Jornalismo do centro do mundo

Telhado da casa coletiva na comunidade Monopi, na Terra Indígena Yanomami. Foto: Ana Maria Machado/ISA

Há um ano, SUMAÚMA revelou ao mundo que 570 crianças com menos de 5 anos morreram de causas evitáveis durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (PL), entre 2019 e 2022. Mostrou também que havia um genocídio em curso. No dia seguinte, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi a Boa Vista, capital de Roraima, com uma comitiva de ministros, para ver a situação de perto e demonstrar, com seu gesto, que havia governo, que estava presente e que se preocupava com a população indígena. Era o primeiro mês de um presidente realmente democrata no poder, depois de quatro anos com um extremista de direita operando uma máquina de ódio para dividir a população e estimulando a invasão das terras indígenas e unidades de conservação por garimpeiros, madeireiros e grileiros, que chamava, maliciosamente, de “fazendeiros, produtores rurais, homens de bem”. Bolsonaro, como os fatos e as estatísticas provam, levou a Amazônia para mais perto do ponto de não retorno e fez escalar a situação sanitária crítica da população Yanomami, já evidente em governos anteriores. Lula decretou emergência – o Brasil e o mundo respiraram.

Um ano depois, porém, é com muita dor que, após rigorosa apuração, SUMAÚMA precisa afirmar: apesar de gastar pelo menos 1 bilhão de reais e enviar quase 2 mil profissionais de saúde para a Terra Indígena Yanomami em 2023, o que mostra evidente vontade política de resolver o problema, o governo Lula fracassou em expulsar de forma definitiva os garimpeiros ilegais, parte deles ligada ao crime organizado, e fracassou em reduzir – de forma significativa – o número de doentes e de mortos. Lula reconheceu essa realidade com seu gesto de chamar os ministros para afirmar, em 9 de janeiro: “A gente vai decidir tratar a questão de Roraima e a questão indígena e a questão Yanomami como uma questão de Estado. […] Essa reunião aqui é para definir de uma vez por todas o que o nosso governo vai fazer para evitar que os Indígenas brasileiros continuem sendo vítimas de massacre”.

Criança Yanomami desnutrida é atendida na Casa de Saúde Indígena, em Boa Vista, capital de Roraima. Foto: Lalo de Almeida/Folhapress

É importante que um presidente se mova e reforce princípios e compromissos. Mas a sensação perturbadora é de que voltávamos um ano no tempo, porque tudo isso já havia sido dito e prometido. Desde sempre os Yanomami – e todos os Indígenas – são questões de Estado, por determinação constitucional. Não é algo que possa ser “decidido”. E voltar um ano depois para definir “de uma vez por todas” o que o governo vai fazer diante de uma catástrofe sanitária em que pessoas morrem é eticamente complicado.

Lula claramente colocou o fracasso na conta de uma guerra muito difícil, o mesmo caminho seguido pela comunicação do governo para amenizar, junto à imprensa e à opinião pública, o peso de fracassar no enfrentamento de um genocídio. Em nenhum momento o governo reconheceu e avaliou – pelo menos publicamente – os equívocos cometidos pela gestão da operação de saúde no território, a partir do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE) Yanomami, instalado no início do ano passado. A população merece entender, com transparência, o que aconteceu. Sem reconhecimento e revisão dos erros e dificuldades que custaram – e seguem custando – vidas, é impossível garantir eficácia nos dias que virão.

Tampouco foi tocada a responsabilidade evidente das Forças Armadas no fracasso da expulsão dos garimpeiros. É como se o governo estivesse refém dos fardados – e para isso é ilustrativo o fato de que não houve responsabilização dos comandantes militares na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023. Ou as Forças Armadas cumprem seu papel constitucional, no qual estão subordinadas ao governo, ou o Brasil segue em estado de golpe. No caso dos Yanomami, as Forças Armadas demonstraram uma autonomia perigosa ao desempenhar um papel decisivo tanto na permanência dos garimpeiros que nunca deixaram o território quanto no retorno daqueles que partiram ou foram expulsos pelas operações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. É importante reconhecer que o Ibama – com menos recursos humanos, materiais e estruturais do que seria necessário – desempenhou suas funções com competência.

Comandantes das Forças Armadas, fortemente criticadas por sua omissão diante do genocídio Yanomami, batem continência para Lula em abril de 2023. Foto: Ricardo Stuckert/Presidência Brasileira/AFP

Quando mais uma vez ministros foram ao estado de Roraima para testemunhar a situação crítica dos Yanomami, as ausências da ministra da Saúde, Nísia Trindade, e do ministro da Defesa, Múcio Monteiro, foram eloquentes. O atendimento de saúde para garantir o fim da desnutrição, das doenças por causas evitáveis e das mortes está visceralmente ligado ao fim do garimpo ilegal na Terra Indígena.

Em reportagem desta edição, SUMAÚMA ouviu lideranças indígenas e profissionais de saúde que atuaram na Terra Indígena Yanomami durante a força-tarefa, para contar ao público por que a operação do governo fracassou, apesar das evidentes boas intenções. O quadro que se desenha no depoimento de pessoas de reconhecida competência em suas áreas aponta, por um lado, o desconhecimento de como operar em campo numa situação de emergência sanitária, um tipo de trabalho que exige muita especialidade e muita experiência anterior em situações reais de enfrentamento. Por outro lado, os relatos mostram que houve enorme dificuldade por parte do governo de escutar aqueles que tinham experiência acumulada tanto com a população Yanomami quanto com a execução de operações de emergência.

Em entrevista nesta edição, o médico Cláudio Esteves de Oliveira, coidealizador e cogestor da experiência comprovadamente mais bem-sucedida no território Yanomami, executada entre o fim dos anos 1990 e o início dos anos 2000, resume numa frase a combinação explosiva que parece ter causado o fracasso do governo na área da saúde: “A arrogância é a mãe da ignorância: o governo desprezou a experiência acumulada sobre os Yanomami”. Em outro artigo, o geógrafo Estêvão Benfica Senra, profissional com mais de uma década de trabalho com a população Yanomami, faz uma radiografia precisa: “Confio que o presidente Lula, depois do que viu em Roraima [no início de 2023], esteja de fato sensibilizado com a penúria Yanomami. Mas, como sabemos, o inferno está cheio de boas intenções. Não basta querer mudar uma realidade sem antes se dispor, ao menos, a conhecê-la. Especialmente uma realidade tão complexa como a da Terra Indígena Yanomami”.

É preciso lembrar ainda que Lula e o PT têm, desde o primeiro mandato, uma relação complicada com as organizações não governamentais de saúde indígena. Foi seu governo que desmantelou o atendimento bem-sucedido no território Yanomami no início dos anos 2000, para voltar a aparelhar a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), atendendo à pressão de políticos do calibre de Romero Jucá (MDB). Com a intenção de justificar o injustificável, colocou ONGs como a Urihi Saúde Yanomami sob suspeição. Para que os leitores possam entender bem esse capítulo vergonhoso da história, republicamos aqui a reportagem especial feita por SUMAÚMA no primeiro semestre de 2023. Desde essa mudança no sistema, o atendimento à saúde dos Yanomami piorou. Quando Bolsonaro assumiu, com seu projeto de abrir as terras protegidas da Amazônia para exploração predatória para lucros privados, teve o trabalho apenas de abandonar a assistência pouco mais que precária que era feita, apesar do empenho quase heróico dos profissionais de saúde que trabalhavam em campo lutando contra a falta de condições e recursos. Com o estímulo do extremista de direita à invasão garimpeira, configurou-se o genocídio.

Fazer jornalismo com independência, rigor e precisão costuma desagradar a muitos. Num país altamente polarizado, como é o caso do Brasil e de grande parte das nações do mundo, atualmente, as pessoas só gostam de jornalismo de qualidade quando expõem os problemas do lado opositor. Ou quando concorda com suas opiniões. SUMAÚMA enfrenta esse senso comum. Trabalhamos com o peso da responsabilidade de quem compreende que a imprensa é crucial numa democracia e seu compromisso é com a busca dos fatos e com a restauração da verdade, independentemente de quem está no poder e de nossas escolhas políticas pessoais.

O jornalismo é essencial para o controle social dos governos – e sem controle social não há democracia. Um governo efetivamente democrático compreende isso, porque o ajuda a aprimorar suas ações, e governar bem é o objetivo maior – ou deveria ser – de quem está no poder. O mesmo vale para um povo efetivamente comprometido com a democracia, cujas paixões pessoais não o impedem de enxergar os fatos e se mover a partir da verdade. Faço esse parêntese porque é evidente nas respostas agressivas que recebemos – e que às vezes se tornam perigosas porque SUMAÚMA é baseada numa região de alto risco – que a busca da verdade é incômoda para todo o espectro ideológico.

Ao se manifestar, em Roraima, junto a outros ministros da comitiva deste mês de janeiro, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, enfatizou o compromisso do governo com a realidade e a transparência – e sem autoengano. É um compromisso fundamental, que deveria se estender transversalmente a todo o governo – e inspirar a militância.

Como está explícito no manifesto de fundação de SUMAÚMA, seguiremos fazendo o melhor jornalismo para colaborar para o aprimoramento e a ampliação da democracia e a proteção da natureza e de seus povos. Contamos com a avaliação crítica de nossas leitoras e leitores para nos mantermos no melhor caminho. Esperamos que esta primeira edição do ano de 2024 demonstre de forma inequívoca a profundidade de nosso compromisso.

As 308 pessoas Yanomami que morreram em 11 meses, mais da metade delas crianças com menos de 5 anos, não são números. Tinham sonhos, desejos, afetos, riso – vida. Sua perda é irrecuperável. É em nome delas que precisamos manter os olhos bem abertos, para que o governo acerte neste ano, já que agora só resta assumir as mortes, entender os equívocos cometidos e tomar todas as precauções para não errar mais uma vez. Nenhum Yanomami a menos deve ser o compromisso de todo este país com uma dívida impagável com as populações originárias.

Que a leitura seja honesta – e que façamos melhor em 2024.


Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Viviane Zandonadi (fluxo e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum

Criança Yanomami brinca na precária pista de pouso de Surucucu, uma das bases do Exército na Terra Indígena. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

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