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ÁREA OCUPADA PELO PROJETO CORINGA NA TERRA INDÍGENA BAÚ: A IMAGEM FOI FEITA DURANTE VISITA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL EM 2018. FOTO: HELENA PALMQUIST/MPF-PA

Bepdjo Mekrãgnotire colhia castanhas-do-Pará perto de sua aldeia, na Terra Indígena Baú, no ano passado, quando explosões distantes interromperam a calmaria da floresta. Foi assim que ele descobriu que, a poucos quilômetros de seu território na floresta amazônica, no estado do Pará, a empresa de mineração britânica Serabi Gold estava abrindo túneis de 4,5 metros de largura para extração de ouro subterrâneo. “O barulho assustou a gente”, contou Mekrãgnotire, membro do povo Kayapó que trabalha com a ONG Instituto Kabu. “A empresa deveria ter nos consultado primeiro. Temos o direito de ser ouvidos.”

A Serabi está atuando sem autorização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), agência governamental proprietária da terra, de acordo com investigação feita pelo projeto Unearthed e parceiros. Um tribunal de instância superior decidiu em 2021 que nenhuma nova autorização poderia ser concedida até que a consulta aos povos indígenas fosse concluída. Mas, mesmo assim, duas agências governamentais renovaram as licenças no ano passado.

Em uma região vulnerável, marcada pela tensão entre a extração de minérios e madeira e a conservação da floresta, um emaranhado de decisões contraditórias de diferentes agências governamentais e complexidades sobre a posse da terra na Amazônia levantou dúvidas sobre a suspensão da operação da mineradora.

A Serabi Gold disse ao Unearthed, a unidade de investigação do Greenpeace no Reino Unido, que está “completamente confortável com [sua] posição legal”, cumpre o marco legal da mineração brasileira e tem todas as autorizações para o projeto Coringa. Mas há quem discorde. “Está tudo errado [nesse projeto]”, sentenciou Ana Carolina Alfinito, consultora jurídica da Amazon Watch, organização sem fins lucrativos que trabalha para proteger a floresta e os povos indígenas.

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Terra disputada

A Serabi Gold – cujos papéis são negociados na bolsa de Toronto e na AIM (mercado alternativo de investimentos) da bolsa de Londres – adquiriu a empresa canadense Chapleau, responsável pelo projeto de mineração Coringa, em 2017. Em 2022, a empresa britânica começou a transportar minério para processamento em outra mina sua localizada 200 quilômetros ao norte. No entanto, a mina Coringa fica dentro de um assentamento sustentável de reforma agrária, o Terra Nossa, e o Incra afirma que nunca autorizou atividades de mineração ou prospecção no assentamento. “É uma região de muita tensão devido à invasão de terras, marcada pelo desmatamento e pela violência contra pequenos agricultores e povos tradicionais”, resumiu Ana Carolina.

Os assentamentos são projetados para aliviar a pobreza na zona rural, ao mesmo tempo em que ajudam a proteger a Amazônia do avanço do agronegócio. Entretanto, essa parte do estado do Pará é conhecida pela violência ligada a disputas ambientais e de posse de terra. Este é o cenário no Terra Nossa: a região tem sido alvo de grileiros, que chegaram a converter áreas do assentamento em plantações de soja. Pelo menos cinco pessoas foram assassinadas na região desde 2011.

Criado em 2006, o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa tinha como objetivo fornecer pequenas propriedades para mil famílias, mas apenas 300 foram transferidas para o assentamento de 1,5 mil quilômetros quadrados, devido à recusa de vários grileiros de terras em deixar a área.

O Incra afirma que um desses supostos grileiros teria negociado a presença da empresa britânica na área. Documentos oficiais mostram que a Chapleau, uma empresa canadense agora de propriedade integral da Serabi, assinou contratos com um homem chamado Benedito Gonçalves Neto, que, segundo o Incra, teria se apossado de mais de 68 quilômetros quadrados do assentamento de “forma fraudulenta”.

ÁREAS DE MINERAÇÃO CLANDESTINA QUE SE ESTENDEM POR MUITOS QUILÔMETROS EM LONGOS VALES NAS PROXIMIDADES DA TERRA INDÍGENA BAÚ. FOTO: HELENA PALMQUIST/ MPF-PA

De acordo com Antônio José Ferreira da Silva, servidor do Incra que escreveu um relatório em 2017 sobre a mineração não autorizada, Neto foi um dos 80 indivíduos identificados pela posse de grandes parcelas de terras públicas de forma irregular. “O Benedito simplesmente se apropriou da terra e disse que era dele”, contou Silva ao Unearthed. “[Tanto é assim que] temos um processo administrativo [em andamento] no Incra para retomar essas áreas”.

O relatório do Incra informa que a Chapleau assinou acordos com Neto e sua família em 2007, 2013 e 2016, que davam à empresa canadense permissão para exploração e mineração em três propriedades reivindicadas pela família de Neto. O Incra conclui que tais contratos foram “baseados em documentação precária” fornecidos por pessoas que não são reconhecidas pelo Incra como “ocupantes legítimos do projeto [o PDS Terra Nova]”.

O último acordo, de julho de 2016, estabeleceu que a Chapleau pagaria aos supostos proprietários de terras um montante único de 21.428 reais, além de parcelas mensais de 1.428 reais e royalties do minério extraído. Em troca, a empresa foi autorizada a fazer o que quisesse na área, incluindo atividades de prospecção e extração de minério, desmatamento, coleta de água e construção de lagoas de rejeitos, edifícios e de uma unidade de processamento. “A partir da assinatura dos contratos, a Chapleau passou a controlar efetivamente as áreas, atuando como um enclave no projeto de assentamento”, descreve o relatório do Incra de 2017.

O código de mineração brasileiro permite que empresas façam acordos com quem for “proprietários ou posseiros” das terras durante o período experimental de mineração (ou seja, antes da outorga de concessão da lavra) e pague royalties, independentemente de a reivindicação ser ou não legalmente reconhecida. O Unearthed foi informado que a Chapleau pagou as taxas a Neto e seus associados, mas que a Serabi Gold suspendeu os pagamentos quando assumiu a mina.

No entanto, o que parece estar acontecendo na mina Coringa é que a empresa britânica está extraindo minério de ouro da Amazônia sem aprovação da agência de administração de terras, sem consulta prévia aos povos indígenas da região e sem pagar uma taxa ao Incra ou aos indivíduos que reivindicam a posse das mesmas terras.

Depois que o Unearthed contatou a Serabi Gold, a empresa divulgou uma declaração aos investidores reconhecendo que a Coringa “tem sido objeto de vários desafios ao longo dos anos”. A declaração não mencionou o assentamento e alegou que o Incra ainda não havia “determinado o detentor legítimo do título de propriedade”. O documento segue informando que “o pagamento será feito para o detentor do título apropriado, conforme e quando ele for formalmente confirmado”.

Sócio de Neto, o geólogo Antonio Carlos Machado Matias disse que eles haviam solicitado ao Incra os títulos oficiais três vezes, recebendo sucessivas negativas por causa do assentamento. Neto e Matias vivem na Bahia, a 2.800 quilômetros da área da Coringa.

A Serabi Gold não é a única empresa que cria enclaves dentro de assentamentos no Pará. Em 2021, o Incra fez um acordo de 1,3 milhão de reais com a mineradora canadense Belo Sun para instalar uma mina de ouro a céu aberto em um assentamento onde vivem 600 famílias. Algumas semanas depois do acordo, o ex-presidente Jair Bolsonaro, de extrema direita, emitiu uma decisão permitindo que o Incra vendesse áreas em assentamentos para empresas de mineração.

Agora, a Serabi Gold vem alegadamente citando a decisão para solicitar que o Incra aprove o projeto Coringa. O Incra informou ao Unearthed que o pedido está sendo analisado, mas confirmou por e-mail que, “até o momento, não autorizou operações de pesquisa e mineração no PDS Terra Nossa”. A Serabi diz que mantém “contato regular com o Incra desde a aquisição do projeto em 2017”.

“A Chapleau reconhece como proprietário da área um cara que tomou terras públicas por meio de fraude”, acusou Silva, servidor do Incra. “A empresa quer o consentimento do Incra, mas se recusa a reconhecer o assentamento.”

A batalha das licenças

A grilagem de terras não é a única controvérsia ligada à mina Coringa da Serabi. A mineradora britânica não consultou adequadamente a comunidade Kayapó Mekrãgnoti, que vive na Terra Indígena Baú, a 11 quilômetros de distância, antes de começar a explorar, de acordo com o Ministério Público Federal (MPF). O MPF abriu processos judiciais para impedir o trabalho na mina em 2017, citando o risco de poluição no rio Curuá, que passa pelo território. De acordo com o MPF, para os Kayapó o rio fornece “grande biodiversidade aquática, da qual os indígenas dependem para sua sobrevivência, além do uso da nascente para todo o seu ciclo de vida tradicional”.

CACIQUE KUEI KAYAPÓ REPASSA REIVINDICAÇÕES À EQUIPE DO MPF DURANTE REUNIÃO NA CASA DOS HOMENS, NA ALDEIA KAMAÚ, EM 2018. FOTO: HELENA PALMQUIST/ MPF-PA

Em dezembro de 2021, o Tribunal Regional Federal-1 (TRF-1), com sede em Brasília, determinou que a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) e a Agência Nacional de Mineração deveriam “se abster de conceder qualquer licença ou autorização” ao Projeto Coringa até que a empresa concluísse uma consulta à população indígena. Apesar disso, ambas as agências renovaram as licenças da Coringa em agosto passado. A Agência Nacional de Mineração informou que “a licença foi renovada automaticamente”, mas que expirou em 7 de fevereiro de 2023 e não foi renovada novamente após essa data devido à decisão judicial: “não há autorização vigente para a execução da lavra nestas áreas”.

A recente declaração aos investidores da Serabi Gold afirmou que a empresa havia encomendado um Estudo do Componente Indígena (ECI) no início de 2022 e apresentaria o relatório final para revisão “nas próximas semanas”. “Embora o progresso tenha sido mais lento do que nós originalmente fomos levados a acreditar, espera-se que o relatório final esteja disponível para ser apresentado às autoridades para revisão nas próximas semanas”, declarou o CEO da Serabi Gold, Mike Hodgson.

A empresa também disse que planeja continuar processando minério em um local diferente e que decidiu que qualquer futura armazenagem de rejeitos na mina Coringa seria do tipo “seco”, o que deveria “minimizar quaisquer preocupações das comunidades que dependem do rio Curuá em relação ao potencial de poluição”.

O MPF afirmou ao Unearthed que a renovação das licenças “descumpre frontalmente a decisão judicial” e que iniciaria um processo para encerrar as operações da Serabi na mina Coringa. Se a corte, em Brasília, concluir que a Agência Nacional de Mineração e a Semas desobedeceram a decisão, as agências podem enfrentar uma multa de 50 mil reais por dia de desobediência.

Felício Pontes Junior, o procurador que acompanha o caso no tribunal, disse: “Espero que haja uma punição exemplar a essa empresa e que isso sirva de exemplo para as outras mineradoras, especialmente as estrangeiras, que hoje se instalam na Amazônia sem respeito aos direitos básicos dos povos tradicionais”.

A Serabi Gold não dá sinais de desaceleração. De acordo com relatórios públicos da empresa, 28,7 quilos de ouro foram extraídos da mina da Coringa em 2022. Quando estiver em plena operação, a empresa espera atingir mil quilos por ano (com valor equivalente a 70 milhões de dólares). Combinada a outras instalações da companhia, essa cota poderia dobrar a produção anual da mineradora.

A empresa reforça que, de acordo com a legislação brasileira, as licenças são automaticamente prorrogadas desde que os pedidos de renovação sejam apresentados. Em uma nova atualização publicada no mês passado, a Serabi declarou: “A empresa confirma que os pedidos de renovação foram enviados dentro dos prazos estipulados e que nenhuma notificação emitida pelas autoridades competentes foi recebida informando que a renovação não será aprovada. Assim, seguem válidas estas licenças, que tinham como prazo inicial de validade 8 de agosto de 2022”. A mineradora afirma também que tem mantido contato regular com o Incra sobre a questão dos alvarás das terras.

A mineradora parece confiar nas perspectivas de lucro da mina. Entretanto, em uma entrevista de novembro do ano passado, Hodgson afirmou que a indústria da mineração estava “um pouco decepcionada” com a derrota eleitoral de Bolsonaro para Lula. O executivo elogiou Bolsonaro, que foi amplamente condenado por incentivar a exploração da Amazônia por mineiros e grileiros: “O que quer que as pessoas pensem dele fora do Brasil, o fato é que [Bolsonaro] tem sido ótimo para a infraestrutura e o setor de mineração como um todo”.

Por e-mail, a Serabi Gold afirmou que “opera e cumpre com o marco legal brasileiro de mineração, tem todas as licenças necessárias para a operação de mineração experimental na Coringa e está completamente confortável com [sua] posição legal e comportamento em relação à disputa em curso sobre a propriedade da terra na qual [a mina] Coringa está situada. A Serabi atua no estado do Pará há mais de 20 anos e continua comprometida em trabalhar com todas as partes interessadas, apoiando as comunidades locais e operando de forma ambientalmente sensível”.


*Esta reportagem foi feita pela Unearthed, a unidade de investigação do Greenpeace no Reino Unido, em parceria com SUMAÚMA e The Guardian. 

Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o português: Denise Bobadilha
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga

A ALDEIA KAMAÚ É A MAIS ANTIGA DAS QUATRO ALDEIAS DA TERRA INDÍGENA BAÚ, QUE FICA NO ESTADO DO PARÁ. FOTO: HELENA PALMQUIST/ MPF-PA

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