O Bosque de Chapultepec é um dos maiores parques urbanos do planeta, e um espaço reverenciado há séculos pelos moradores da Cidade do México. Para os povos pré-hispânicos, o “Morro do Gafanhoto” era meio de comunicação com os deuses e a natureza, uma promessa de futuro. Não deixou de ser. Na cidade mais populosa da América do Norte, o bosque é um refúgio coletivo e um local de peregrinação individual, um espaço que lembra os visitantes de que a vida continua a ser possível, apesar de tudo
Foi no fim de 2019 que surgiu o mapa que me conduziria à entrada do mundo subterrâneo. A China ainda nem havia relatado o primeiro surto de uma pneumonia atípica na cidade de Wuhan, mas há coisas que já nascem predestinadas: o mapa dos melhores lugares para chorar em público na Cidade do México, uma espécie de cartografia da catarse desenvolvida com base em sugestões de centenas de usuários do Twitter, chegaria às minhas mãos em meados de 2021, quando estávamos vivendo a pandemia de covid-19 havia mais de um ano e a Cidade do México, a mais populosa da América do Norte, incubava uma terceira onda de casos. Naquele momento, o mundo inteiro parecia estar a ponto de explodir. O mapa continha 54 locais georreferenciados, oito dos quais ficavam no bosque de Chapultepec. Era completamente lógico: o bosque possivelmente vinha sendo, fazia meses, o território que sustentava a saúde mental de milhares de pessoas, entre as quais a minha.
Depois das águas do vulcão: Chapultepec e arredores são habitados por humanos há mais de 3 mil anos
Hoje eu sei que uma bateria de estudos científicos demonstra que estar em meio às árvores reduz os níveis de cortisol na saliva – um indicador fisiológico de estresse – e de adrenalina, além de baixar a pressão arterial e diminuir a frequência cardíaca. Também li que o ar que uma pessoa respira em meio à vegetação está repleto de monoterpenos – um composto orgânico volátil que as plantas emitem para se comunicar e interagir com insetos e animais – e que esses compostos vêm sendo estudados por suas propriedades anti-inflamatórias, antitumorais e neuroprotetoras. Um especialista em arquitetura sanitária constatou que um simples olhar para imagens da natureza é suficiente para ativar nosso sistema parassimpático, responsável por gerar um estado de repouso que nos permite recuperar a energia.
Mas o que me levou ao Bosque de Chapultepec no início de 2021 não foi nenhuma dessas coisas. Foi a necessidade de fugir de mim mesmo, do peso acumulado da incerteza. Fui em busca de uma saída e encontrei aquilo que se costuma obter do oceano: perspectiva. O bosque não reduziu meus problemas, e sim a importância que eu costumava conferir a mim mesmo. Por isso, comecei a ir até ele toda semana, quase todos os dias, e, desde então, não deixei de fazê-lo.
Diante da magnitude do Bosque de Chapultepec, a ideia de que o fim dos planos pessoais de alguém quer dizer o fim do mundo se torna ridícula, puro solipsismo. É como uma flecha que atravessa o desenho meio infantil de um coração minúsculo, desses talhados na casca de uma árvore que vive há mais de cinco séculos (os técnicos que trabalham no bosque estimam que existam ali árvores de até 600, 800 anos).
O Morro do Gafanhoto – fórmula comumente usada para traduzir a palavra Chapultepec do idioma náuatle (língua falada pelos astecas) – é a origem de um dos dez maiores parques urbanos do planeta – duas vezes maior do que o Central Park, em Nova York –, mas também engloba mais de 3 mil anos de história. O bosque moldou as origens e a vida da Cidade do México de tantas maneiras, e já por tanto tempo, que só é possível capturar parte de sua importância por meio de enumeração ou grandiloquência.
Enumeração: em 2005, uma publicação interna do Instituto Nacional de Antropologia e História do México descreveu Chapultepec como “um bosque de ahuehuetes [ciprestes-montezuma] centenários, uma área de nascentes, um lugar para ler o céu, um jardim para festas do vice-reinado, um campo de batalha, um sítio imperial, um parque público onde todos os sonhos encontram espaço, um lugar de encontros e desencontros e, por que não, uma zona comercial disputada”. Uma pequena cidade dentro da cidade, me dirá mais tarde a diretora do parque, Monica Pacheco Skidmore. “Como um Vaticano.”
Grandiloquência: como se o Vaticano tivesse parido Roma.
Chapultepec é o ‘Morro do Gafanhoto’: o parque que começou numa colina de onde minava água e que floresceu há mais de 30 milhões de anos
O Bosque de Chapultepec hoje é o segundo lugar mais visitado da capital mexicana, depois apenas da Basílica de Guadalupe, diz Monica: “Tem uma média de 23 milhões a 24 milhões de visitantes por ano”. Alguns deles, de acordo com o mapa de recomendações de lugares ideais para a catarse pública, em vez de levar sua dor à igreja, preferem levá-la ao Audiorama, um canto do bosque que foi inaugurado em 1972 como um espaço para leitura. “Chegar a este lugar é chegar ao coração sagrado do grande bosque, receber a dádiva de me reconectar com a paz e o equilíbrio interior, sentindo o abraço da mãe. Obrigado, obrigado, obrigado aos meus ancestrais”, diz um comentário não assinado no caderno de visitantes que fica na entrada do Audiorama. “[Estar aqui] me permite ver outras coisas que ainda tenho dificuldade de entender”, escreveu Juana em junho de 2023. “Se a sensação de estar com meus amigos fosse um lugar, seria este”: é o comentário de um visitante que se identifica como Giyo. “Já vi muita, muita gente chorar aqui”, diz Carlos Hernández y Cervantes, um jardineiro de 83 anos que trabalhou no bosque por metade de sua vida e, desde 2009, cuida do Audiorama.
“Aqui” é isto: uma espécie de fenda que se abre na base de um vulcão extinto – foi assim que se formou o Morro do Gafanhoto –, um espaço em forma de ferradura cercado por árvores imponentes, bambu e rocha vulcânica, tudo verde e sombreado, o que causa a sensação de estar em uma clareira no meio da montanha, em uma gruta a céu aberto. Há bancos coloridos para sentar, um piso de pequenos seixos brancos e, em um dos cantos, a entrada para uma caverna, protegida por uma grade. “As pessoas são convidadas a se aproximar humildemente da grade e fazer uma meditação”, explica Carlos. Para se libertarem do fardo que carregam. Porque essa fenda nas rochas por trás da grade conduz a uma gruta ou caverna conhecida como Cueva de Cincalco. É um sítio sagrado para os povos pré-hispânicos, como os Toltecas e os Mexicas, uma entrada para o subterrâneo (o mundo dos mortos na mitologia mexicana); o lugar que Huémac, o último governante dos Toltecas, escolheu para morrer.
Um códice aceito como documento histórico afirma que Huémac se refugiou na Gruta de Cincalco e se enforcou. Existe uma outra versão, de que ele apenas entrou na caverna e nunca mais saiu. Os motivos que o levaram a se refugiar lá dentro do morro estão contidos numa lenda muito difundida, com uma moral que liga aquele passado a este futuro. A história conta que Huémac jogou bola [os colonizadores espanhóis depois chamariam o esporte de pelota] com os tlaloques – pequenos ajudantes de Tlaloc, o deus da chuva. O vencedor ficaria com o resultado da aposta: pedras de jade e penas de um pássaro, o quetzal. Quando o rei tolteca venceu, os tlaloques tentaram pagar-lhe com elotes [espigas de milho verde] e “preciosas folhas de milho verde nas quais o milho cresce”. Huémac recusou esse pagamento e exigiu o que era seu por direito: as pedras de jade verde e as penas verdes do quetzal. Os ajudantes de Tlaloc se resignaram e lhe deram o que pediu, mas condenaram seu povo a sofrer durante quatro anos. Assim, os Toltecas foram atingidos por chuvas de granizo tão fortes que o gelo chegava até seus joelhos. Perderam suas colheitas e sofreram secas tão severas que até as pedras derreteram. Os Toltecas já estavam morrendo de fome quando Tlaloc exigiu um sacrifício e voltou a lhes dar chuva, mas, antes, informou Huémac de que o fim de seu tempo estava se aproximando, e que o tempo dos Mexicas estava por começar. Já sabemos como a história termina: Huémac partiu para Chapultepec, se refugiou na Cueva de Cincalco e nunca mais apareceu, enquanto seu povo, arruinado, se dispersava.
Mitologia pré-hispânica: a Cueva de Cincalco representa o caminho para o mundo dos mortos. O jardineiro Carlos Hernández y Cervantes, de 83 anos, cuida da entrada
As lições da natureza não são sutis; e pedem tempo.
Atrás da grade que protege o acesso à caverna, a alguns passos do mergulho na escuridão, há sempre uma vela acesa. Nem todo mundo que vem ao Audiorama conhece a lenda de Cincalco, mas todos se aproximam para contemplar aquela boca de pedra que se afunda na colina. “Quando chegam aqui, as pessoas se sentem tocadas pela energia”, me diz, com naturalidade, o jardineiro Carlos.
Os visitantes repetem essa palavra em seus comentários: “Adoro a energia deste lugar”. Quem perambula pelo bosque por tempo suficiente para romper – mesmo que seja só por um momento – as correntes que nos prendem à urgência do mundo consegue compreender com que facilidade a admiração pode se transformar em reverência. Essa pessoa percebe, também, a linha tênue que separa a gratidão do misticismo. “Alguém poderia pensar que estamos vivendo uma modernidade que vira as costas a tudo isso”, me dirá mais tarde o biólogo Martín Aguilar Cervantes, subdiretor técnico do bosque. Mas não: “Os grupos de adoradores das árvores, das pedras e das grutas estão voltando”, ele afirma. Na opinião de Martín, trata-se da adaptação “de algumas crenças em forças naturais que as pessoas querem encontrar aqui em Chapultepec”. E, é claro, elas as encontram.
O que restou: sobraram apenas fragmentos de inscrições pré-hispânicas destruídas pela igreja no século 16, a mineração no 18, os bombardeios no 19, e o tempo
Chapultepec é um vulcão do qual fluía água. Um vulcão que floresceu. Um cone vulcânico formado há milhões de anos que, “por ter uma fratura lateral, fazia jorrar água fria de suas nascentes”, detalha em um de seus artigos a arqueóloga e cientista María de Lourdes López Camacho, uma das maiores especialistas na história e nos significados desse território. Com o tempo, essa condição levou à “formação de uma vegetação densa e à ocupação do sopé das montanhas pela fauna”. María de Lourdes explica que quase todas as sociedades do mundo veneraram as montanhas; na Mesoamérica, esse culto estava ligado à agricultura e à invocação de chuva: “As elevações eram concebidas como um dos meios de comunicação entre o homem e os deuses; consequentemente, as montanhas eram reconhecidas como lugares sagrados e de sustento”.
O Morro do Gafanhoto era sagrado para os povos pré-hispânicos porque era um provedor de vida – como o deus Tlaloc, que dominava a chuva e as montanhas, a água e a vegetação. Era sagrado pela riqueza de sua flora e fauna, pelas nascentes que fluíam de suas encostas, por seus recursos naturais. É também por isso que, ao longo da história, o monte vem sendo um espaço cobiçado, protegido, interferido e disputado.
A vida da Cidade do México é inseparável de Chapultepec há séculos: suas nascentes forneciam água a Tenochtitlán, a antiga capital Mexica, por meio de uma série de reservatórios, aquedutos e canalizações. Durante o cerco a Tenochtitlán, o conquistador espanhol Hernán Cortés mandou cortar o aqueduto que abastecia a cidade com água fresca originada nas nascentes do morro, uma estratégia fundamental para forçar sua queda. Em Chapultepec foram construídos templos para os deuses tutelares da água; sacrifícios eram realizados, cerimônias de purificação eram conduzidas em suas águas, nas quais reis Astecas se banhavam; jardins e zoológicos foram instalados ali. “Tanto na época pré-hispânica quanto na época do vice-reinado”, escreve María de Lourdes, “Chapultepec foi objeto de peregrinação e culto; soberanos fizeram da área a sua residência e construíram templos ou palácios, estradas e sistemas hidráulicos”. Ninguém na história parece ter mantido a indiferença diante de suas maravilhas naturais ou de sua beleza, embora para nós pareça mais fácil esquecê-las.
Em um livro que reúne diferentes pontos de vista sobre o bosque, o conservacionista Vance G. Martin se indagou recentemente por que Chapultepec não poderia voltar a ser considerado um lugar sagrado, “já que serve tanto como coração quanto como pulmão da Cidade do México”. As experiências oferecidas pelas áreas do bosque, especialmente as mais intactas, escreveu ele, “podem nos fazer recordar que, apesar dos traços da civilização e da infraestrutura humanas, a natureza continua a ser a autoridade máxima”. Hoje, o Bosque de Chapultepec abrange cerca de 800 hectares, divididos em quatro seções, mas não é preciso ir muito longe para encontrar um canto que permita resgatar sua transcendência. Às vezes, basta uma praga, um sentimento de inquietação, seja lá o que for que interrompa nossa corrida de ratos e nos arranque de nossos cubículos, para nos levar lá.
Lagos de Chapultepec: eles foram construídos no fim do século 19 sobre minas de concreto. As carpas introduzidas ali agora ameaçam a vida da fauna local
“Milhares de pessoas cansadas, nervosas e civilizadas em excesso estão começando a descobrir que ir às montanhas é voltar para casa”, escreveu o naturalista escocês John Muir, fundador do primeiro grupo conservacionista da história, há mais de um século. O difícil, em uma cidade percorrida por mais de 20 milhões de pessoas a cada dia, é saber o que cada uma delas considera como lar.
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Roberto Ramirez, chefe de manutenção do Bosque de Chapultepec, se recorda vagamente de que aquilo teria acontecido na época da Copa do Mundo da Alemanha (2006). Em sua memória, o aviso chegou quando o México estava jogando com Portugal, embora na verdade tenha surgido algumas semanas antes. O que ele lembra com grande precisão é que ninguém estava preparado para algo assim: o lago Mayor, na segunda seção do bosque, estava se esvaziando.
“O lago de Chapultepec se rompeu”, dizia a notícia publicada no jornal La Jornada em 6 de junho de 2006. Um dia antes, 50 mil metros cúbicos de água – cerca de um quarto do conteúdo líquido total do lago – vazaram repentinamente para o subsolo em questão de minutos, deixando exposta uma mancha de lodo na qual centenas de carpas agonizavam. “O lago está assentado em uma área que antigamente abrigava minas”, explica Ramirez. “Já que o leito é feito de concreto, acreditamos que houve uma infiltração que foi minando a terra até eliminar sua sustentação.” A primeira coisa que as autoridades fizeram foi construir um dique para deter a fuga da água e evitar que os animais continuassem a deixar a área. “Havia peixes, patos, salamandras, carpas.” A segunda providência foi inventar métodos para resgatar a fauna remanescente: lonas foram usadas para improvisar tanques de água sobre caminhões-reboque, permitindo que os animais fossem transportados. Terceira coisa: limpar o fundo do lago, que estava coberto por uma espessa camada de lodo. “Encontramos até um carro por lá”, diz Ramírez. “Um vochito [fusquinha].” Do lodo foram retiradas “armas de fogo, dentaduras, um número infinito de óculos, moedas… Como se fosse um museu”.
Foram necessários meses de trabalho para limpar, consertar e voltar a encher o lago. Mas os seres vivos e objetos inertes que vieram à tona expuseram uma trama de resolução mais complexa do que a infiltração de água: a do conjunto de interesses em conflito que atravessam um território coletivo como o bosque, que cada um de seus moradores considera seu.
Quando o lago começou a esvaziar, as crônicas fazem um relato de que dezenas de pessoas afundaram os pés no lodo para tentar resgatar as carpas, que na verdade são uma espécie exótica que se tornou uma praga e ameaça a fauna nativa. Hoje, 17 anos mais tarde, elas continuam a ser um problema. A questão é como elas apareceram lá. “Pessoas as levaram”, diz Ramírez. Pessoas levam tilápias, que são predadoras, para os lagos; levam tartarugas, “que não deveriam estar lá”; levam patos brancos, “que são muito agressivos e inibem a chegada de patos migratórios”. No fim de 2022, a Secretaria do Meio Ambiente da Cidade do México criou um grupo de especialistas para melhorar as condições nos lagos do bosque. O projeto, de acordo com o que eles anunciaram, deveria incorporar uma abordagem de “ciência cidadã”, para que os vizinhos pudessem participar da monitoração.
Tudo sob controle: entrar no bosque alivia o estresse, porque, além de diminuir a temperatura do corpo, a floresta amortece os ruídos e reduz a velocidade do vento
O senso de pertencimento é uma faca de dois gumes, mas em alguns casos não há como evitar. A fauna nativa do bosque é parte da população da Cidade do México, o subdiretor do parque me dirá mais tarde. Embora ele não o diga dessa forma: “Acredito que haja uma porcentagem importante da população, especialmente na capital, que veio daqui, do Bosque de Chapultepec, ou pelo menos veio ao bosque para planejar [casamentos] e daqui surgiu”, diz Martín Aguilar. Não que existam estatísticas. Mas “há muitas histórias, contadas por qualquer pessoa a quem você pergunte sobre o assunto, a respeito de namoros que começaram em Chapultepec”. Uma generalização baseada em casos empíricos, “que pode dar uma ideia de até que ponto o bosque é importante socialmente”.
A pintora mexicana Teresa Velázquez, que costuma se descrever como “natural de San Miguel Chapultepec” – um bairro tradicional ao sul do parque, onde ela cresceu e onde vive agora, na casa um dia comprada por seu avô –, tem um vínculo arraigado com o bosque, que existe e serve como traço de união entre muitas das pessoas que passaram a infância por lá e agora vivem nos arredores. Há alguns anos, ela diz, quando estava pedalando dentro do Chapultepec, ligou para sua filha, que na época morava em Nova York, e lhe disse: “Não conte a ninguém, porque se descobrirem seremos linchadas, mas esse bosque é muito mais interessante e importante do que o Central Park”. Por fim, ela diz, dois anos mais tarde o dia chegou: foi apresentado o projeto Chapultepec, Natureza e Cultura, coordenado pelo artista Gabriel Orozco. Um projeto considerado como “prioritário” pelo governo, que amplia o território do bosque e inclui iniciativas ambientais, florestais, de infraestrutura e culturais. O plano vem sofrendo mutações desde o começo, teve um parênteses durante a pandemia, desencadeou vários questionamentos e chegou a motivar a criação da Frente Ciudadano por la Defensa del Bosque de Chapultepec [Frente Cidadã para a Defesa do Bosque de Chapultepec], da qual Teresa Velázquez faz parte.
Áreas úmidas artificiais: no bosque coexistem diversas espécies de flora e fauna. Cerca de 200 mil árvores mantêm o microclima de Chapultepec
A Frente Cidadã conseguiu impedir a construção do Pabellón de Arte Contemporáneo, por exemplo, uma das obras propostas por Orozco, que vizinhos e ativistas denunciaram porque passaria por cima do jardim botânico e do orquidário que existem atualmente em Chapultepec, um espaço onde já há uma dezena de museus. Não é que a rejeição ao grande projeto tenha sido monolítica: no início, diz Velázquez, a ideia de recuperar a bacia hidrográfica que atravessa o bosque entusiasmou muita gente. Mas, excetuados os proponentes da ideia, ninguém parecia estar de acordo com uma obra que eles atribuíam mais ao ímpeto megalomaníaco de um artista do que a uma necessidade real. O bosque não deixou de ser um espaço cobiçado e disputado, um território atravessado por conflitos de poder que carrega as marcas da adaptação e da sobrevivência e que encarna um dos dilemas mais emblemáticos de nossa era: o do significado que conferimos à palavra “progresso”.
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Desde 1530, quando o imperador Carlos 5º ordenou, por decreto real, que o Bosque de Chapultepec se tornasse propriedade da Cidade do México, a área está sob a administração da capital mexicana, mas “passou por muitas tentações”, diz sua diretora-executiva, Monica Pacheco: a tentação de burocratas ou funcionários públicos que querem se apropriar de espaços, explica ela, “naqueles momentos em que não compreendemos que somos temporários”. Para ela, o bosque é “o espaço mais democrático, mais popular e mais cívico” da capital. É um lugar de confluência, ela diz, desde o homem mais rico da América Latina (o empresário mexicano Carlos Slim), “que veio caminhar entre os centenários ahuehuetes aqui perto do lago”, até o ex-presidiário que, em seu primeiro dia de liberdade, escolheu ir a Chapultepec “a fim de se sentir completamente livre”.
A cidade que é bosque está povoada por comunidades, diz a diretora, e são essas comunidades que fazem de Chapultepec o que ele é. Em termos biológicos, o parque é um conjunto de comunidades: a maneira mais adequada de pensar em uma árvore, um cacto ou um arbusto, explica o botânico italiano Stefano Mancuso em seu livro Sensibilidad e Inteligencia en el Mundo Vegetal [sem tradução no Brasil e com versão para o espanhol de David Paradela López], não é compará-los a seres humanos ou não humanos, mas imaginá-los como colônias [conjuntos de indivíduos, de organismos, que vivem juntos e interagem entre si]. “Uma árvore, assim, é muito mais parecida com uma colônia de abelhas ou de formigas do que com um animal considerado separadamente.” O engenheiro florestal alemão Peter Wohlleben resume: “A qualidade de uma árvore depende da qualidade do bosque que a rodeia”.
O Bosque de Chapultepec tem cerca de 200 mil árvores e faz jus à ideia de refúgio. É uma ilha de vegetação cercada por concreto. Em algumas áreas, a densidade de suas árvores é tão grande que gera microclimas. Sair da rua e afundar no bosque implica, na verdade, uma mudança de temperatura: dentro dele, o corpo está sujeito a menos estresse térmico. Da mesma forma que amortece o calor, o bosque amortece o ruído e a velocidade do vento. É uma fonte de captura de carbono e um dos principais reguladores da qualidade do ar que respiramos na capital mexicana. As árvores filtram a água da chuva que chega ao solo e mantêm o ciclo hidrológico. Também é um refúgio para aves migratórias. E, para “nossos cérebros criados na savana”, como afirmou a escritora Florence Williams, é uma forma de voltar para casa.
No início da pandemia, quando ninguém tinha muita ideia do que estava acontecendo, as pessoas exigiam que as autoridades tomassem decisões como se soubessem, e o parque foi fechado por três meses. “Foi um erro fechar”, disse a diretora. “E aprendemos a lição. Este é um espaço de liberdade”. Em determinado momento, ela me conta, chegou a instrução de que todas as pessoas com mais de 60 anos que trabalhavam lá teriam que voltar para casa. Os dirigentes praticamente tiveram que forçá-las a sair, recorda Monica Pacheco. “E a verdade é que tiveram mais problemas de saúde em casa do que aqui.”
O naturalista John Muir, que poderia facilmente ter deixado um comentário no livro de visitas do Audiorama, disse a mesma coisa há mais de um século: “Poucos lugares neste mundo são mais perigosos do que o lar. Portanto, não tenha medo de experimentar os passos montanhosos. Eles vão pôr um fim à preocupação, eles o salvarão da apatia mortal, eles o libertarão”. Huémac entendeu isso há mil anos: não há coisa mais inútil do que pedras preciosas, se não houver chuva. Para nós – para alguns, para muitos – foi preciso uma pandemia, uma perda de significado, uma prova da fragilidade de nossas certezas, para nos carregar até a borda do bosque.
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Eliezer Budasoff (Argentina, 1978). É diretor de desenvolvimento de novos podcasts na Radio Ambulante Estudios, onde também é apresentador e editor do podcast El Hilo. Foi editor de projetos especiais do jornal El País, diretor editorial do The New York Times en Español e editor da revista Etiqueta Negra. Ganhou o prêmio Gabo de texto em 2021 e o prêmio Las Nuevas Plumas de crônicas em 2011.Esta reportagem faz parte do projeto Colapso, da Dromómanos, uma produtora de jornalismo independente sediada no México.
Sobre a Dromómanos
A Dromómanos é uma produtora mexicana de jornalismo independente que investiga, treina e conduz experiências para contar a história da América Latina, com jornalistas de toda a região. O projeto nasceu em 2011, quando seus fundadores, Alejandra S. Inzunza e José Luis Pardo Veiras, viajaram pelo continente a bordo de um Volkswagen Pointer de terceira mão, tentando criar um novo modelo jornalístico de cobertura continental e documentando, com mais de 20 reportagens longas e o livro Narcoamérica, a maneira pela qual o tráfico de drogas afeta a vida de nossas sociedades em toda a América Latina. Nesses doze anos, a Dromómanos trabalhou com mais de 100 colaboradores e se aliou a 60 meios de comunicação nacionais e internacionais para narrar as questões mais urgentes para os latino-americanos, como a violência, a crise do clima, o autoritarismo, a migração e a corrupção.
Sobre o projeto Colapso
O que acontece quando a força da natureza encontra as misérias da humanidade? Em poucos lugares é possível obter uma resposta mais contundente a essa pergunta sobre nosso presente e futuro do que na América Latina, a região mais desigual e uma das mais biodiversas do mundo. Colapso se aprofunda nas selvas, montanhas, ilhas, florestas, desertos, oceanos e cidades da região para contar, de perto, a história dos sintomas e das consequências da crise do clima.
Texto: Eliezer Budasoff
Fotos: Felipe Luna Espinosa
Checagem: Dromómanos
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o português: Paulo Migliacci
Tradução para o inglês: Charlotte Coombe
Edição visual e montagem de página: Viviane Zandonadi, Lela Beltrão e Érica Saboya
Direção: Eliane Brum
Cultura Mexica: para os povos pré-hispânicos, Chapultepec foi morada de Tlaloc e Chalchiuhtlicue, deuses da água