Era segunda-feira, 18 de março, um dia de lua crescente, e, mesmo na maré alta, não estava fácil trafegar pelos igarapés que atravessam a Estação Ecológica de Maracá-Jipioca, uma ilha coberta de manguezais na região central da costa do Amapá. A água, rasa, impunha limites à marcha da voadeira conduzida por Elimarcos de Oliveira Sacramento, o Perereca, nascido e criado nos rios e mangues que cercam o município de Amapá, onde um porto no Rio Amapazinho é o ponto de partida para o acesso à unidade de conservação criada em 1981. “É maré de morta”, sentenciou Perereca, que desde 2007 presta serviços ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), seja como agente ambiental, seja como piloto das lanchas com motor de popa, que são o único meio possível de chegar à ilha onde é registrada a maior maré do Brasil, podendo alcançar 12 metros.
“Maré de morta” é como as pessoas deste litoral chamam, de um jeito poético, a maré morta, maré de águas mortas ou maré de quadratura, o termo mais técnico. Ela acontece nas luas crescente e minguante, quando o Sol e a Lua formam um ângulo reto e a força gravitacional que exercem sobre o oceano atua em direções opostas. Nesses casos, a diferença entre a maré baixa e a maré cheia é menor. Nas luas nova e cheia, quando os dois astros estão alinhados, suas forças se somam e a amplitude da maré – a diferença entre a baixa e a cheia – é maior. É a “maré de lanço”, no dizer de Perereca, chamada também de maré viva, de águas vivas, lançante ou de sizígia.
Na Estação ecológica de Maracá-Jipioca ocorrem as maiores marés do Brasil, com até 12 metros de amplitude. Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace
A Ilha de Maracá fica num litoral de águas rasas, como toda a área sob influência dos sedimentos despejados pelo Rio Amazonas, cujo estuário está a cerca de 140 quilômetros a leste. Rasas, mas não calmas. Mesmo na maré de morta, quando o mar não sobe tanto, a pouca profundidade amplifica o choque entre a onda que chega do oceano e a costa. É um fenômeno que agita o mar no trajeto da voadeira até a ilha e enche os olhos no Rio Flexal, que recebe as águas do Amapazinho e deságua no Canal do Varador, que separa Maracá do continente. Perto de sua foz, o Flexal parece grávido quando a água do mar faz força para invadir seu leito, a cada 12 horas aproximadamente. A correnteza potente que vem do Atlântico forma uma faixa marrom azulada que contrasta com o marrom barrento do rio. Para quem percorre com o olhar os cerca de 500 metros entre as duas margens, é como se o Flexal estivesse barrigudo, abaulado.
Nas marés de lanço, se os ventos no litoral são fortes, a velocidade do mar aumenta, formando ondas de pororoca que entram quilômetros Rio Flexal adentro. Há pororoca também no Igarapé do Inferno, que corta a Ilha de Maracá de costa a costa e margeia a sede da estação ecológica, uma casa de palafitas ameaçada pela erosão de solos comum na região e que no começo do século fez desaparecer Jipioca, uma ilhota bem menor que hoje só existe no nome da unidade de conservação. Se a pororoca começa, só resta aos pilotos das voadeiras “fugir o mais rápido possível, porque os barcos viram”, explica Marivaldo de Oliveira Galvão, que trabalha na unidade de conservação desde 2015 e atualmente está contratado como agente ambiental temporário. Embora tenham a mesma idade, 40 anos, Marivaldo é tio de Elimarcos, que é filho de sua irmã mais velha.
O geógrafo e analista ambiental Iranildo Coutinho é chefe da Estação Ecológica de Maracá-Jipioca há 11 anos. Ele conta que aprendeu tudo o que sabe sobre as marés na região com pessoas do lugar, como Marivaldo e Perereca, cujo nome inclusive consta como um dos colaboradores do Plano de Manejo da unidade, publicado em 2017. “As marés determinam o ritmo de trabalho, da vida. Dependem não só da Lua, mas do período do ano, dos ventos, se é inverno ou verão, da descarga dos sedimentos do Amazonas”, diz Iranildo (o inverno, a estação chuvosa na região, vai de dezembro a julho, e o verão, de agosto a novembro). Não à toa, comunidades tradicionais do litoral amazônico deram ao espaço em que vivem o nome de maretório, mistura de maré com território.
Iranildo costuma lembrar dos objetos flutuantes que vêm do alto-mar e que as marés depositam nos canais de Maracá-Jipioca quando o assunto é a possível exploração de petróleo na margem equatorial do Brasil, o litoral que vai do Amapá ao Rio Grande do Norte – este o único estado em que já existe produção petrolífera no mar. O caso que chamou atenção para a possibilidade de abertura dessa nova fronteira de produção do combustível fóssil, principal causador do aquecimento global, é o do bloco 59 da Petrobras, que fica em alto-mar na Bacia da Foz do Amazonas, a 159 quilômetros da cidade de Oiapoque, destino final da Rodovia BR-156, que também liga Macapá ao município de Amapá.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) já havia negado licenças na margem equatorial antes – para a petrolífera francesa Total, na mesma Bacia da Foz da Amazonas, em 2018, e para a própria Petrobras, na Bacia de Barreirinhas, no litoral do Maranhão, em 2021. Mas nenhum dos dois casos provocou a pressão política desatada sobre o órgão ambiental depois que seu presidente, Rodrigo Agostinho, negou a licença para a prospeção no bloco 59, em maio de 2023. Em seu despacho, Agostinho argumentou que não havia garantias de resposta adequada a um acidente, citou riscos no plano de socorro aos animais que pudessem ser atingidos pelo óleo e impactos não previstos nos três Territórios Indígenas do Oiapoque, devido aos sobrevoos de aeronaves da estatal.
Agostinho transcreveu trechos de um parecer do Ibama de 2013, quando o licenciamento começou: “Há preocupações relativas à intensa hidrodinâmica da região, que envolve correntes muito fortes e movimentos de marés extremamente amplos”, dizia o texto, que acrescentava que isso poderia “limitar ou mesmo impedir a viabilidade de estratégias de combate a derramamentos de óleo”. O parecer citava ainda o cenário “inédito” em que uma eventual mancha de óleo poderia chegar à costa de países vizinhos. A Petrobras recorreu da negativa com a proposta de reforçar o plano de atendimento à fauna, mas não há prazo para uma decisão final.
Luís Takiyama, químico e engenheiro ambiental, trabalha há anos no programa de gerenciamento costeiro do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa). Na década passada, o órgão participou de um projeto, encomendado pelo Ministério do Meio Ambiente, que apontou alta sensibilidade do litoral amapaense a uma eventual contaminação por óleo. Tal qual Iranildo, Luís lembra que na Ilha de Maracá “se acha muito lixo, boia, garrafa de água do mundo inteiro”.
O pesquisador explica que a dinâmica das águas na margem equatorial tem muitas determinantes – “forçantes”, no jargão técnico – que se inter-relacionam. A principal delas é a Corrente Norte do Brasil, que corre para o noroeste a uma velocidade média de 3 nós, o triplo da Corrente do Brasil, dominante no litoral do Sudeste. Por isso, tende a levar materiais para longe da costa. Há também os ventos alísios que vêm do nordeste e do leste do Atlântico, correm em alta velocidade num movimento perpendicular à costa e por isso tendem a empurrar materiais para o continente. E correntes marinhas que ocorrem abaixo da superfície, que em alguns casos fazem trajeto contrário à Corrente Norte, embora em menor velocidade. Existem ainda as ondas de maré e a própria descarga do Rio Amazonas, que é maior no período de chuvas do que nas secas. Quando chove menos, o fluxo do Amazonas e dos outros rios da região em direção ao mar é menor, e por isso as ondas de maré penetram mais profundamente em seus leitos.
Marivaldo (esq.) trabalha na estação, lar de guarás-vermelhos. Ele e Elimarcos conhecem as marés. Fotos: Alessandra Lameira/ICMBio e Marizilda Cruppe/Greenpeace
Seu Júlio e a faculdade do mar
Elimarcos e Marivaldo levaram até a Ilha de Maracá integrantes de uma equipe da expedição Costa Amazônica Viva, da organização ambientalista Greenpeace, que em março percorreu vários pontos do litoral do Oiapoque a Belém. Embora apto a navegar em águas rasas, o veleiro Witness, do Greenpeace, permaneceu ancorado no mar a uma profundidade média de 10 metros, para não correr o risco de encalhar nos bancos de areia. Patrick Brink, que era capitão do veleiro, comentou as surpresas encontradas na rota, “como se várias camadas do mar se chocassem”.
Na expedição, Luís Takiyama, pesquisador do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá, foi o responsável técnico por um estudo financiado pelo Greenpeace para simular a trajetória de uma eventual mancha de óleo no litoral do estado. No experimento, foram lançados sete derivadores, um tipo de boia equipada com GPS que transmite sua localização. Para a pesquisa, foi necessário assinar um acordo de cooperação entre o instituto e a ONG e submeter o projeto à Marinha, responsável por aprovar qualquer investigação científica em águas brasileiras. Um oficial da Marinha acompanhou o lançamento dos derivadores a bordo do Witness.
Derivadores lançados pelo pesquisador Luís Takiyama para avaliar efeitos de um possível vazamento chegaram às costas do Brasil e de países vizinhos. Fotos: Enrico Marone/Greenpeace
Há derivadores de vários tipos, que podem medir efeitos das correntes de superfície, das marés e dos ventos ou também de correntes de profundidade. O usado foi do primeiro tipo. Custa 22 mil reais por unidade, tem 24 centímetros de diâmetro, 4 de altura e pesa 1 quilo. Dois derivadores foram lançados mais perto da costa, logo depois da “pluma” do Amazonas, formada pelos sedimentos despejados pelo rio. Outros dois foram arremessados próximo a uma área onde há oferta permanente de blocos de exploração de petróleo pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Os três restantes foram direcionados para a posição do bloco 59 e outros blocos contíguos pertencentes à Petrobras.
Os derivadores lançados mais perto do litoral chegaram rapidamente à Ilha de Marajó, no estuário do Amazonas, e à região de Sucuriju, a leste da Ilha de Maracá, onde também existe uma unidade de conservação, a Reserva Biológica do Lago Piratuba. Já os outros cinco, lançados nas potenciais áreas petrolíferas, saíram de águas brasileiras – três deles chegaram às costas da Guiana Francesa, de Suriname e da Guiana, um quarto ultrapassou a Venezuela e o quinto ficou dando voltas no Caribe, ao norte do bloco 59. Os derivadores continuarão sendo monitorados até acabarem as pilhas que alimentam o GPS, o que deve acontecer em julho. No estudo final, segundo Luís, a ideia é determinar os ciclos de ventos, correntes e marés que influenciaram a movimentação dos equipamentos.
A viagem dos derivadores lançados nas proximidades do bloco 59 para fora do mar territorial brasileiro – o que coincide com os estudos apresentados pela Petrobras ao Ibama – não aquieta Júlio Teixeira Garcia, presidente da Colônia de Pescadores de Oiapoque, um paraense do Marajó que veio com a família para o Amapá quando era criança. “Eu conheço Caiena, conheço Kourou, quem está do outro lado são seres humanos”, diz ele, referindo-se à capital e a uma cidade costeira da Guiana Francesa, famosa por abrigar uma base de lançamento de foguetes da Agência Espacial Europeia. Diferentemente da Guiana e do Suriname, a Guiana Francesa não tem exploração de petróleo no mar.
Pescador há 50 anos, seu Júlio sabe que a maré da região pode dar ‘doideira’. Foto: Marcela Jeanjacque/Greenpeace
Com o dinheiro da venda da Gurijuba, da Pescada, do Bagre, Seu Júlio, como é conhecido, mandou os três filhos estudar – uma é enfermeira, outra engenheira de pesca, e o garoto fez curso de piscicultura em Fortaleza. Mas a faculdade dele mesmo foi no mar. Aos 62 anos, é pescador desde os 12 e, com seus 50 anos de experiência, conta ter visto coisas que ele e seus companheiros chamam de “doideira”: “Quando eu era jovem, passava mais tempo no mar do que em terra. Eram 10, 15, 20 dias no mar, o ano todo, inverno e verão. Quando a pesca do Tubarão era permitida, eu ia até a área do bloco 59. A gente trabalha ancorado, então sabe pra onde a água vai e pra onde a água vem. Ela muda de fluxo. Tem época do ano que a maré dá uma ‘doideira’, como a gente chama, tem hora que ela está correndo para terra, tem hora que ela está correndo para fora”.
Seu Júlio relembra o famoso caso dos destroços de um foguete lançado de Kourou que em 2014 chegaram ao Parque Nacional do Cabo Orange, que protege a foz do Rio Oiapoque, depois de terem caído 350 quilômetros a leste do bloco 59 e a mais de 400 quilômetros da costa brasileira. Ele conta que costuma encontrar no Cabo Orange boias de vidro que cogita serem de pesqueiros japoneses que atuam no Rio Grande do Norte fora da zona econômica exclusiva do Brasil, a mais de 370 quilômetros do litoral.
“A gente sabe que o cardume roda. Ele vai daqui [da costa do Oiapoque] para a Guiana Francesa e volta pelo litoral do Amapá”, aponta no mapa. “Veja bem”, descreve, “essa água [com eventual óleo derramado], se ela chega na margem da Guiana, ela vem para cá na margem de volta, de enchente, para adentrar por dentro dos rios. E se der uma ‘doideira’ e alguma coisa vir para cá, nós queremos que tenha uma segurança de que nós conseguimos evitar rapidinho e não vai chegar na costa.”
Mangues, rios e grande recife amazônico garantem fartura de peixes a pescadores da região. Foto: Enrico Marone/Greenpeace
Muito além do bloco 59
Embora seja um experimento bastante limitado, já que as pesquisas do tipo costumam ser feitas com o lançamento de derivadores ao longo de anos, os resultados preliminares do estudo orientado por Luís Takiyama guardam semelhanças com os obtidos no Projeto Costa Norte. Esse projeto, o mais amplo e mais recente sobre a dinâmica costeira da margem equatorial, teve o objetivo de avaliar a vulnerabilidade a um derramamento de petróleo da maior área contínua de manguezais do mundo, que vai do Amapá ao Maranhão, com cerca de 8 mil quilômetros quadrados.
Os mangues são considerados “ecossistemas de carbono azul”, absorvendo e armazenando mais gás carbônico do que as próprias florestas tropicais. “É um sistema fundamental para as comunidades, para a biodiversidade e para [atenuar] as mudanças climáticas”, diz Enrico Marone, porta-voz da campanha de Oceanos do Greenpeace. Locais de desova e alimentação de peixes, os mangues são um dos fatores que alimentam uma intensa atividade pesqueira no litoral amazônico. Ao todo, há mais de 594 mil pescadores artesanais registrados nos estados de Amapá, Pará e Maranhão, segundo o Ministério da Pesca e Aquicultura. Isso representa metade de todos os pescadores artesanais registrados no Brasil, que somam quase 1,2 milhão.
O Costa Norte foi financiado por uma empresa petrolífera, a Enauta, e realizado durante cinco anos por dezenas de pesquisadores da Universidade Federal do Pará, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da empresa Prooceano. Entre outras conclusões, a pesquisa confirmou um fenômeno relatado por pescadores no qual, de janeiro a março, parte da pluma do Amazonas corre pela costa para o leste, na direção do Pará e do Maranhão, em vez de se dirigir para o oeste, no sentido do Amapá, que é o seu trajeto mais comum. Isso significa que, na área próxima ao litoral, ela também pode transportar materiais nessa direção – incluindo uma eventual mancha de óleo.
O Costa Norte lançou 139 derivadores durante um ano, entre fevereiro de 2018 e fevereiro de 2019. Foram seis pontos de lançamento – três próximos a um bloco da Enauta na Bacia Pará-Maranhão, um em frente à foz do Rio Amazonas, um em frente à costa central do Amapá e um na posição do bloco 59. Em cada um dos meses, pelo menos um derivador chegou à costa. Dos 38 derivadores que deram em terra, 24 tocaram a costa brasileira, 17 deles no Amapá e sete no Pará. Os demais 14 chegaram à costa de países vizinhos. Dos derivadores lançados da posição do bloco 59, apenas um tocou o continente, na Venezuela. Como no experimento do Greenpeace, nesse ponto foram usados apenas derivadores movidos por correntes de superfície e ventos – e não por correntes mais profundas que também ocorrem no local.
O estudo avaliou a vulnerabilidade dos mangues em quatro pontos – Sucuriju; Baía de Turiaçu, no Maranhão; Estuário de São Caetano de Odivelas, no Pará; e o sistema costeiro de Soure, também no Pará. Em todos os casos, foi levada em conta toda a área onde potencialmente poderia haver exploração de petróleo, e não apenas os blocos já leiloados. Os pesquisadores verificaram que, para as três localidades no Pará e no Maranhão, as probabilidades de chegada de óleo à costa estão relacionadas a eventuais acidentes nas bacias de Pará-Maranhão, Barreirinhas, Ceará e, em menor escala, Potiguar (Rio Grande do Norte). Essas probabilidades vão de 40% a 50% no período seco e de 20% a 40% no período chuvoso, dependendo da localidade.
Rio Oiapoque, que separa o Brasil da Guiana Francesa, tem a foz protegida por parque nacional. Foto: Enrico Marone/Greenpeace
O risco é maior na região de Sucuriju, no Amapá. Lá, ocorrem as mesmas “hipermarés” da Ilha de Maracá. Os cerca de 500 moradores da Vila de Sucuriju vivem da pesca e só podem se deslocar de barco. Em Sucuriju, segundo o Projeto Costa Norte, a probabilidade de chegada de uma mancha de óleo é a maior entre os lugares estudados, alcançando 80% na estação seca. Esse óleo viria principalmente de áreas na Bacia da Foz do Amazonas mais perto da costa do que o bloco 59, mas também das bacias a leste, Pará-Maranhão, Barreirinhas e, em menor medida, Ceará. “É por isso que a questão da exploração petrolífera na margem equatorial tem que ser vista no atacado. Não é só o bloco 59. Assim como a gente no Amapá pode poluir a Guiana e o Suriname, o Pará pode poluir o Amapá”, diz Luís Takiyama.
Duas licenças já negadas
Uma confirmação de que a sensibilidade socioambiental desse litoral não se resume à Bacia da Foz do Amazonas é o fato de o Ibama já ter negado, em dezembro de 2021, uma licença para a Petrobras perfurar poços na Bacia de Barreirinhas, nos blocos 3 e 5, a cerca de 140 quilômetros da costa. Revelada pela Folha de S.Paulo em 2023, essa negativa foi justificada pela falta de planos de contingência suficientes para garantir a proteção dos manguezais em caso de vazamento de óleo.
Na época, o Ibama concluiu pela “inviabilidade ambiental” do projeto apresentado pela Petrobras. O parecer técnico que embasou a negativa afirmava que “tanto os ecossistemas possivelmente atingidos, como as populações animais residentes e migratórias, são de alta sensibilidade ao óleo”. Dizia que os impactos de um eventual derrame “são de alta magnitude e em certos casos irreversíveis, não sendo possível estabelecer um prazo seguro de recuperação de ecossistemas como manguezais e de espécies ameaçadas como Peixes-boi e inúmeras espécies de aves e quelônios”. A Petrobras fez um pedido de reconsideração, mas o processo está parado desde então.
Hoje, é como se toda a região estivesse em compasso de espera para ver como terminará a novela do bloco 59. Num leilão em 2013, 45 blocos foram arrematados na margem equatorial. Mas, por causa da dificuldade de licenciamento ambiental, empresas pediram a suspensão dos contratos ou devolveram áreas, como fez a Shell no ano passado com quatro blocos em Barreirinhas. Atualmente, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), há 34 blocos concedidos para exploração naquele litoral – nove na Bacia da Foz do Amazonas, cinco na Pará-Maranhão, 11 em Barreirinhas e nove na Bacia Potiguar (não há nenhum na Bacia do Ceará). Desses, porém, 16 estão com o contrato suspenso – dez em Barreirinhas, os cinco da Pará-Maranhão e um na Foz do Amazonas.
No governo, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima ainda negocia a publicação de um decreto presidencial que levaria à realização de uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS) para a margem equatorial. Esse estudo, que analisa de forma mais ampla a compatibilidade de uma região com a indústria petrolífera, tem que ser encomendado em uma iniciativa conjunta com o Ministério de Minas e Energia. O ministro Alexandre Silveira, do PSD de Minas, o defensor mais agressivo da exploração fóssil no governo, resiste. Na época dos leilões da margem equatorial, a avaliação foi dispensada. A ausência dela não é um obstáculo jurídico para a prospecção no bloco 59, mas sua realização foi recomendada em vários pareceres do Ibama.
Além de dar mais segurança ao licenciamento na área, evitando o que o órgão ambiental já chamou de “salvo-conduto para a incerteza”, a avaliação ambiental teria o efeito político de adiar uma decisão para depois da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP-30, que acontecerá em 2025 em Belém. Como a COP-28 em Dubai, no final de 2023, convocou os países a “transitar para longe dos combustíveis fósseis”, a cobrança sobre os produtores, incluindo os anfitriões brasileiros, será grande.
Mangue no Oiapoque é um ecossistema que levaria anos para se recuperar se atingido por petróleo. Foto: Enrico Marone/Greenpeace
A direção da Petrobras mantém seu interesse em perfurar na Bacia da Foz do Amazonas, e a pressão pelo licenciamento deve aumentar com a troca de comando na empresa. A nova presidenta, Magda Chambriard, que substituiu Jean Paul Prates, era diretora da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis quando os blocos da margem equatorial foram leiloados. Num artigo em 2023, ela pediu a intervenção do presidente Lula para impedir que o Ministério do Meio Ambiente se tornasse “o verdadeiro poder concedente” [da exploração de petróleo] no país.
No documento em que pediu que a negativa do licenciamento fosse reconsiderada, a estatal alega que ofereceu estruturas de resposta a acidentes e de proteção à fauna sem precedentes em outras áreas de exploração. Diz ainda que não há “qualquer incerteza científica” sobre sua capacidade de conter um vazamento de óleo nas condições daquela área, e que qualquer afirmação em contrário está amparada em “especulação e suposição baseada em senso comum”.
É uma reação aos pareceres do Ibama que apontam “incertezas”, “dificuldades”, “limitações”, “inseguranças” e “dúvidas” sobre os modelos que preveem o comportamento de uma mancha de óleo na região. O Ibama também aponta a ausência de previsões sobre a trajetória do petróleo depois de 60 dias de um vazamento, quando, em vez de flutuar por ser menos denso que a água, o óleo pode sofrer alterações em sua composição, afundar e eventualmente ser levado para áreas costeiras no Brasil.
Apesar de ter aprovado o último modelo de dispersão do óleo apresentado pela Petrobras para o bloco 59, o Ibama diz que, para os demais blocos na Bacia da Foz do Amazonas, será necessário esperar que fique pronta uma nova base hidrodinâmica para a margem equatorial. A estatal confirma que está desenvolvendo essa base “de forma voluntária em conjunto com outras operadoras na região”. Mas diz que isso “não tem relação com o licenciamento” do bloco 59. A nova base, segundo a Petrobras, “contribuirá para ampliar o conhecimento da região e estará apta para utilização em estudos futuros assim que finalizada e aprovada pelo órgão ambiental”.
A Petrobras continua presente no Amapá e voltou a financiar pesquisas científicas sobre a região, como já havia feito na primeira década deste século. Desde 2023, a empresa patrocina um estudo para a “caracterização ecológica” do sistema de recifes existente na margem equatorial. O sistema tem, segundo pesquisas, um papel importante na alimentação e no abrigo dos peixes da região, mas sua relevância já foi contestada por defensores da exploração petrolífera. De acordo com a Petrobras, 28 pesquisadores de dez universidades, além do Serviço Geológico do Brasil (SGB) e da Marinha, participaram da segunda etapa do estudo, em abril deste ano.
Em uma das últimas ações do Ibama no processo de licenciamento do bloco 59, o instituto pediu à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em outubro de 2023, que se manifestasse sobre os impactos nas três Terras Indígenas do Oiapoque. Em dezembro, a Funai recomendou estudos complementares, listando uma série de itens a serem contemplados, e que os Indígenas fossem consultados. O documento da Funai foi encaminhado à Petrobras em abril.
Em duas reuniões mediadas pelo Ministério Público Federal, realizadas em Macapá em junho de 2023, a Petrobras concordou em participar de processos de consulta prévia com todas as populações tradicionais do Oiapoque, incluindo Indígenas, Quilombolas e Ribeirinhos. A representante da estatal, porém, foi dúbia, dizendo, segundo a ata do encontro, que isso ocorreria “em ocasião oportuna”. Depois dessas reuniões, o Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO) seguiu o combinado e enviou à empresa um plano de consulta, com cronograma e orçamento. O coordenador do conselho, o cacique Edmilson dos Santos Oliveira, afirma que a estatal não deu seguimento ao processo.
A Petrobras alega que a consulta prévia só caberia numa segunda fase, se a perfuração for licenciada e após uma eventual descoberta de petróleo. “O momento adequado para realização de consulta prévia às comunidades tradicionais sobre a atividade de óleo e gás é após as descobertas, na fase de desenvolvimento da produção, caso a atividade possa afetá-las diretamente”, diz a assessoria de imprensa da estatal. Nesse aspecto, há uma divergência clara com o Ibama e a Funai, que defendem a ideia de que os impactos indiretos também sejam levados em consideração desde já.
Os políticos do Amapá, de diferentes colorações ideológicas, mantêm sua campanha pela perfuração do bloco 59, o que pressiona as comunidades do litoral e cria expectativas consideradas pouco realistas. A Petrobras já deixou claro que, num primeiro momento, o empreendimento não criaria empregos diretos no estado. Além disso, uma eventual produção, caso fosse encontrado petróleo, ocorreria sob o regime de concessão. Nesse regime, os pagamentos aos governos em royalties são menores do que no regime de partilha, que foi adotado para o pré-sal. “No Amapá já passamos por ciclos de mineração, soja, energia hidrelétrica. São ciclos ‘salvadores da pátria’, que a gente sabe que não são. São atividades que têm que acontecer de forma responsável, mas não é uma atividade que vai modificar todo o estado”, comenta Luís Takiyama.
As expectativas, no entanto, continuam atraindo pessoas para o Oiapoque, como relata o cacique Edmilson. “É uma preocupação imensa para nós”, afirma. “O município tem um território muito pequeno. De um lado é o Parque Nacional do Cabo Orange, além do Rio Oiapoque é a Guiana Francesa, e do outro lado tem as três Terras Indígenas. A gente percebe que já está bem lotado, e sente que vai ter sérios riscos de invasão [das Terras Indígenas]”, explica. Seu Júlio, o presidente da colônia de pescadores local, diz que a “população está crescendo automaticamente” e que não há estrutura na cidade: “O político quer voto, quer título, nós queremos sustentabilidade, todo mundo comendo bem, uma saúde decente”.
Maçaricos-brancos são uma das espécies que usam Maracá-Jipioca como abrigo em suas migrações. Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace
Como encarar a Onça
Articulado com o movimento nacional dos pescadores artesanais, Seu Júlio bota a boca no trombone por muitas razões. Uma queixa dele, comum a todas as comunidades pesqueiras no litoral amazônico, é a atividade predatória da pesca industrial em alto-mar. O uso de redes grandes sacrifica peixes pequenos e atrapalha os ciclos de reprodução. Embora os barcos industriais tenham um sistema de rastreamento que permite que sua atividade seja fiscalizada, Seu Júlio diz que eles usam barcos menores, os “piolhos”, para entrar em áreas da pesca artesanal.
O sonho de Seu Júlio é a criação de uma reserva extrativista para a pesca que protegeria uma faixa de 12 milhas, ou 22 quilômetros, em quase todo o litoral do Amapá. A reserva vem sendo discutida há anos e já tem até nome, Cabralzinho, mas precisa ganhar apoio político para emplacar. “No Amapá a indústria pesqueira está em terra. Nós, artesanais, alimentamos essa indústria e queremos continuar assim, porque temos capacidade. O problema são os barcos industriais do Pará, de outros estados”, afirma.
Iranildo Coutinho, o chefe da Estação Ecológica de Maracá-Jipioca, confirma que o problema também afeta sua unidade. “Os pescadores menores que trabalham na região usam redes de 500 metros, 600 metros. Os que vêm de fora têm redes de 5, 8 quilômetros. Lançam essas redes lá fora e elas vêm cercando, trazidas pela maré”, descreve Iranildo. “Criam um bloqueio ao longo da costa e pescam cardumes que entram na ilha para desovar.” Adorada na Amazônia, a Gurijuba acabou de sair do período de defeso, de novembro a março. Outros peixes, como a Pescada-amarela e a Pirapema, também usam a unidade de conservação como lugar de reprodução e alimentação.
Iranildo sobreviveu ao governo do extremista de direita Jair Bolsonaro porque ninguém se interessou em assumir o comando de um lugar sem moradores humanos. A estação ecológica tem campos alagados e manguezais. Nestes, a vegetação é de Mangue-vermelho e Siriúba, árvores que têm raízes e caules adaptados para viver em ambientes alagados e salinos. Abriga, além do Caranguejo-uçá típico dos mangues, Onças-pintadas e Antas, além de multidões de pássaros como o Guará-vermelho, a Garça-branca, o Maçarico-branco, o Gavião-caranguejeiro, a Marreca-cabocla. Tem também Búfalos, espécie invasora herdada da fazenda que existia ali antes da criação da unidade de conservação. Pesados, eles andam em manadas alargando igarapés e cavando canais entre os lagos e a água do mar.
No governo Lula, quando as unidades de conservação foram autorizadas a contratar reforços, Iranildo fez uma seleção que representou uma nova chance para pessoas do lugar, como Marivaldo e Perereca, que já tinham experiência de trabalho em Maracá-Jipioca. Hoje, são sete servidores e 20 agentes temporários, que se revezam em equipes na ilha a cada 15 dias. Eles fazem ronda contra invasores, atuam como brigadistas em casos de incêndio e servem de guias para os pesquisadores que vêm estudar a fauna e a flora do lugar.
Quando a voadeira entra nos igarapés de Maracá-Jipioca, o canto dos passarinhos é incessante. Nas águas rasas, pululam Tralhotos, conhecidos como Peixes-de-quatro-olhos, não porque os tenham, mas porque a córnea e a pupila de cada um dos seus dois olhos se dividem em duas partes, uma adaptada à visão fora da água e outra à visão subaquática. Pequeno e sem muita carne, o Tralhoto saltita, distraído, para a cadeia alimentar de aves e outros peixes. Mas o que todo forasteiro quer ver ali é a Onça-pintada – estima-se que haja 60 na estação ecológica. Só que ela não costuma dar as caras, e pesquisadores captam suas imagens deixando câmeras permanentemente ligadas.
De súbito, a grande atração do passeio vira uma pegada de Onça, avistada por Marivaldo em um barranco do Igarapé Jacitara. Perereca desliga o motor da voadeira de modo que seja possível confirmar o grande achado – e não assustar o felino, caso ele esteja por perto e resolva se deixar contemplar. O próprio Perereca, em seus 17 anos no parque, só viu Onça duas vezes, uma de perto, próximo à sede, quando estava pescando Bagre. Ele ensina o que deve ser feito caso alguém passe por situação semelhante. O segredo é não correr: você deve virar para a Onça, encará-la e sair andando de costas, devagar. Só a uma distância segura é possível olhar para a frente e caminhar tranquilo.
Mais ou menos como no caso do petróleo.
As cerca de 60 onças que vivem na estação raramente são avistadas, mas Elimarcos sabe o que fazer caso uma apareça. Foto: Girlan Dias/ICMBio
A jornalista Claudia Antunes viajou ao Amapá a convite do Greenpeace
Reportagem e texto: Claudia Antunes
Edição: Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Infográficos: Rodolfo Almeida
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Chefa de reportagem: Malu Delgado
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum