Jornalismo do centro do mundo
Coluna SementeAr

Ilustração: Kerexu Martim

Recebi por intermédio de meu amigo e editor Ricardo Teperman uma demanda do mestre Davi Kopenawa Yanomami sobre a origem do fogo. Como surgiu a relação profunda dos seres humanos com a chama colorida que encanta os olhos, aquece a noite e devasta florestas?

Embora a cosmovisão científica estime que existam entre 2 bilhões e 2 trilhões de galáxias no Universo, contendo por baixo 200 sextilhões de estrelas mais ou menos semelhantes ao Sol, o fogo é uma verdadeira raridade sideral, um fenômeno específico intimamente ligado à abundância de oxigênio e à propagação voluntária das chamas realizada pelos seres humanos. Ao contrário do que muita gente pensa, o Sol não brilha por estar queimando, e sim porque os gases hidrogênio e hélio, que compõem 99,9% dessa imensa esfera, passam incessantemente por fusão nuclear em seu centro, a uma temperatura que alcança 15 milhões de graus Celsius.

Em comparação com esse processo de aquecimento extremo, o fogo é um fenômeno relativamente frio, tipicamente em torno de 1 mil graus Celsius, mas podendo variar entre 600 e 5 mil graus Celsius com chama vermelha quando a temperatura é mais baixa, amarela quando é intermediária e azul quando é mais alta. Para a química estudada nas universidades e nos laboratórios de pesquisa, o Avô Fogo que afugenta as feras corresponde à reação súbita do oxigênio com diversos compostos combustíveis. Essa oxidação acelerada produz luz, calor e substâncias derivadas da combustão, como o dióxido de carbono.

Durante a maior parte do tempo transcorrido desde a origem da vida na Terra, há 3,7 bilhões de anos, o fogo foi escasso ou até inexistente, pois quase não havia oxigênio disponível na atmosfera. Foi apenas com o início da evolução do reino vegetal, há 470 milhões de anos, que o oxigênio passou a se acumular a ponto de causar a ocorrência do fogo. Mesmo assim, a irrupção dessa reação química só se tornou mais abundante a partir de 420 milhões de anos atrás, quando os níveis de oxigênio subiram a ponto de deflagrar grandes incêndios florestais, que aparecem desde então no registro fóssil como camadas bem definidas de plantas carbonizadas.

Entre 7 milhões e 6 milhões de anos atrás, o fogo tornou-se ainda mais comum, com a disseminação planetária das plantas altamente combustíveis que chamamos de gramíneas, vegetação herbácea que pode ser rasteira como a grama, ou mesmo mais alta que uma pessoa. Com o passar do tempo, a frequência, o tamanho e a duração dos incêndios foram aumentando, à medida que a temperatura na superfície da Terra subia e a umidade diminuía pela própria ação do fogo. Incêndios sazonais passaram a atuar em alterações periódicas da biodiversidade, tornando-se importantes para o equilíbrio dinâmico de biomas como as vegetações campestres e as Savanas – por exemplo o Cerrado.

O capítulo mais recente da saga do fogo na Terra tem a marca indelével da ação humana. A utilização do fogo por nossos ancestrais não foi um evento singular tal como sugerido pelo mito grego de Prometeu, o titã que teria roubado o fogo dos deuses para dá-lo de presente aos seres humanos e assim mudar para sempre o curso de nossa história. Ao contrário, o fogo foi humanizado através de um longo processo de descobertas e invenções que permitiram o controle, a preservação e os múltiplos usos desse fenômeno transformador.

Acredita-se que nossos ancestrais descobriram o calor e a luz do fogo pelo encontro com incêndios provocados pelos raios solares, por relâmpagos ou por lava vulcânica. Inicialmente, o fogo só podia ser usado – para aquecer corpos, afugentar predadores ou cozinhar alimentos – quando era encontrado por pura sorte. Assim como ocorre hoje em dia com chimpanzés e outros primatas, nossos ancestrais provavelmente passaram a seguir os rastros dos incêndios para se alimentar dos animais e plantas mortos em sua passagem.

Mesmo ocasional, o consumo de alimentos assados aumentou muito a disponibilidade de nutrientes, e com o tempo nossas tataravós e tataravôs afinal compreenderam que o fogo podia ser cuidadosamente preservado pela manutenção contínua de suas chamas com mais madeira, gravetos, palha e folhas secas. Passamos a coevoluir com as gramíneas e muitas outras espécies em torno do fogo.

O filme Piripkura (2017), dirigido por Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, documentou o emocionante esforço empreendido pelos dois últimos Indígenas remanescentes dessa etnia amazônica para manter acesa num oco de pau a única chama que possuíam, salvando com máximo zelo, de dia e de noite, mesmo debaixo de chuva, o incrível poder do fogo.

As pesquisas demonstram que nossos ancestrais descobriram como produzi-lo entre 1,5 milhão e 400 mil anos atrás, a partir do uso da luz solar e da fricção de pedras sobre palha, gravetos e carvão. Porém foi apenas no Paleolítico superior, a partir de 50 mil anos atrás, que o uso do fogo se tornou realmente generalizado, transformando para sempre nossas relações com outros animais e entre nossa própria espécie, pelo aumento da sociabilidade ao redor das fogueiras, o que impulsionou de forma explosiva a coesão grupal e o acúmulo cultural dos últimos milênios.

Nunca mais fomos os mesmos. A produção voluntária do fogo foi essencial para a inversão de perspectivas ecológicas que nos transformou nos animais mais temíveis do planeta, capazes de subjugar qualquer outro predador terrestre. É extremamente provável que entidades espirituais ligadas ao fogo tenham sido sonhadas a partir desse período, iniciando um longo processo de divinização do fogo que milênios depois daria origem a inúmeros deuses cultuados por diferentes povos do planeta, como Xiuhtecuhtli entre os astecas, Pele entre os havaianos, Kagu-tsuchi entre os japoneses, Agni entre os hindus, Hestia e Hefesto entre os gregos, Vesta e Vulcano entre os romanos, Brigid entre os celtas e Logi entre os nórdicos.

Após o final da última glaciação, há 11,5 mil anos, a enorme capacidade de transformação química do fogo tornou-se progressivamente mais importante para as sociedades humanas, pela invenção e desenvolvimento da cerâmica, da metalurgia e da agricultura. Queimadas bem controladas, com temperaturas reduzidas, começaram a ser usadas para disponibilizar nutrientes no solo e limpar terreno para o cultivo de espécies vegetais comestíveis. Entretanto, também se tornaram cada vez mais frequentes as queimadas descontroladas sob altas temperaturas, usadas como furiosas armas da guerra capitalista contra o solo, os fungos, as árvores, os animais não humanes e sobretudo outras pessoas.

A partir da Idade do Bronze, iniciada há cerca de 5,3 mil anos, o fogo tornou-se essencial em inúmeras atividades humanas, com destaque para nossa progressiva obsessão com a guerra. O fogo sagrado de nossos ancestrais passou a ser cada vez mais um instrumento para a opressão, tortura e execução de pessoas, da destruição de Tenochtitlán às fogueiras da Inquisição, das bombas incendiárias dos Estados Unidos que devastaram o Japão à chuva de Napalm do mesmo país sobre populações civis na guerra do Vietnã, dos incêndios criminosos iniciados pelos militares de Mianmar ao fósforo branco lançado pelo exército israelense sobre os pulmões das crianças de Gaza.

Sabemos que as guerras muitas vezes são motivadas pela intenção de espoliar recursos e fazer dinheiro. A profanação do Avô Fogo em ferramenta da Morte é sintoma claro da doença da mercadoria e da adoração do dinheiro das quais nos fala o xamã Kopenawa Yanomami:

“Quando o ouro fica no frio das profundezas da terra, aí tudo está bem. Tudo está realmente bem. Ele não é perigoso. Quando os brancos tiram o ouro da terra, eles o queimam, mexem com ele em cima do fogo como se fosse farinha. Isto faz sair fumaça dele. Assim se cria a xawara, que é esta fumaça do ouro. Depois, esta xawara wakëxi, esta ‘epidemia-fumaça’, vai se alastrando na floresta, lá onde moram os Yanomami, mas também na terra dos brancos, em todo lugar. É por isso que estamos morrendo. (…) Quando esta fumaça chega no peito do céu, ele começa também a ficar muito doente, ele começa também a ser atingido pela xawara. A terra também fica doente”.

Hoje, no interior da floresta tropical, o fogo usado para abrir pastos e garimpar ouro acelera a crise socioambiental, catalisando a catástrofe dos rios esgotados e a redução da umidade que vão tornando a Amazônia cada vez mais seca e inflamável. Isso apenas reforça a tendência de aquecimento global e o aumento da variabilidade climática, por causa do dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa produzidos pelo gado criado em escala industrial e por nossa compulsão para queimar petróleo.

Nossa relação ancestral com o fogo é sagrada e precisa ser curada. O mesmo fogo que destrói a biodiversidade da Amazônia e do Pantanal é necessário para manter a biodiversidade do Cerrado. Entre os Yanomami o fogo é usado na parte final do rito funerário Reahu, para transformar ossos em cinzas e assim deixar a memória dos mortos descansar. O problema não é o fogo, mas sua frequência e intensidade excessivas em prol do lucro cobiçado pelos predadores à margem da lei, da ciência e da decência.

As mudanças climáticas atualmente em curso apontam para a desertificação progressiva de grande parte das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil, enquanto a região Sul deve receber cada vez mais chuvas intensas e destrutivas. No contundente romance Salvar o Fogo, escrito por Itamar Vieira Júnior e publicado em 2023 pela editora Todavia, a protagonista Luzia do Paraguaçu tem ao mesmo tempo o dom e a desdita dos incêndios que tanto salvam quanto destroem. Qual fogo vital precisamos resgatar dentro de nós mesmos para salvar o Avô Fogo de nossa pulsão de Morte?

Sidarta Ribeiro é pai, capoeirista e biólogo. Tem doutorado em comportamento animal pela Universidade Rockefeller e pós-doutorado em neurofisiologia pela Universidade Duke. Pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, cofundador e professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Sidarta publicou cinco livros, entre eles O Oráculo da Noite e Sonho Manifesto (Cia. das Letras). Em SUMAÚMA, escreve mensalmente a coluna SementeAR.

Kerexu Martim é uma mulher Indígena do povo Guarani Mbya e vive em uma aldeia no extremo sul da cidade de São Paulo. Ela desenha desde criança, principalmente mulheres, inspirada por sua própria ancestralidade, que traz a mistura de Indígenas, do lado da mãe, e negros, do lado do pai.


Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Julia Sanches
Arte: Kerexu Martim
Edição de fluxo, estilo e montagem: Viviane Zandonadi
Direção: Eliane Brum

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