Jornalismo do centro do mundo
Coluna SementeAr

Arte: Cacao Sousa

Peço licença a todos os seres visíveis e invisíveis pela oportunidade de me achegar à sombra desta frondosa SUMAÚMA. Agradeço ao grande espírito universal, princípio e fim de todo o mistério, criador das estrelas, deste planeta e da vida, desde a primeira célula até o cipó e a folha. Agradeço aos ancestrais humanos e não humanos, desde as avós mais antigas até minha mãe e meu pai. Agradeço aos povos originários deste continente, com profundo respeito.

Nasci numa cidade grande e morei noutras tantas durante a vida, mas afinal aprendi, com sábias e sábios mestres, indígenas ou não, a reconhecer um fato óbvio: a cidade é a ruína da floresta. Como em toda ilusão que confunde figura e fundo, depois que a ruína é percebida, torna-se impossível deixar de vê-la.

É isso que parece acontecer no embate em torno da exploração de petróleo na margem equatorial da Amazônia e região Nordeste. Alguns camaradas da esquerda, amigos e colaboradores de longa data, parecem não conseguir perceber a enormidade do equívoco de forçar essa exploração à revelia do Ibama, dos povos da floresta e dos interesses planetários na proteção desses biomas. Agarrados a argumentos técnicos que negligenciam riscos e inflam a imaginação dos lucros futuros, meus amigos se esquecem de muitas coisas.

Se esquecem de que o povo brasileiro nunca chegou a usufruir dos benefícios prometidos pela exploração petrolífera do pré-sal. As gigantescas reservas deveriam ter alavancado uma revolução educacional no país, segundo a Lei nº 12.858/2013, mas o golpe de 2016 abriu caminho para a apropriação inexorável desses lucros pelo oligopólio das mesmas corporações multinacionais que dominam o mercado petrolífero há quase um século.

Se esquecem os desenvolvimentistas de que o tempo do petróleo já passou. Ainda que fosse confirmada a existência de enormes reservas na margem equatorial brasileira, ainda que nunca houvesse vazamentos nem acidentes, ainda que as correntes se orientassem todas para longe do continente, ainda que o oceano fosse um sorvedouro ilimitado de óleo, ainda que as florestas, manguezais e corais não fossem frágeis, ainda que populações indígenas e ribeirinhas não se organizassem nem protestassem contra essa violência, ainda que nenhuma forma de vida existisse ali e todos os sonhos mais toscos dos capitalistas predatórios fossem realidade, qualquer produção capaz de ser comercializada só ocorreria em dez anos. Os defensores da exploração de petróleo na margem equatorial querem uma década inteira do nosso futuro para voltar ao passado.

Como convencê-los a perceber o Tempo, o Sol e a Lua, o Vento e as Marés?

Como convencer os amigos desenvolvimentistas, autoproclamados progressistas, de que o planeta não aguenta mais tanta desdita extrativista? Como explicar que por dinheiro algum vale a pena acelerar o desequilíbrio ambiental em curso, através da degradação ou destruição de matéria orgânica viva – as florestas, corais e manguezais –, para extrair matéria orgânica morta e pegajosa, com a única serventia de produzir combustíveis, plásticos e tantas outras coisas que compulsivamente descartamos, incineramos e espalhamos por toda parte?

Não se trata apenas de transformar a matriz energética, trata-se de aprender a viver de outra maneira. Como convencer o povo da mercadoria a libertar-se da sedução do dinheiro e da aquisição insaciável de objetos, que turvam a visão e impedem de perceber a vida? Como lembrá-lo das palavras de Davi Kopenawa Yanomami, que didaticamente explica a raiz do problema: a doença da mercadoria nos faz tratar coisas como se fossem gente e tratar gente como se fosse coisa.

Ver os argumentos dos desenvolvimentistas de esquerda coincidir com as opiniões dos analistas de mercado de direita na mídia hegemônica é perturbador. Se a decisão técnica do Ibama for desrespeitada, o novo governo terá cruzado uma linha intransponível para quem tem a ambição de redesenhar a inserção geopolítica do Brasil. Jamais seremos liderança ambiental global sem uma mudança consistente de atitude, fundada na compreensão socioecológica da crise e na urgência que o problema tem.

Vivemos uma escalada sem precedentes desse desequilíbrio, com poluição desenfreada e quase 1 bilhão de pessoas passando fome, enquanto vamos sendo soterrados por 1,5 bilhão de carros e 16 bilhões de celulares. Com tanta conexão virtual e desconexão real, as pessoas estão cada vez mais afastadas da realidade, imersas na ilusão de um progresso cujo sujeito é sempre oculto. Sem humildade diante da hecatombe em curso, estamos condenados, inclusive os desenvolvimentistas, a perder tudo.

A ministra Marina Silva já deixou bem claro que enxerga a exploração de petróleo na margem equatorial do Brasil como enxerga a usina de Belo Monte: um equívoco monumental. Se a mídia hegemônica ainda precisa fazer autocrítica sobre seu papel na conspiração que levou à prisão ilegal de Lula em 2018, a esquerda desenvolvimentista também precisa fazer autocrítica sobre sua cumplicidade no processo violento de cooptação popular e atropelamento de direitos que levou à inauguração de Belo Monte em 2016.

A maior riqueza da Amazônia é sua diversidade biológica e cultural. De um lado, genes, proteínas, lipídeos, óleos essenciais e muito mais. Do outro lado, cantos, danças, dietas e uma vasta farmacopeia. Um estudo recente com povos indígenas da Amazônia, da América do Norte e da Nova Guiné mostrou que mais de 75% de todas as 12.495 possibilidades de manejo de plantas medicinais são conhecidas apenas por um idioma. Até 2100, estima-se que um terço das mais de 7 mil línguas humanas hoje existentes estará extinta. Ao mesmo tempo, atravessamos a sexta maior extinção de espécies desde o início da vida, uma aniquilação pelo menos cem vezes mais rápida do que a taxa natural de extinção.

Para evitar esse desastre e transformar a riqueza biocultural da Amazônia em bem-estar para mais animais humanos e não humanos, é preciso alinhar a busca de saber da ciência acadêmico-universitária com as múltiplas ciências dos povos da floresta. Apenas pela articulação respeitosa e paritária entre indígenas, ribeirinhos, cientistas e gestores governamentais será possível obter e repartir benefícios, em sintonia com o Protocolo de Nagoia, que se aplica aos recursos genéticos cobertos pela Convenção sobre Diversidade Biológica e aos conhecimentos tradicionais a eles associados.

É preciso reconhecer que a ciência acadêmico-universitária é muito diversa, possui múltiplas visões, contradições e conflitos de interesse. Enquanto as ciências ambientais e antropológicas lutam pela floresta e seus povos, outros cientistas desenvolvem pesticidas e explosivos em associação com o capitalismo que a tudo devasta.

Para não repetir erros, escapar do pensamento único e vencer a batalha contra preconceitos tão arraigados quanto arbitrários, será preciso ter a coragem de sonhar mais longe, bem mais alto, muito além. Um outro mundo continua sendo possível e necessário. Abraçado a SUMAÚMA, coberto por seu orvalho, me apresento ao trabalho.

Sidarta Ribeiro é pai, capoeirista e biólogo. Tem doutorado em comportamento animal pela Universidade Rockefeller e pós-doutorado em neurofisiologia pela Universidade Duke. Pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, cofundador e professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Sidarta publicou cinco livros, entre eles O Oráculo da Noite e Sonho Manifesto (Cia. das Letras). Em SUMAÚMA, escreve mensalmente a coluna SementeAR.


Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Julia Sanches
Montagem da página: Érica Saboya
Arte: Cacao Sousa

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