A madrugada vai alta e os Kayapó Mekrãgnoti se recusam a dormir. Sentados em cadeiras brancas de plástico, pintados com urucum e jenipapo, jogam conversa fora. Por vezes, param e prestam atenção, calados, ao cacique-geral. Logo voltam a se entreter. De longe, às margens do Rio Tapajós e cercados por um tanto de floresta, parecem pontos de brasa piscante na fumaça contra a luz. A umidade torna ainda mais espessa a nuvem sobre o topo raspado da cabeça das mulheres, minoria do grupo, naquele salão onde se fumam cigarros Chesterfield sem parar. Alguns ensaiam se recolher após o dia de discussões. Desistem. Surge um celular com uma playlist de cantos de guerra da etnia. É o suficiente para mantê-los ali, ao ar livre, longe do enorme quarto coletivo. No cômodo, quase uma centena de redes estendidas em um mosaico de diferentes tons parecem um jardim de folhas côncavas, coloridas e suspensas.
O barulho e o calor expulsam outras pessoas para o exterior da construção térrea, um lugar a 20 quilômetros de Santarém, no estado do Pará, chamado Centro de Formação Emaús – parte de uma rede de retiros tão humildes quanto austeros criada para receber católicos e organizações sociais. O espaço abrigava, naquela noite de 1º de março, quase 200 pessoas. Kayapó, Munduruku, Tapajó, Quilombolas, assentados rurais da região do município de Trairão, pesquisadores e membros de movimentos sociais. Todos em preparação para um Tribunal Popular que aconteceria dali a três dias.
A preparação: por três dias, o Tribunal Popular com Indígenas, Quilombolas e agricultores, como Maria de Melo (à dir.), colocou sob escrutínio a ‘ferrovia da morte’
É preciso explicar. A rigor, o termo é um sinônimo para Tribunal do Júri, em que um cidadão é julgado por seus semelhantes. No entanto, é também usado para designar uma audiência pública em que um fato é exposto ao escrutínio da acusação popular. O objetivo é aumentar o engajamento das pessoas diretamente impactadas por algo, ressaltar a defesa dos direitos humanos e das garantias constitucionais. Essa é a razão da presença dos Indígenas naquele momento.
Acompanho os cantos dos Kayapó quanto posso. Mais trinta minutos e decido tomar o rumo do quarto, convencido de que passa da hora, quando uma mulher corta meu caminho. “Esse era o meu pai”, diz ela. Na tela do telefone a imagem de um retrato antigo, a foto da foto já desbotada. Francisca Barroso Brito tem 54 anos, é agricultora familiar, leva preso o cabelo quase inteiro grisalho, tem o tempo em vincos suaves em seu rosto. Ela aponta, no aparelho, para a imagem de um homem mais jovem que não passa dos 45 anos. Magro, cabelo e bigode pretíssimos. Ele sorri, tímido, quase como quem pede licença. Ao seu lado, a esposa e uma das quatro filhas.
Havia poucas horas Francisca, que confessa uma fé católica aparentemente inabalável, dissera que estava pronta para resistir e para o que viesse a acontecer. De uma forma ou de outra, o porvir é o que une a todos naquele lugar.
No Médio Tapajós, a 350 quilômetros dali, uma criatura se anuncia, assume as feições de um certo progresso, desenvolvimento forjado em aço para o país. Logo ganhará a luz uma serpente gigante, carregada de grãos, concebida para se arrastar 933 quilômetros Amazônia adentro. De Sinop, em Mato Grosso, até o porto fluvial de Miritituba (distrito de Itaituba), no Pará – loteado por enormes silos para a soja de empresas transnacionais –, deixará para trás um veio gigante na floresta. Ferida aberta para todo tipo de infecção oportunista. Já batizada como Estrada de Ferro – 170, atenderá mesmo é por Ferrogrão – o projeto de infraestrutura mais esperado pelo agronegócio brasileiro.
É a ferrovia que sentará no banco dos réus daquele Tribunal Popular sob a acusação de causar impactos negativos para as comunidades tradicionais e o meio ambiente antes mesmo de vir ao mundo. Afilhada dos gigantes agrícolas Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi, que se beneficiarão de sua chegada, a megaobra do governo federal terá impactos diretos sobre 16 Terras Indígenas, 104 assentamentos rurais e 17 unidades de conservação, como o Parque Nacional do Jamanxim, em Mato Grosso e Pará. A acusação cita mais de um levantamento como fonte, do próprio governo e da sociedade civil. Vai desmatar também 49 mil quilômetros quadrados no meio da Amazônia, uma área maior do que o estado do Rio de Janeiro ou de países como a Bélgica, a Suíça ou a Holanda.
A obra teve seus estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental finalizados durante o governo do extremista de direita Jair Bolsonaro (PL), período em que o projeto virou prioridade. Mas eles são contestados por organizações ambientalistas. Uma análise do Instituto Socioambiental (ISA), por exemplo, afirma que o relatório governamental sobre a Ferrogrão projeta um crescimento da produção de soja em Mato Grosso de cerca de 50% até 2050, como resultado direto da ferrovia, provocando aumento de áreas cultivadas. Mas o relatório governamental não fala nada sobre o consequente risco de maior desmatamento, que deve ser causado justamente pela ampliação dos plantios estimulada pelo projeto. Tampouco aborda o avanço de latifúndios sobre uma área marcada por assentamentos e Territórios Indígenas – e o acirramento de tensões por causa das disputas pela terra.
A ferrovia tem um valor inicial de cerca de 12,5 bilhões de reais e o período total de concessão da obra a uma empresa privada, segundo os planos do governo, é de 69 anos, considerando a construção e operação, a partir da assinatura do contrato. São imediatos, no entanto, os problemas políticos que ela deve representar para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que se comprometeu, ainda durante a campanha, a recuperar as políticas ambientais desfeitas por seu antecessor. O apoio aos povos Indígenas foi simbolizado pela caminhada feita, no dia de sua posse como novo presidente, ao lado do cacique Raoni Metuktire, da etnia Kayapó (Mebêngôkre), que será fortemente afetada pela Ferrogrão.
“Falam em desenvolvimento para o país na questão do escoamento de grãos, mas para as comunidades Indígenas isso significa um impacto muito grande em seus territórios. Claro que o desenvolvimento do país é importante, mas as empresas deveriam chamar as comunidades Indígenas para conversar e respeitar as decisões delas sobre querer ou não a ferrovia”, diz Toya Manchineri, coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). A liderança afirma que não apenas os Indígenas, mas todas as outras comunidades tradicionais da região precisam ser escutadas “porque elas têm toda uma sabedoria sobre a utilização da terra”.
Efeito dominó: o agronegócio da soja, que hoje transporta os grãos pela BR-163, vai lucrar com a ferrovia porque há projeção de queda de 40% no preço do frete
A obra será a mais nova de uma longa família. Francisca, a mulher que carrega a foto do pai, conhece de perto as que vieram antes e sabe o que um projeto assim significa para as populações locais. Aos 12 anos ela deixou Santa Inês, no Maranhão, para trás e embarcou com os parentes no equívoco desenvolvimentista para a Amazônia da ditadura empresarial-militar (1964-1985). Ao lado dos pais e de suas três irmãs, migrou para um pedaço de floresta a que alguém chamou de gleba, às margens da rodovia Transamazônica, em Itaituba, no Pará. Era 1982, ensaiava-se o fim do regime de exceção que se mantinha à força no Brasil. Apesar de estar quase uma década atrasado em relação à abertura da Transamazônica, um dos símbolos do que os militares chamaram de “Milagre Econômico” nos anos 1970, seu pai, Manoel Barroso Brito, se encaixava no perfil do migrante que a ditadura exortava a ocupar a região, impulsionada pela capilaridade promovida pela própria estrada. “Terras sem homens para homens sem terra”, dizia o slogan militar.
Como futuro e esperança teimam em se confundir, sonharam abandonar a pobreza. Uma vez na Amazônia, porém, logo ficaria claro que continuariam sem terra alguma. Ocuparam e tentaram produzir. O que nenhum slogan revelava é que a parte da população que ganhou um pedaço de chão seria abandonada à própria sorte. A outra, como sua família, seria ainda mais invisível, sem nunca receber chão algum. Em Itaituba, Francisca cruzou pela primeira vez com o modelo de desenvolvimento de uma megaobra do governo federal.
Trinta e dois anos depois, o anúncio de que trens movidos pelo agronegócio vão cortar a floresta fez Francisca viajar 400 quilômetros de Trairão, município onde vive agora e que será impactado pela ferrovia, a Santarém, pela mesma Transamazônica, até o encontro de preparação para o Tribunal Popular.
Ninguém ignora o desfecho que terá o julgamento, mas querem se fazer ouvir os que nunca foram. Até aqui, em um processo marcado pela fragilidade das garantias socioambientais apresentadas pelo governo federal, a única certeza é que no Ministério dos Transportes é gestada uma estrada de ferro que aponta para a repetição dos erros e consequências de outras grandes obras. Após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter suspendido o projeto, em 2021, a retomada dos estudos de viabilidade econômica foi liberada no ano passado. Com isso, o projeto segue avançando com as análises e planejamento da Agência Nacional de Transportes Terrestres e do Ministério dos Transportes para sua instalação. A Corte também determinou que fosse criado um grupo de trabalho, no Executivo federal, para discutir a Ferrogrão.
Assim como a agricultora, as quase 200 pessoas no Emaús passaram horas, ou vararam a noite, em estradas e barcos pelo Rio Tapajós para estarem ali, onde a propaganda de desenvolvimento se revela como um enorme campo de soja. A monocultura rendeu 1,657 bilhão de dólares em exportações ao Pará, em 2023, um crescimento de 19% em relação ao ano anterior. Do lado de fora, a 50 metros da entrada do retiro, uma plantação se estende até a estrada que leva a Santarém.
No sentido contrário, da porteira para dentro, a primeira coisa que se vê é o auditório inacabado em que estão os Kayapó e os Munduruku. Durante três dias, isso não vai mudar. A agenda é extensa. A derrota que representou a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, inaugurada em 2016 por Dilma Rousseff (PT) e propagadora de uma tragédia para os humanos e mais-que-humanos do Rio Xingu, está na pauta para ser repisada. É preciso discutir o projeto da ferrovia e, principalmente, o modelo de desenvolvimento que se implanta à força na região. Moto-perpétuo.
Hoje coordenadora da Rede Agroecológica de Trairão, Francisca teme a chegada da Ferrogrão como seus pais deveriam ter temido a Transamazônica. Ela diz que pelos trilhos a derrubada da mata, a grilagem e a especulação a reboque não tardam. “Para nós isso não é desenvolvimento, é um progresso só para as grandes empresas do agronegócio. Além do impacto do desmatamento, muita gente vai sair daqui, vai ser desapropriada ou não vai conseguir ficar porque a soja vem e o pequeno produtor não resiste muito tempo”, diz.
Impassíveis, os Kayapó e os Munduruku afirmam que não vão a lugar algum. Não arredarão pé de seus territórios, assim como não arredaram do auditório onde a Ferrogrão era julgada.
O julgamento: moradores de comunidades tradicionais que serão afetados pela Ferrogrão analisaram impactos sociais e ambientais do megaprojeto
Um saco de soja no banco dos réus
Antes do julgamento ainda é preciso formular uma acusação. Uma decisão, no entanto, já está tomada. Na cadeira dos réus, a Ferrogrão será representada por um saco com 60 quilos de soja da Cargill.
A maior multinacional do setor, uma empresa de capital fechado, tem cerca de 15 mil fornecedores de grãos no país e encerrou 2022, no Brasil, com uma receita operacional líquida, gerada por suas operações de venda e serviços no país, de 125,8 bilhões de reais. Seu lucro naquele ano foi de 1,2 bilhão de reais. Os trilhos no meio da floresta devem derrubar em até 52% o valor do frete dos grãos que hoje saem de Mato Grosso pela BR-163 até o Porto de Miritituba, o que trará a todas as empresas do setor ainda mais lucro. A carga segue em enormes barcaças pelo Tapajós em direção ao Porto Organizado de Santarém, onde a empresa opera um terminal com capacidade para o embarque de 5 milhões de toneladas de grãos por ano. É dali que partem pelo Rio Amazonas os navios carregados com a matéria-prima-estrela brasileira até ganharem o Atlântico. Com a ferrovia, a distância permanece a mesma, mas o agronegócio vai gastar muito menos com o transporte. A natureza e seus povos, porém, pagarão um preço altíssimo, o que significa um grande risco para uma floresta que se aproxima do ponto de não retorno.
Em uma terra que já foi mata e vive hoje a onipresença da soja, Ferrogrão e Cargill se tornaram sinônimos de desenvolvimento, para o setor agrícola, e de destruição, para os povos originários, pequenos agricultores e a parcela da sociedade preocupada com os impactos do superaquecimento global. Enquanto a madrugada avança e os Kayapó Mekrãgnoti jogam conversa fora, o nome da empresa já foi incorporado à língua dos cerca de 40 Indígenas vindos de Altamira. A eles ainda vão se juntar, no dia do tribunal, os parentes de Mato Grosso. “Esse é o segundo encontro. A gente veio aqui, a empresa não veio nos consultar. Já temos protocolo de consulta. A empresa tem que ir lá dentro das aldeias, tem que consultar todos os caciques, apresentar qual é o plano deles”, diz o cacique-geral Patkore Mekraknoti.
Os Kayapó são um povo altivo. Imponentes na forma de falar e de se portar, são mais altos e mais encorpados que os Munduruku, que estão ali em maior número. Os dois povos travaram guerras no passado. Com inimigos em comum, não faz muito começaram a se aproximar. “Teve rixa no passado, hoje lutam todos juntos”, explica Patkore.
A alguns metros, o cacique-geral dos Munduruku do Alto Tapajós parece não se importar com o passado. “[O tempo de guerra] foi na época do pai do meu pai, até antes, dos antigos, mas não fez bem pra ninguém”, conta Arnaldo Amancio Kaba Munduruku. Cacique-geral dos Munduruku, líder da Aldeia Katõ, ele vive com cerca de 800 Indígenas, a quase três horas de barco de Jacareacanga, e é responsável direto por outros quase 5 mil parentes na região. “Vai morrer muita gente, vai morrer muita”, repete, se referindo à ferrovia. “Não é só Ferrogrão que vai chegar, é mineradora, madeireiro. Esses tempos, a polícia foi lá [no Rio Tapajós] e queimou a máquina deles [garimpeiros] na balsa do garimpo, mas continua, volta tudo. Já morreu gente, eles mesmo se matam entre eles.”
Outras formas de violência seguem o rastro dos megaprojetos. Estudo da organização não governamental Terra de Direitos mostra que o porto da Cargill, que começou a operar em 2003, em Santarém, modificou a paisagem da BR-163, resultando no avanço da monocultura e na saída de pequenos agricultores da área. A cerca de 40 quilômetros de onde acontece a reunião, as 74 famílias Munduruku da Aldeia Açaizal vivem ilhadas por plantações de soja no Planalto Santareno. Elas veem suas terras, ainda não demarcadas, serem progressivamente invadidas por grileiros. Intimidações e violações de direitos fazem parte do cotidiano.
A tensão entre os sojicultores e os Munduruku chegou a ponto de uma comitiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) interromper uma visita ao local, em 2018, diante das ameaças de invasores. “A comunidade Indígena da Aldeia do Açaizal, em Santarém, Pará, está submetida a práticas de coerção, ameaças e tentativas de intimidações por exercer o direito de defender seus direitos”, relatou a Comissão, que registrou publicamente que não só recebeu denúncias sobre essas práticas, mas também foi objeto direto de assédio na cidade.
Deserto de soja ao redor da Aldeia Açaizal: na foto à direita, o cacique Munduruku Josenildo dos Santos da Cruz mostra as plantações de perto
Pouco mudou depois disso. Cacique do Açaizal desde 2014, o professor de matemática Josenildo dos Santos, o Josenildo Munduruku, é um homem de fala baixa e pausada, que aparenta ter menos do que seus 37 anos. Ele conta que no igarapé onde costumava pescar seu povo já não pode mais entrar e, mesmo que pudesse, seria como “tomar banho de veneno”, por causa dos agrotóxicos das plantações. Desde que os drones passaram a ser usados para pulverizar a soja, adultos e crianças da aldeia começaram a ter doenças de pele e respiratórias. “Aqui comemos e respiramos veneno no verão e no inverno, o vento traz tudo pra cá”, afirma.
Os problemas nas terras Munduruku não se contam em uma mão e se estendem para o Médio Tapajós, na água e pela água. A atividade ilegal dos garimpeiros resulta em mortes e ameaças à saúde – e nas aldeias há o temor de que a mineração ilegal se amplie ainda mais com as obras promovidas pela Ferrogrão. A destruição provocada pelo garimpo já é grave. Seis em cada dez Indígenas da etnia testados por um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2019, nos municípios de Itaituba e Trairão, têm níveis de mercúrio acima dos limites estabelecidos por agências de saúde. Os pesquisadores encontraram, em 57,9% dos participantes, a presença do metal em valores suficientes para causar doenças no sistema nervoso central. “Isso é tristeza para nós. Foram lá, tiraram nosso sangue e deu tudo positivo”, diz o cacique-geral. Na beira dos rios mais afetados pelo garimpo, 90% dos Indígenas testados têm altos níveis de contaminação. Enquanto os adultos relatam fraqueza, dificuldades para enxergar e perda de memória, entre as crianças as consequências também já são sentidas: problemas de neurodesenvolvimento foram detectados em 15,8% delas.
A neta do cacique Juarez Saw Munduruku, Ricleia, de apenas 10 anos, é uma delas. O nível de mercúrio em seu sangue está acima do limite, o que trouxe preocupações e mudanças na rotina da família, diz o avô. Na Aldeia Sawré Muybu, às margens do Tapajós, Ricleia e a irmã Vitória, de 8 anos, passam os dias entre as aulas na escola local e os cuidados com Deko, um Macaco-Aranha magricela de pouco mais de 1 ano. Como todas as crianças dali, ele brinca solto pelo povoado de pouco mais de 250 pessoas. A rotina não é diferente da de outras aldeias do seu povo. Há adolescentes com camisa de times da Premier League e do Flamengo jogando bola num campinho, mulheres carregando seus bebês, galinhas pelo terreiro dividindo espaço com uma Arara velha, que, segundo diz o cacique, um dia desistiu de voar, e adolescentes com celulares ligados à rede Starlink – instalada por uma organização não governamental, assim como os painéis solares. À noite, os mais velhos acendem fogueiras que as crianças pulam até se arrastarem de cansaço e, finalmente, se aconchegarem nas suas redes. O que não há ali, hora nenhuma, é alguém pescando.
Vil metal: Ricleia Saw, 10 anos, não pode mais comer peixes porque o nível de mercúrio em seu sangue está acima do limite aceitável, como a maioria das crianças Munduruku
Há um motivo para isso. O estudo da Fiocruz mostrou que o peixe consumido nas aldeias também está contaminado. A pesquisa revelou que, numa amostra de cinco espécies das quais os Indígenas se alimentam, as doses de ingestão diária de mercúrio estimadas foram de pelo menos quatro a até 18 vezes superiores aos limites estabelecidos pela Agência de Proteção Ambiental Norte-Americana (EPA). Ricleia está proibida de comer qualquer tipo de peixe daqui ou do rio, diz o cacique Juarez. “O pai dela proibiu, não entra peixe na casa”, garante.
Tapajós acima, se acumulam os relatos de crianças nascidas com malformações e problemas neuromotores que as impedem até mesmo de andar. Os efeitos do garimpo são tão fortes nas aldeias da região que a Fiocruz começou a acompanhar, no final de 2023, grávidas e recém-nascidos. O objetivo é investigar as evidências de casos da doença de Minamata, um mal neurológico decorrente da contaminação por mercúrio. O nome é uma alusão à contaminação em massa dos moradores da cidade homônima, na década de 1950, no Japão.
A Terra Indígena Sawré Muybu está a cerca de 100 quilômetros de Itaituba, onde a Ferrogrão desembocará. Diante da demora do governo, os próprios Indígenas fizeram a autodemarcação do território a partir de 2015, no segundo mandato de Dilma Rousseff (PT). Hoje, a Terra Indígena teve seu Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), uma etapa necessária para a demarcação, publicado em 2016, mas ainda aguarda a homologação. É uma das mais pressionadas pelo garimpo e por grileiros. A partir de 2019, com Bolsonaro na presidência e a promessa de regularização da atividade de mineração em Terras Indígenas, as pressões aumentaram. O garimpo na região do Chapéu do Sol deixou marcas profundas. Agora, diz o cacique, o anúncio da construção da Ferrogrão e a decisão desfavorável sobre o marco temporal – aprovado no Congresso em retaliação à decisão do Supremo Tribunal Federal, que havia considerado essa tese jurídica inconstitucional – assanham as invasões pelos pariwat, os não Indígenas na língua Munduruku. “A gente fez a autodemarcação de toda a área da TI, eu andei isso tudinho, de ponta a ponta, e já sabemos que estão entrando. Esse já é o resultado do marco temporal, e vai piorar”, alerta.
Juarez troca informações com outros caciques, escuta os mais novos que voltam da mata com a caça e as notícias dos invasores, consulta os mais velhos, mas também forma sua opinião com o Rio. O cacique lê o que o Tapajós lhe conta. “Não faz duas semanas que uma balsa do garimpo passou por aqui na frente”, aponta. “Isso é comum. Sumiram um tempo que o Ibama e a polícia estavam em cima, mas estão voltando.”
Mais de 30 anos se passaram, mas muitos dos destinos embarcados nas balsas de garimpo que se veem da Sawré Muybu serão iguais aos que o pai de Francisca encontrou. “Viemos atrás de uma terra. Era isso o que meu pai sonhou. Mas, quando chegamos, não tinha nada pra gente aqui, ficamos cinco anos numa terra que não era nossa. Meu pai, então, saiu e foi para o garimpo. Veio atrás da terra e virou garimpeiro”, relata Francisca. Daquele ponto em diante, o sonho de Manoel se desmancharia como terra lavada.
Entre os anos 1980 e início da década seguinte, cerca de 500 toneladas de ouro exploradas no Vale do Tapajós passariam por ali, pela “Cidade Pepita”, onde a promessa de riqueza, a violência e a miséria andavam juntas. O volume do metal e a quantidade de dinheiro que circulavam por Itaituba naqueles anos eram tamanhos que a cidade se tornou famosa quando seu acanhado aeroporto registrou um dos maiores movimentos em pousos e decolagens de aeronaves do mundo, segundo a própria prefeitura e a Assembleia Legislativa do Pará.
Vista de longe, era a corrida pela riqueza. De perto, para a enorme maioria, a única possibilidade de escapar da sentença de miséria. “Do garimpo ele não trouxe nada, ouro, dinheiro nenhum”, diz a agricultora. “Só o que trouxe foram as doenças: a malária e a hepatite C.” Foram cerca de três anos, e o homem fez, então, o caminho de volta para a Transamazônica. De lá, seguiu para um pedaço de terra próximo da BR-163 que, agora, deve ser afetado pela passagem da Ferrogrão.
Indígenas da Terra Sawré Muybu: a três horas e meia de Itaituba, eles já sentem os efeitos do transporte da soja pelo Rio Tapajós e temem consequências ainda piores
Trilhas e trilhos do agronegócio
A Ferrogrão é a consolidação do chamado Arco Norte, um corredor logístico que une a principal região produtora de matérias-primas do país aos portos fluviais amazônicos. Quando estiver pronta, essas duas regiões estarão interligadas por rodovia, hidrovia e, por fim, uma ferrovia. Não por acaso, o trem mais aguardado e incentivado pelo agronegócio brasileiro vai correr paralelo à BR-163, a mesma que na década de 1970 dizimou grande parte dos Kayapó Mekrãgnoti.
Quando inaugurada, em 1976, pelo então ditador Ernesto Geisel, como parte do Programa de Integração Nacional do governo militar, a BR-163 dividia o slogan “Integrar para não entregar” com a irmã mais velha, a Transamazônica. A rodovia, que corta o Brasil, começa no Rio Grande do Sul, mas é a partir de Mato Grosso que se transforma no maior canal de escoamento de soja para os portos da Amazônia, Miritituba entre eles, e de lá para o exterior.
Trafegar pela BR-163 no trecho entre os municípios de Santarém e Itaituba é assistir a enormes tapetes verdes de soja, com solitárias castanheiras espetadas no meio – protegidas por multas altíssimas, as árvores costumam ser as únicas mantidas nas áreas desmatadas. É também rezar para não se deparar com um caminhão atolado nos trechos de terra e lama a bloquear a estrada por horas ou dias, e, vez por outra, ver um deles tombado.
Percalços do caminho: caminhões tombados ou atolados são uma realidade constante na BR-163, no trecho entre Santarém e o Porto de Miritituba
Na semana que antecedeu o Tribunal Popular, a reportagem de SUMAÚMA viajou com um grupo para Itaituba, de onde partiu para a TI Sawré Muybu. Antes de chegar à cidade, paramos para acompanhar uma confusão de moradores que recolhiam do asfalto 52 toneladas de grãos de soja. Ao lado de uma carreta virada, a dez minutos do Porto de Miritituba, a carga espalhada era acondicionada em enormes sacos brancos.
Os acidentes da estrada malconservada são problemas tão visíveis quanto o desmatamento, a especulação e o avanço da soja ao longo de seu entorno, mas não são os únicos. A cidade de Trairão, que é dividida ao meio pela BR-163, agora está também no caminho da Ferrogrão, que seguirá paralela. “O impacto da BR aqui é muito grande, não tem um viaduto, não tem um semáforo, você pode ficar meia hora para atravessar no meio das carretas, é acidente quase que diário. Ninguém tem o direito de ir e vir porque ela não foi feita para nós, mas para exportar os grãos. Isso, além da prostituição infantil, da prostituição em geral e dos casos de feminicídio, que crescem. Tudo isso é efeito da BR”, afirma Francisca, que saiu das margens da Transamazônica para morar em Trairão ainda no início dos anos 1990.
Naquele ano, o pai dela tentava se tratar, em Itaituba, das doenças que contraiu no garimpo, mas continuava trabalhando em uma fazenda quando recebeu um pedaço de terra em um projeto de assentamento em Trairão. Era a primeira vez que tinha motivos para acreditar que algo poderia melhorar. Ele e a família começaram a plantar uma roça simples de mandioca e hortaliças a 14 quilômetros da BR-163. Àquela altura, no entanto, as doenças cobraram seu preço. “Ele não teve tempo para aproveitar, desenvolveu cirrose. Tinha 51 anos quando morreu”, lamenta Francisca.
A humanidade resiste à Ferrogrão
Setenta e duas horas após começarem a discutir os problemas de um futuro que ameaça não tardar, os Munduruku, Kayapó, Quilombolas e assentados rurais querem falar mais alto. Às 6h45 de segunda-feira, 4 de março, entram em dois ônibus, escoltados por uma comitiva de organizações vindas de todos os cantos da Amazônia. Os homens Kayapó levam o rosto tingido de preto, as mulheres, predominantemente em vermelho. Ambos com quase o corpo todo pintado. Ao lado, os Munduruku têm no peito e nas costas desenhos geométricos, alguns deles até o pescoço. Pintados para a guerra, eles partem em direção à Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) onde o Tribunal Popular será realizado. Antes, farão uma parada.
São 7h35, funcionários do porto em seus uniformes estão chegando quando os ônibus viram a esquina da avenida do Porto de Santarém. Em questão de minutos, todos pulam do coletivo e formam uma parede humana na entrada de caminhões que preenchem os enormes silos da Cargill. Carregam com eles o réu, um saco de grãos da corporação transnacional, colocado no chão, coberto de tinta vermelho-sangue. Uma equipe de seguranças aparece rapidamente, mas mantém distância. Já há uma caminhonete da Polícia Militar do Pará do outro lado da rua.
Um carro sai do porto, diminui a velocidade, o motorista coloca a cabeça para fora e dá o tom do que pensam ali, se não os funcionários de uniforme, os que dirigem carros utilitários esportivos. “Vão trabalhar, bando de vagabundos!”, grita duas vezes. Os manifestantes puxam palavras de ordem, estendem faixas contras os “Trilhos da destruição” e terminam por “espancar o réu”. Apesar disso, ele seguirá viagem, pois é esperado no tribunal. Antes de saírem, os Kayapó cantam em preparação para a guerra.
Pintados para a guerra: Indígenas protestaram contra o megaprojeto da ferrovia em frente aos enormes silos da Cargill
Dali até a universidade, os policiais militares vão acompanhar o cortejo. A viatura para na porta da universidade, atrás dela uma “caminhonete estranha” deixa alguns Kayapó desconfiados. O veículo estaciona a alguns metros dos ônibus, onde permanecerá o resto do dia, com três ocupantes dentro. Não há o que fazer. O julgamento já pode começar. O anfiteatro está cheio. Sobe ao púlpito um padre, Edilberto Sena, do Movimento Tapajós Vivo. Caberá a ele conduzir o Tribunal Popular. Não há um juiz, mas um colegiado de representantes das associações Indígenas e das comunidades tradicionais.
A sessão é iniciada com as apresentações: representantes dos Munduruku, Tupinambá, Panará, Kayapó, Xavante, Arapium, Apiaká, Kumaruara. Associações, como Tapajós Vivo, organizações não governamentais, como Amazon Watch e Greenpeace, além de representantes dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, Defensoria Pública da União, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e Ministério dos Povos Indígenas. Na noite anterior ao Tribunal, a reportagem de SUMAÚMA se deparou, coincidentemente, com a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, em um restaurante de Santarém. Questionada se iria ao evento, a ministra evitou responder a perguntas e disse que estava ali apenas para jantar. No dia seguinte, ela seguiu para uma reunião com outras lideranças Indígenas em Oriximiná. Em seu lugar, no julgamento, compareceu a secretária Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena do ministério, Ceiça Pitaguary.
Começa então a ser lido o que, segundo os múltiplos acusadores, pesaria contra o projeto da Ferrogrão. Em primeiro lugar, a violação ao direito das populações Indígenas e comunidades tradicionais de serem consultadas de forma prévia, livre e informada. Em seguida, a acusação afirma que o projeto realizou estudos falhos e subdimensionados sobre os impactos e riscos socioambientais, aponta a violação dos direitos da Natureza que a ferrovia representa e discorre sobre o aumento da especulação fundiária, grilagem de terras públicas, desmatamento, queimadas e conflitos de terra antes mesmo do início das obras. Por fim, o favorecimento indevido de corporações transnacionais como Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi.
Durante as próximas oito horas, Indígenas e não Indígenas vão falar. São apontados exemplos de violações já ocorridas. “As empresas acham que são elas que vão decidir se a Ferrogrão será instalada ou não, mas seremos nós, o povo dessa terra”, diz Alessandra Munduruku, coordenadora da Associação Indígena Pariri, que trabalha com 14 aldeias. “Para nós, que vemos a quantidade de barcaças que passam hoje no Tapajós, no lugar em que a gente pescava e hoje já não pode mais, a Ferrogrão vai só piorar essa situação. Os portos são construídos pelas grandes empresas para [enviar a produção para] outros países. Então, lugares como Alemanha, França e Estados Unidos estão contribuindo para destruir o meio ambiente.”
O réu é um saco de soja: simbolizando os efeitos destruidores da Ferrogrão, ele é levado ao Tribunal Popular pelos Indígenas para aguardar a sentença
Uma opinião já se formou. As comunidades deveriam ter sido ouvidas. O modelo de “desenvolvimento” proposto pelo projeto da ferrovia ignora completamente a existência de seres humanos, suas vidas, seus conhecimentos e suas necessidades no caminho dos trilhos. “Existem países em que isso acontece. No Japão, por exemplo, não se constrói nada sem ouvir a população. Eles precisam incluir os Indígenas nesse debate, não tem como construir nada em um lugar que tem dono e não consultar”, diz Takakpe Metuktire, neto do cacique Raoni. Ele alerta sobre o fato de que a ferrovia deve passar a menos de 50 quilômetros de seu território, onde será construído um dos pontos de embarque de grãos.
Os depoimentos se sucedem. Há os que depositam as esperanças no Supremo Tribunal Federal, responsável por paralisar o processo em 2021 e por liberar a continuidade dos estudos, em 2023. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), movida pelo PSOL, partido político de esquerda, questiona o projeto. Em junho do ano passado, o ministro do Supremo Alexandre de Moraes enviou o imbróglio para o Centro de Soluções Alternativas de Litígios da Corte e, logo em seguida, em setembro, paralisou a ação. A assessoria do STF afirma, porém, que não há previsão para o tema da Ferrogrão voltar à pauta. Tampouco foi dada alguma solução ao processo no Centro de Soluções Alternativas de Litígios.
Entre aqueles que depõem no Tribunal Popular há os que têm certeza de que o governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva não deixará a obra começar – e isso mesmo que a atual gestão tenha incluído a Ferrogrão entre os projetos prioritários. E há os que olham para trás para projetar o que pode ser o futuro. Nele enxergam uma sucessão de projetos de infraestrutura levados à frente, como Belo Monte, em nome de uma ideia de desenvolvimento que nunca os incluiu e que, na terceira década do século 21, continua a deixá-los de fora.
No final da tarde, o desgaste começa a bater. Ainda assim, eles não arredam pé do auditório. O veredicto se aproxima. Padre Edilberto, que conduz a sessão, se dirige ao púlpito para ler a sentença: “Fato inconteste, o projeto foi incluído no planejamento governamental sem que fossem observados os riscos ambientais e sociais, sem que se observassem possíveis alternativas, sem que fosse feita a consulta prévia”, inicia a leitura. A cada ponto demonstrado, uma Kayapó sentada ao meu lado na plateia abre um sorriso tímido. É a satisfação que esperaram por três dias, e toda uma vida. Ainda não é o suficiente para barrar o “monstro de ferro”, mas, segundo aquele Tribunal Popular, “todas as acusações contra a Ferrogrão e as empresas cúmplices procedem”. Elas estão condenadas.
O Ministério dos Transportes criou o grupo de trabalho – como havia decidido o Supremo – em outubro de 2023. Três reuniões já foram realizadas com representantes dos povos Indígenas, de órgãos federais e de entidades da sociedade civil. O ministério informou a SUMAÚMA que os estudos sobre a ferrovia foram retomados em dezembro e devem ser concluídos em seis meses.
A Cargill diz que não participa do consórcio formado para a construção da Ferrogrão. Em nota a SUMAÚMA, sustenta que o transporte ferroviário “traz benefícios como segurança, eficiência e menor impacto ambiental, quando comparado ao transporte rodoviário, que contribuem para a competitividade da produção brasileira nos mercados internacionais”.
O documento final do julgamento, com o veredicto subscrito pelos representantes das comunidades envolvidas e das organizações, detalha os problemas e vícios do projeto e faz recomendações a serem seguidas pelo governo federal. Agora, é questão de força, pressão e tempo, diz um dos presentes ao deixar o auditório da universidade.
Sobre força: a 3.297 quilômetros dali, no mesmo dia, durante um evento do mercado financeiro, em São Paulo, o presidente da Cargill, Paulo Sousa, foi claro. “A ferrovia faz todo o sentido e vai acontecer”.
Sobre pressão: 22 dias após o julgamento, numa reunião em Belém em que foi selado um plano de investimentos de 5,3 bilhões de reais em bioeconomia para a Amazônia, os presidentes do Brasil, Lula, e da França, Emmanuel Macron, receberam das mãos do cacique Raoni a sentença da Ferrogrão. “Presidente Lula, eu subi com você [a rampa] na posse e quero pedir que vocês não aprovem o projeto do Ferrogrão”, reforçou o líder Indígena com maior ressonância internacional.
Sobre tempo: nos pedaços da Amazônia onde a floresta ainda não se fez soja, seus guardiões Ribeirinhos, Indígenas, Quilombolas e pequenos agricultores esperam por um futuro diferente do que teve o pai de Francisca. Mas sabem que a Ferrogrão avança.
A Ferrogrão será a Belo Monte de Lula 3?
Por Alexandre SpatuzzaConhecido como Ferrogrão, o projeto da Estrada de Ferro – 170 (EF-170) e seu planejamento foi posto em marcha pelo então presidente Michel Temer (MDB), em 2017. Desde o anúncio do megaprojeto, grupos Indígenas e organizações não governamentais (ONGs) têm denunciado o aumento constante da grilagem, da especulação imobiliária e da violência em torno da posse da terra. Em 2021, a licitação para iniciar aquela que os povos originários chamam de “monstro de ferro” foi suspensa por ordem do Supremo Tribunal Federal, que acatou parcialmente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6553) ajuizada pelo PSOL, em 2020. A Ferrogrão segue até agora o mesmo padrão dos megaprojetos que provocam destruição em cadeia na Amazônia desde a ditadura empresarial-militar (1964-1985): tem o potencial de acentuar o desmatamento da floresta Amazônica, cada vez mais próxima do ponto de não retorno, para aumentar o lucro de latifundiários e corporações transnacionais.
Apenas no Pará, quase 1 milhão de pessoas vivem na área que será cortada pela ferrovia. Trata-se de um projeto pensado para atender exclusivamente os produtores de grãos do norte de Mato Grosso e das novas fronteiras do agronegócio no Pará, com o objetivo de escoar soja e milho para o exterior pela hidrovia Teles Pires-Tapajós, onde se localiza o Porto de Miritituba, no município de Itaituba.
Em audiência no Congresso Nacional, em dezembro de 2022, o Instituto Kabu, que representa os Munduruku, mas se articula com representantes dos Kayapó e dos Panará, no estado do Pará, fez uma denúncia alegando que o anúncio da Ferrogrão trouxe especulação imobiliária e o aumento de invasões dos territórios no entorno do traçado da linha de trem. O crescimento de conflitos fundiários foi também apontado no Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil de 2022, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
O projeto virou a joia da coroa no governo do extremista de direita Jair Bolsonaro (PL) e do então ministro da Infraestrutura e atual governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). Em roadshows no exterior e entrevistas, em 2020 e 2021, o então ministro descreveu a Ferrogrão como um “modelo de sustentabilidade”. A ligação férrea continua nos planos do governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva, e agora é descrita como chave para reduzir o “Custo Brasil”, ou seja, baixar os gastos de transporte e outros que encarecem as exportações de grãos e que supostamente reduzem a competitividade e o lucro do agronegócio brasileiro.
Segundo o plano de outorga – a concessão de direito de uso, ou seja, a autorização dada pelo poder público para investidores privados atuarem na obra – apresentado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a Ferrogrão pode proporcionar aos empresários do agronegócio uma economia de 6,1 bilhões de reais se considerados efeitos externos, como redução de acidentes e congestionamentos, por exemplo, durante o transporte de grãos produzidos em Mato Grosso. O projeto prevê redução de 19,2 bilhões de reais no custo do frete no mesmo período. Essa diminuição no custo de transporte varia de 1% a 52% nos municípios das regiões produtoras de grãos do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás. Esta economia seria resultado do aumento da velocidade do transporte, redução de gastos com combustíveis e diminuição do número de acidentes, o que ocasionaria uma queda no custo final das mercadorias exportadas.
“O potencial de intensificar o desmatamento e outros impactos socioambientais numa ampla região de influência tem sido subdimensionado no processo de planejamento e licenciamento ambiental do projeto”, concluiu Brent Millikan, consultor do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas e autor da nota técnica destinada a avaliar riscos para o financiadores, publicada em setembro de 2023.
Pesquisadores do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro também analisaram os impactos em 2020: “Se nenhuma medida de mitigação for implementada, isso aumentará a demanda por terras e induzirá o desmatamento de 2.043 quilômetros quadrados de vegetação nativa no estado de Mato Grosso. Esse aumento do desmatamento intensificará as emissões de carbono em 75 milhões de tonelada”. Em resumo: as emissões resultantes do desmatamento anulariam em várias vezes os possíveis ganhos estimados por órgãos públicos pela troca de caminhões por trens, por exemplo.
Em março de 2023, o Supremo autorizou novos estudos, abrindo a possibilidade de outros atores entrarem em cena. Até então, quem tinha voz sobre o projeto eram apenas grupos multinacionais ou brasileiros produtores e comercializadores de grãos – Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi –, empresas de logística, a VLI (empresa de transporte ferroviário da Vale) e a Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer), que apoia a obra. Se isso acontecer, pela primeira vez desde a concepção da Ferrogrão, serão ouvidas as necessidades e os desejos de quase 1 milhão de pessoas que vão ser afetadas por 933 quilômetros de uma linha férrea que atravessará florestas, rios e aldeias Indígenas.
Hoje, estima-se um investimento de 25,2 bilhões de reais para a conclusão do projeto. Desse total, 8 bilhões seriam destinados à construção e outros 16 bilhões em custos para desapropriação de terras e compra de frota de vagões e equipamentos que trafegarão na linha férrea. A parcela de contrapartidas socioambientais no plano de outorga é mínima: somente 735 milhões de reais ao longo dos 69 anos de concessão – ou 3% do investimento previsto na ferrovia.
Fotos: Michael Dantas
Edição: Malu Delgado e Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum
O veredicto: o ‘monstro de ferro’ é condenado, e o Tribunal Popular conclui que o projeto ignora riscos sociais e ambientais, além de desprezar a consulta prévia