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Em Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (2008), o herói americano mergulha na Amazônia para achar pirâmides construídas por extraterrestres. Foto: Lucasfilm/Reprodução

“Você o roubou”, diz Indiana Jones. “Depois, você o roubou”, responde o nazista Jürgen Voller. “Depois, eu roubei. É assim no capitalismo”, encerra a conversa, com um sorriso no canto da boca, a personagem Helena Shaw, afilhada do carismático arqueólogo. Essa última frase, pinçada a dedo pelo seu poder de venda, está no trailer do mais recente filme da saga hollywoodiana – Indiana Jones e a Relíquia do Destino. Convicta e bem-humorada, Helena está justificando a posse de um artefato histórico, criado por Arquimedes, que teria o potencial de mudar o curso da humanidade. A única forma de salvar o planeta de uma catástrofe, indica o filme, é deixá-lo em um local seguro – ou seja, nas mãos do charmoso, heroico, aventureiro e estadunidense professor de arqueologia. Calma! Este texto não contém spoilers. De fato, não é preciso avançar muito no enredo para perceber que o recém-lançado longa-metragem repete a surrada fórmula que há mais de 40 anos consagrou Indiana Jones como símbolo da cultura dos Estados Unidos: o uso da narrativa colonialista e racista que reforça estereótipos ao considerar exótico, perigoso e ameaçador tudo aquilo que não faz parte de seus valores e modo de vida – ou que os contesta.

“A arqueologia não é isso. A ideia de um homem branco que enfrenta desafios para resgatar relíquias em lugares inóspitos para levá-las a museus no Norte global, onde estarão a salvo, já é um enredo bem conhecido, porém superado. Indiana Jones parece estar cada vez mais desatualizado”, opina a professora de arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará, Bruna Rocha. A especialista se refere a uma premissa imperialista, que norteou a ação de museus do final do século 19 e início do século 20, de demonstrar poder pela posse de materiais culturais que tinham grande significado em seus contextos locais. Uma prática que vem sendo, ao longo dos anos, questionada dentro e fora da academia.

No início da década de 1980, quando o primeiro filme da série de aventura foi lançado, começaram a ganhar destaque os questionamentos sobre a exploração da cultura, da tradição e do patrimônio de outros povos para entretenimento e demonstração de poder. Em Os Caçadores da Arca Perdida (1981), o título de estreia, Indiana Jones mergulha nas profundezas das florestas peruanas, enfrentando flechas de “nativos selvagens” para descobrir a localização de um objeto que, levado a depósitos americanos, salvaria a humanidade (ufa!). Nesse mesmo período, na vida real, um grupo de indígenas lançava o manifesto Our Heritage Is Not Your Playground – algo como “nossa herança não é seu parque de diversões”. O documento questionava a apropriação equivocada das culturas de povos originários e lançava uma série de reflexões sobre a arqueologia e os direitos das populações de serem guardiões de sua história. “Até essa ideia de que os arqueólogos sozinhos ‘descobrem’ onde estão os sítios arqueológicos – algo tão presente em filmes, documentários e matérias –, apesar da baixa visibilidade imposta pela floresta, é questionável. Com frequência, a localização de sítios ocorre graças ao conhecimento que os povos tradicionais têm de seus territórios. Esse tipo de representação invisibiliza o papel das comunidades locais na construção do conhecimento antropológico”, diz Bruna.

Pôster de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal: um monte de equívocos que anulam individualidades

Mas o charmoso doutor Jones, ou melhor, seus criadores, preferiu seguir alheio a esses movimentos e, nas décadas seguintes, continuou brindando seus espectadores com “um jogo sofisticado que é fazer propaganda do colonialismo de forma leve e divertida, o que acaba seduzindo as pessoas e internalizando um discurso imperialista e preconceituoso”, reflete o arqueólogo Eduardo Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP). A narrativa acabou respingando, é claro, na Amazônia e em seus povos originários.

Em 2008, com o lançamento do quarto filme da série, Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, o herói estadunidense retorna ao Peru, desta vez para desvendar um enigma escondido em uma exótica e perigosa maior floresta tropical do mundo, cercada por areia movediça e cascatas (as cenas foram gravadas no Havaí). No caminho, encontra guerreiros maias que falam quéchua (língua dos incas), é picado por insaciáveis formigas que devoram humanos (as Siafu, restritas à África), viaja embalado por uma trilha sonora mexicana (em pleno Peru) e enfrenta uma tribo de indígenas cujas vestimentas e maquiagem fazem com que se assemelhem a zumbis saídos diretamente da série The Walking Dead. Tudo isso para chegar a Akakor, uma cidade perdida no coração da Amazônia rodeada de pirâmides e construída (pasme!) por extraterrestres.

É com equívocos deliberados como esses que os produtores reforçam, no imaginário do espectador, um esquema segundo o qual tudo que está além das fronteiras, para o sul, é a mesma coisa. Ao anularem as singularidades, as histórias e a cultura dos povos, eles excluem aquilo que é, ou deveria ser, a premissa da arqueologia: mostrar a diversidade cultural e tecnológica, compreender o passado para ajudar a criar o futuro. “Além disso, nesse filme [Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal] temos mais uma vez reforçada a ideia de que os povos indígenas seriam inferiores e não poderiam ser responsáveis por grandes obras arquitetônicas e culturais. Somente extraterrestres justificariam tais feitos”, complementa Adriana Schmidt Dias, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Tudo pode piorar quando os criadores da série tentam amenizar a percepção de que estão estigmatizando povos e minorias. Não raro um representante desse contingente – pele mais escura, trejeitos peculiares, maquiagem pesada e sotaque exótico – se une ao time dos bonzinhos. É a famosa exceção que confirma a regra. Ou seja, em vez de amenizar, ressalta. “Essas comunidades seguem sendo retratadas de maneira infeliz, vistas como tendo crenças e cultos irracionais, enquanto a figura do homem branco vindo do Norte representa a racionalidade. Reiterar essa visão nos dias de hoje é triste e arrogante”, diz a professora de arqueologia Bruna Rocha.

Não é difícil entender por que um filme assim continua lotando salas de cinema nos Estados Unidos e na Europa, centros da ideologia hegemônica. Mas o que justifica manter uma leva de fãs em países como o Brasil? A resposta é simples, aponta Eduardo Neves: “É uma ideologia que inconscientemente reproduzimos e internalizamos nos países do Sul, resultado do nosso próprio processo de colonização. O fato de ser uma série de filmes tão longeva e que ainda faz sucesso inclusive por aqui mostra como o mundo segue dividido e como o racismo e a visão colonialista estão enraizados mesmo nos países do Sul global”.

No último filme da saga, em que um já velho (porém ainda charmoso) Indiana Jones retorna para uma aventura final, repetindo padrões e reforçando estereótipos na tela, aqui fora um plot twist (reviravolta inesperada no enredo) típico da nossa contemporaneidade pôs, finalmente, seu personagem em xeque. No final de junho, na mesma semana em que o filme – cujo protagonista é conhecido pelo bordão “Isto pertence a um museu!” – estreou em cinemas de todo o mundo, a Dinamarca anunciou a devolução ao Brasil de um manto Tupinambá surrupiado do país há mais de três séculos e mantido até hoje em um museu de Copenhague. “A gente acredita que seja um ancestral. Não se trata de uma obra de arte, de um mero objeto”, disse a liderança Glicéria Tupinambá, em entrevista ao portal de notícias G1, quando o anúncio foi feito.

Depois dessa, o doutor Jones se aposentou. Se isso representa também o fim da imposição de uma visão colonialista de mundo, confrontada por crescentes problematizações que têm provocado quebras de paradigmas em diversos países, só o tempo dirá. O que sabemos é que, por enquanto, os povos da floresta continuarão, na prática, enfrentando tantos e tantos Indianas Jones da vida real, alguns de terno e gravata, outros conduzindo tratores e abrindo buracos nas terras e nas histórias que são, no fim, o passado, o presente e o futuro de todos nós.


Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Montagem da página: Érica Saboya

Entre uma aventura e outra, o novo velho Indiana Jones reforça discursos imperialistas e preconceituosos. Foto: Reprodução/Disney

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