Jornalismo do centro do mundo

Queimada na mata no município de Alta Floresta, estado de Mato Grosso (julho de 2020). Foto: Christian Braga/Greenpeace

Talvez você ainda não esteja sentindo, mas o clima do planeta está num movimento tão fora dos padrões que alguns cientistas olham para os dados com um misto de descrença e horror. Outros meteorologistas avisam que essas alterações são exatamente o que devemos esperar agora que entramos em outro período do El Niño, fenômeno climático irregular que impulsiona o aquecimento global por um período que pode durar de vários meses a vários anos. Para aqueles que vivem na Amazônia – ou dependem de sua função como reguladora das chuvas –, a questão é: como a floresta responderá durante a próxima temporada de queimadas?

O choque climático atual se tornou evidente inicialmente em locais desabitados ou ermos: a estratosfera, a Antártida e a superfície do oceano Atlântico. Desde maio, as medições da temperatura ou do gelo nesses locais começaram a se desviar dos padrões esperados de uma forma perturbadora.

Sabemos há muito tempo que o clima está aquecendo e que o gelo está derretendo. São fatos que agora fazem parte das nossas expectativas básicas sobre o clima global. Infelizmente, o novo normal é que o mundo está cada vez mais quente e mais instável.

Os últimos acontecimentos, porém, passaram longe de qualquer constância. Eles assumiram uma forma diferente. Uma olhada rápida nos gráficos climatológicos dá a impressão de que alguém esbarrou nos instrumentos de medição e empurrou o cabeçote da impressora para cima, na direção do topo da página, mais ou menos como se uma agulha arranhasse um disco de vinil.

Adaptação para a identidade visual de SUMAÚMA: Rodolfo Almeida

As temperaturas do mar e as medições da extensão do gelo geralmente formam um arco suave que se acumula ano após ano, de acordo com a estação e com a pressão crescente das emissões humanas de dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa. No entanto, em maio e junho de 2023, elas parecem ter perdido seu senso de direção e viraram abruptamente para cima, em um temerário novo território.

Vejo gráficos de clima há mais de uma década e nunca encontrei nada assim. Fiquei mais tranquilo ao pensar que sou jornalista e não cientista, e por isso talvez esteja fazendo uma interpretação exagerada: talvez isso não seja tão incomum quanto parece. Decidi então verificar o que diziam as contas do Twitter de cientistas que eu sigo.

O climatologista americano Brian McNoldy calculou que as temperaturas da superfície do Atlântico Norte estavam tão acima da média em 10 de junho que eram “uma maluquice total”. “As pessoas que olham para esse material de forma rotineira não acreditavam no que viam. Algo muito estranho está acontecendo”, afirmou. O cientista calculou que havia “uma chance em 256 mil de observar o que estamos observando”. “Isso vai além do extraordinário”, disse.

Qualquer esperança de que isso fosse um desvio desapareceu nos dias posteriores. O calor bizarro do oceano aumentou. McNoldy afirmou que os resultados questionam a própria ciência ao usar dados do passado para estimar a probabilidade de eventos climáticos extremos.

Outros cientistas climáticos ainda mais influentes, como Michael Mann e Zeke Hausfather, dizem que não há necessidade de entrar em pânico, porque esses aumentos acentuados a curto prazo podem ser explicados pela mudança de uma fase de resfriamento do fenômeno La Niña, no Pacífico, para um El Niño mais morno, o que em geral traz um clima mais quente para grandes partes do mundo.

A constatação alivia um pouco o mistério da forma estranha dos gráficos, mas não é tranquilizadora. As imagens confirmam que uma situação já ruim está prestes a piorar por causa do El Niño. O fenômeno ampliará as tendências globais de aquecimento, o que provavelmente levará a secas e tempestades mais intensas, com destruição e sofrimento generalizados.

Queimada de grande porte no município de Apuí, Amazonas. Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real

Aumento dos eventos extremos

Recentemente, a humanidade começou a sentir os efeitos desse choque inicial do El Niño em muitas partes do mundo. No mês passado, a fumaça de incêndios florestais históricos no Canadá sufocou a cidade de Nova York. Nas últimas semanas, várias cidades do México, como Chihuahua, Nuevo Laredo e Monclova, registraram quebras de recordes de seus dias mais quentes da história. Porto Rico e muitas cidades do Texas, nos Estados Unidos, sofreram as piores ondas de calor já vistas. O mesmo acontece na China, onde em mais de 20 cidades, como Shandong, Tianjin e Huairou, ocorreram novos picos de temperatura. Na Europa, a cidade austríaca de Oberndorf pareceu derreter sob inusitados 36,1 graus Celsius à meia-noite, uma das mais altas temperaturas noturnas verificadas no continente. No Oriente Médio, a população está acostumada com o calor, mas mesmo assim encontra algum alívio térmico em grandes altitudes. No entanto, não foi o que aconteceu na cidade iraniana de Saravan, onde os termômetros registraram 45 graus Celsius – um dos dias mais quentes vividos no planeta a uma altitude de mais de 1.000 metros.

Tempestades estão se formando no Atlântico mais cedo do que o normal como resultado da energia extra que vem se acumulando na camada superficial do oceano. Pela primeira vez, o mês de junho registra atualmente duas tempestades tropicais simultâneas no Atlântico, nomeadas Bret e Cindy. Para piorar a situação, há também sinais de longo prazo de que os condutores globais do clima – os giros oceânicos e as correntes de ar na atmosfera – estão mais brandos, o que significa que os sistemas meteorológicos ficam temporariamente parados. Com isso, as ondas de calor e tempestades se alongam, causando mais danos.

Mas o que tudo isso tem a ver com a Amazônia? Os cientistas mostraram que a floresta tropical sofreu um aquecimento e secas graves de forma incomum durante dois grandes períodos de eventos do El Niño (de 1997 a 1998 e de 2014 a 2016). Os impactos variaram segundo a região: em 2015, a Amazônia Oriental, fortemente desmatada, foi mais afetada pela seca, enquanto a floresta mais saudável, na Amazônia Ocidental, recebeu mais chuva.

Há um forte risco de esse cenário se repetir. Só que, desta vez, a floresta está muito mais fragilizada. Desde 2015, muitas áreas sofreram desmatamentos e degradação, o que diminui a resiliência do ecossistema ao fogo e à seca. As agências de proteção florestal também perderam poder de fiscalização nos últimos anos e muitos grileiros e fazendeiros passaram a acreditar que vão desfrutar de impunidade se acabarem com a floresta usando o fogo.

Vivemos um momento de importância vital. Temos de reconhecer que estamos numa situação de emergência dentro de uma situação de emergência. Todos os impactos serão amplificados. O El Niño acaba de começar, e as tendências anteriores sugerem que ele vai aumentar de intensidade nos meses, e possivelmente anos, à frente. Ainda não sabemos o tamanho de sua influência nem quanto tempo ele vai durar, mas os primeiros sinais têm sido terríveis.

Se este El Niño se revelar severo e prolongado – e a experiência passada sugere que poderá haver uma calamidade na Amazônia em uma escala nunca vista antes –, o que poderá ser feito? Ainda há incerteza, mas as precauções fazem sentido. Os habitantes das florestas e os governos locais devem se preparar para uma seca severa e fortalecer sua capacidade de resposta às queimadas. O governo central precisa fortalecer rapidamente as leis de proteção florestal, as agências de aplicação da lei e as punições para quem provoca incêndios. Mesmo o Congresso, dominado pelo agronegócio, precisa reconhecer os riscos maiores que os habituais que a floresta enfrenta.

A floresta é o principal regulador climático da região e o melhor baluarte contra impactos do tipo El Niño. Sem uma Amazônia forte, os riscos de uma seca em outros lugares do Brasil aumentarão. Quanto mais rapidamente todos perceberem que enfrentamos um risco excepcional, maior a nossa chance de manter um clima reconhecível. O choque do El Niño não deve provocar apenas uma disrupção – mas, sim, energizar os esforços.


Revisão ortográfica (português): Elvira Gago

Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza

Tradução para o português: Denise Bobadilha
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Montagem da página: Viviane Zandonadi

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