e veremos novos recordes de desastres”, avisou o professor, de forma premonitória.

Mesmo assim, indústrias e políticos continuam piorando o cenário. Enquanto tentam dar um verniz ambiental a suas atividades com promessas vagas e políticas fracas para reduzir as emissões e proteger os ecossistemas, a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera segue aumentando. O mês de março registrou o maior salto já visto de emissões desse gás de efeito estufa que ajuda a aquecer o planeta.

Não à toa, as temperaturas globais também batem recordes nada bem-vindos. O mês passado foi o abril mais quente da história. Foi o décimo primeiro recorde mensal consecutivo do mundo – uma onda quente alucinante impulsionada principalmente por atividades humanas, juntamente com um evento natural, o El Niño. Uma pesquisa recente com centenas de cientistas do clima descobriu que a maioria esperava que o aquecimento global ultrapassasse o objetivo acordado internacionalmente de 1,5 grau Celsius e subisse para além de 2,5 graus Celsius, ou mesmo 3 graus Celsius. Imaginem a gravidade e a intensidade de secas e inundações se atingirmos esse estágio.

O desmatamento piora tudo. Vários estudos mostraram que a Floresta Amazônica regula a precipitação numa ampla área da América do Sul. Quando árvores são cortadas ou queimadas, sua área circundante fica mais seca e quente. A ciência provou de forma eficaz o que os povos Indígenas têm dito há séculos: eles fazem parte de uma floresta que sustenta o céu. No entanto, aqueles que anunciam a catástrofe climática protegendo a floresta vivem sob constante ameaça.

Nesta edição, SUMAÚMA publica registros históricos inéditos do fotógrafo e antropólogo Milton Guran, que captou as primeiras imagens dos Arara da Terra Indígena Cachoeira Seca, um povo que, à época, vivia isolado no Pará. Em 2018, Guran voltou à floresta dos Arara, onde encontrou um processo avançado de etnocídio.

Em 2018, na Terra Indígena Cachoeira Seca, Tibie Arara segura a própria fotografia feita em 1987. Foto: Milton Guran

A premiada repórter Catarina Barbosa também contribui com dois trabalhos sobre temas relacionados: um obituário (que em SUMAÚMA chamamos de Viviário) de Osvalinda Pereira, que denunciou os ladrões de terras na região da Terra do Meio, no Pará, e uma história chocante – registrada também nas fotografias de Soll – sobre os medos das crianças no Assentamento Dorothy Stang, em Anapu. Soll e Catarina contam que os grileiros queimaram duas vezes a escola comunitária para tentar assustar os moradores.

O fato em si já é monstruoso. Também é insano que o governo não esteja cuidando daqueles que velam pela floresta onde esses pilares da estabilidade climática são mais necessários do que nunca. Não há pessoas suficientes fazendo essa conexão.

Os arquitetos de Porto Alegre estão reconhecendo que a cidade precisa ser redesenhada. O concreto e o asfalto colocados sobre praticamente cada centímetro das áreas urbanas criaram armadilhas fatais ao permitir que as torrentes de água fluam rapidamente, dificultando a fuga da população durante chuvas fortes e inundações. Prejudicando em especial o deslocamento de grupos vulneráveis, como o das pessoas velhas.

Agora, os urbanistas querem mais espaços verdes e abertos, mais árvores e solos permeáveis e pantanosos que possam absorver as chuvas. Faz sentido, mas por que ficar só nisso? A mesma lógica que se aplica à cidade vale para o mundo. O planeta inteiro precisa de amortecedores climáticos. As florestas, os oceanos, as zonas úmidas e os outros biomas sempre absorveram os excessos. São eles, afinal, que viabilizam a capacidade da Terra de se adaptar às mudanças. Ou seja: para que essa tecnologia natural funcione, temos de cuidar da floresta e de seus cuidadores.


Texto: Jonathan Watts
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o português: Denise Bobadilha
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Editora de fotografia: Lela Beltrão
Fluxo de edição, montagem e finalização: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de redação: Eliane Brum

Ana Clara, de 6 anos, no Assentamento Dorothy Stang, em Anapu. Sua escola já foi incendiada duas vezes. Foto: Soll/SUMAÚMA

© Direitos reservados. Não reproduza o conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita de SUMAÚMA