O Ministério Público Federal e o Ministério Público do Pará divulgaram nesta semana uma nota técnica para orientar promotores e procuradores sobre a proteção dos direitos de povos indígenas, comunidades tradicionais e quilombolas nas negociações com empresas que oferecem contratos de geração de créditos de carbono a partir da conservação da floresta. Como mostrou reportagem publicada em junho por SUMAÚMA, na Amazônia essas populações vêm sendo assediadas por empresas para assinar compromissos considerados abusivos. Além disso, há casos de negociantes privados que alegam ser donos de fazendas sobrepostas a unidades de conservação.
A nota técnica, escrita pelos centros de apoio operacional dos direitos humanos e de meio ambiente do Ministério Público do Pará, afirma que todas as negociações de contratos de carbono devem ser acompanhadas pelos órgãos públicos responsáveis pelos territórios, como, em nível federal, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Isso se aplica também aos quilombolas, que têm a propriedade coletiva de suas terras – os indígenas têm o usufruto exclusivo e outras comunidades tradicionais têm a concessão das áreas que ocupam. De acordo com o documento, o acompanhamento de autoridades é necessário porque os quilombos são territórios “especialmente protegidos” e fazem parte do patrimônio cultural do país.
Em todos os casos, porém, a decisão de assinar ou não os contratos deve respeitar a “autonomia” e a “livre determinação” das populações e suas instâncias de deliberação. A nota técnica diz também que a consulta prévia, livre e informada, prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na legislação brasileira, deve ser realizada pelo poder público, e não pelas empresas privadas, com ampla participação de indígenas e populações tradicionais. Eles devem aprovar protocolos, decidir como o dinheiro obtido com a venda dos créditos será repartido e têm o direito de preservar seus modos de vida tradicionais.
Sobre essa preservação, o documento cita uma análise da antropóloga Andrea Oliveira, da Universidade Federal do Paraná, na qual alerta que a relação dos povos indígenas e tradicionais com a floresta não é a mesma do mercado de carbono ou de pessoas que não vivem nessas terras. Esses povos não se veem como “conservadores” dos biomas, mas como “construtores dos seus espaços”, diz. Já as empresas pretendem comprar “a gestão não apenas de parte das florestas, mas da vida e futuro” das comunidades.
A nota técnica diz ainda que os contratos devem ser públicos e registrados em cartório, e recomenda providências para o cancelamento de Cadastros Ambientais Rurais declarados por particulares que se sobreponham a terras públicas em projetos de carbono. Afirma também que as companhias que certifiquem ou comprem os créditos devem ter a obrigação de realizar auditorias para garantir que os direitos das comunidades estão sendo protegidos, além de criar ouvidorias para receber denúncias externas.
Finalmente, o documento recomenda a inclusão nos contratos de uma “cláusula de flexibilização”, para permitir sua revisão a pedido das comunidades. Propõe ainda que eles contemplem garantias para a repartição de benefícios não previstos originalmente, mas que tenham origem nos conhecimentos tradicionais e recursos naturais dos territórios.
A iniciativa do Ministério Público tenta suprir a ausência de normas unificadas para esses contratos, uma vez que os negócios de geração e venda de créditos de carbono ocorrem no chamado “mercado voluntário”, que não é regulado pelo governo. Analistas chamam alguns dos agentes desse mercado de “caubóis do carbono” por causa da disputa feroz por terras públicas que têm grandes extensões de florestas preservadas. O documento de 69 páginas informa que já existem quatro procedimentos abertos pelo Ministério Público do Pará e dez pelo Ministério Público Federal no Pará para acompanhar ou investigar negociações entre empresas e povos indígenas ou tradicionais.
Esses procedimentos, diz a nota técnica, tratam de contratos em que foram constatadas diferentes irregularidades, como a falta de autorização do órgão público gestor, a presença de “cláusulas abusivas ou ilegais” ou a inexistência de consulta livre, prévia e informada às comunidades. Além disso, os contratos não são públicos e não deixam claro como serão divididos os eventuais benefícios dos projetos de carbono. A reportagem de SUMAÚMA é um dos textos citados no documento, ao lado de outras reportagens e estudos acadêmicos.
O governo Lula pretende incluir cláusulas de proteção aos povos indígenas e tradicionais no projeto que está preparando para a criação de um mercado de carbono regulado no país. Caso o projeto seja aprovado pelo Congresso, sua implementação deverá demorar dois anos.
Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Montagem da página: Érica Saboya