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Lula e Sonia Guajarara durante recepção ao presidente francês Emmanuel Macron: ministério serviu mais à imagem do governo que às reivindicações Indígenas. Foto: Ludovic Marin/AFP

A sede da Procuradoria-Geral da República – órgão que comanda o Ministério Público Federal, o MPF – funciona em dois prédios de formato cilíndrico e fachadas de vidro espelhado projetados pela estrela da arquitetura modernista Oscar Niemeyer (1907-2012). Vistos de longe, eles parecem flutuar sobre o amplo terreno gramado, nos fundos da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Numa sala de reuniões de um dos edifícios, na manhã de 24 de outubro de 2023, o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, constrangia a colega Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas.

Dino e Sonia estavam sentados, frente a frente, a uma mesa que tinha na cabeceira a procuradora da República Eliana Torelly, responsável pela defesa dos direitos dos Indígenas no Ministério Público Federal. A reunião havia sido convocada para tratar de um problema na desintrusão da Terra Indígena Apyterewa, lar de Indígenas Parakanã em São Félix do Xingu, sudeste do estado do Pará, na Amazônia brasileira. A retirada dos invasores de Apyterewa era exigência da Justiça e uma das principais bandeiras do Ministério dos Povos Indígenas, o MPI. Mas, dias antes, em 16 de outubro, Oseias dos Santos Ribeiro, morador de uma vila de casas de madeira construída ilegalmente na Terra Indígena, havia sido morto a tiros por agentes da Força Nacional após tentar desarmar um deles. A Força Nacional estava lá por determinação do Ministério da Justiça e Segurança Pública, a quem é subordinada. E Dino resolveu mandar parar tudo.

“Não quero carregar um cadáver nas costas”, justificou-se o então ministro logo ao início da reunião, segundo quatro pessoas presentes que deram entrevista a SUMAÚMA sob a condição de não serem identificadas. Ele foi interpelado por um membro do MPF que falava por videoconferência do interior do Pará: “E quanto aos cadáveres de Indígenas, ministro?”. Dino não se deu por vencido e lançou sobre a mesa a carta decisiva: havia alinhado previamente a decisão com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Cobiçada por madeireiros, garimpeiros e grileiros, Apyterewa foi a Terra Indígena mais desmatada do Brasil entre 2019 e 2022. Perdeu, nesse período, 324 quilômetros quadrados de floresta – o equivalente à área da cidade de Fortaleza, capital do Ceará. A demarcação, finalizada em 2007, jamais garantiu aos Parakanã a possibilidade de uma vida tranquila. Segundo relatos de quem acompanha a situação, os Indígenas tinham medo até de sair de suas aldeias para caçar na mata por receio dos invasores. Naquele segundo semestre de 2023, durante uma das mais severas secas da história da Amazônia, um fazendeiro ilegal impedia os Parakanã de usar um poço artesiano para conseguir água. Sem saída, eles bebiam a água suja que encontravam nos rios.

A desintrusão de qualquer território Indígena é responsabilidade do poder público federal. A de Apyterewa se arrastava havia anos de idas e vindas e tentativas fracassadas. Em outubro de 2023, com uma sequência de ordens judiciais determinando a retirada dos invasores e a boa vontade do governo Lula, parecia que finalmente ela seria concluída. A morte de Oseias dos Santos Ribeiro ocorrida em 16 de outubro, porém, bastou para Dino resolver dar vários passos para trás. Já era dado como certo, àquela época, que ele seria indicado por Lula para ocupar a vaga aberta pela aposentadoria da ministra Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal – o que foi sacramentado em fins de novembro. Para de fato se tornar ministro do Supremo, porém, Dino precisaria do apoio de pelo menos 41 senadores numa votação secreta. Senadores como Zequinha Marinho, do Podemos do estado do Pará, bolsonarista e contumaz defensor de grileiros de terras públicas, que trata como “produtores rurais”, “homens do campo”, “cidadão de mãos calejadas”, “cidadão que luta para produzir”. Marinho havia ido ao gabinete de Dino, em 3 de outubro, para defender os invasores da Apyterewa.

Tudo indica que ele sensibilizou o então ministro. Na reunião na Procuradoria-Geral da República, Dino admitiu estar sob pressão de políticos contrariados com a desintrusão e se referiu aos invasores como “colonos” e “coitados”, segundo testemunhas relataram a SUMAÚMA. Seguiu-se uma discussão que se arrastou por mais de duas horas, na qual foi preciso que servidores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, pacientemente demonstrassem que várias das casas das vilas quase não tinham móveis ou utensílios domésticos – sinal de que não eram, de fato, residências, mas estavam ali para justificar eventuais tentativas de requerer a posse das terras. Foi preciso também que o MPF explicasse que 177 imóveis rurais tinham sido registrados na Apyterewa mesmo após a demarcação ser concluída. E foi preciso ainda colocar na mesa levantamentos que contabilizam 60 mil bois e vacas criados ilegalmente na Terra Indígena – um rebanho incompatível com o que poderia ser juntado por pequenos proprietários rurais. Ao final, Dino cedeu alguns passos: a Força Nacional não seria retirada, como ele inicialmente havia decidido. Mas também não retiraria nenhum invasor que resistisse.

Flávio Dino, Eliana Torelly e Sonia Guajajara na reunião sobre a desintrusão da TI Apyterewa: ‘Não quero carregar cadáver nas costas’, ele disse. Foto: Isaac Amorim/MJSP

Os participantes da reunião ouvidos por SUMAÚMA relataram um mal-estar palpável entre os ministros. Dino abraçou uma tese de adversários do governo e dirigiu-se a Sonia como se fosse um superior hierárquico dela, em vez de – àquela altura – colega de ministério. A primeira Indígena a ocupar um ministério na história da República brasileira demonstrou desenvoltura, mesmo sendo apanhada de surpresa pela combinação prévia entre Lula e Dino: quando teve a palavra, falou em defesa da desintrusão, que acabaria por ser concluída nos meses seguintes.

O episódio ilustra a situação do Ministério dos Povos Indígenas em seu primeiro ano de existência. Com pouco orçamento, estrutura em construção e lideranças Indígenas estreando em cargos de comando no Poder Executivo, era previsível que os primeiros passos fossem difíceis. Contudo, a falta de apoio político do próprio governo e de sua base parlamentar é apontada como o maior problema pelas duas dezenas de fontes – lideranças de movimentos Indígenas, servidores do MPI e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), membros do MPF, políticos e integrantes de organizações não governamentais – que a reportagem ouviu ao longo do mês de março para traçar um quadro sobre o primeiro ano do ministério que é uma conquista histórica dos povos originários.

“A avaliação geral é de que o ministério ficou isolado em 2023. Falta o governo tomar a pauta [Indígena] para si”, analisa Verá Yapuá, assessor jurídico da Comissão Guarani Yvyrupa, organização do povo Guarani. “O MPI é uma conquista, mas não a solução para todos os nossos problemas ou os [problemas] da política indigenista”, afirma Kleber Karipuna, um dos coordenadores da Articulação de Povos Indígenas do Brasil, a Apib. “O apoio político do governo às reivindicações Indígenas foi a cara deste governo: diz que quer fazer [avançar], e a gente vê que tem um nível de compromisso político. Mas é um governo de coalizão, tem o [partido de direita] União Brasil, e os desenvolvimentistas do PT”, assinala Adriana Ramos, especialista em políticas ambientais e coordenadora do Instituto Socioambiental, o ISA.

Nem de esquerda, muito menos ruralista, o deputado Amom Mandel (Cidadania-AM) assim avalia: “No Amazonas, a visão de que a criação do MPI não foi suficiente para resolver os problemas [dos povos Indígenas] é quase unânime. É muito importante ter uma Indígena num cargo de ministra para ter representatividade e voz no governo. Mas é preciso dar a ela condições para trabalhar. Senão, podemos ter algo que é muito bom para o marketing verde do país mas que não traz resultados efetivos”. Aos 23 anos, ele é o mais jovem deputado federal eleito no Amazonas, após ganhar destaque com denúncias sobre a pandemia da Covid-19 em Manaus e se envolver em causas ambientais.

Ao longo de semanas, SUMAÚMA pediu, reiteradamente, uma entrevista com a ministra Sonia Guajajara e o secretário-executivo da pasta, Eloy Terena. O ministério, porém, só aceitou responder por escrito. “A retomada da política indigenista do Estado brasileiro, paralisada durante os seis anos anteriores [governo Temer e governo Bolsonaro], e a necessidade de ações rápidas frente a situações emergenciais que se apresentaram – como a emergência Yanomami logo no primeiro mês de governo – tiveram de ser concomitantes à própria estruturação de um ministério inédito”, justifica-se o MPI em nota. “[Isso foi] um desafio a mais no cenário de terra arrasada que encontramos quando assumimos o governo.”

‘Por que não um ministério?’

O movimento Indígena reivindica há décadas a participação de suas lideranças na administração pública federal. Já em abril de 1994, quando se preparava para disputar sua segunda eleição à Presidência da República, Lula recebeu um documento assinado por 350 lideranças que requeria, entre outros pontos, “a organização do órgão indigenista [a Funai] no sentido de que haja efetiva participação dos povos e das organizações Indígenas em instâncias de direção colegiada”.

Foram necessários 28 anos – e, no caso de Lula, o terceiro mandato como presidente – para que a importância da pauta fosse reconhecida com a promessa de um ministério. “Vocês me deram uma ideia: se a gente criou o Ministério da Igualdade Racial, se a gente criou [o Ministério] dos Direitos Humanos, se a gente criou o Ministério da Pesca, por que a gente não pode criar um ministério para discutir as questões Indígenas?”, discursou em abril de 2022 o então pré-candidato Lula durante o Acampamento Terra Livre, o ATL, principal encontro de lideranças Indígenas do país, há 20 anos realizado em Brasília.

Sonia Guajajara toma posse observada (a partir da esquerda) por Joenia Wapichana, Flávio Dino, Dilma Rousseff, Janja e Lula. Foto: Sergio Lima/AFP

Não havia consenso no movimento Indígena sobre as vantagens de um ministério novo e exclusivo para a pauta. Algumas lideranças defendiam a tese de que faria mais sentido concentrar o trabalho numa Funai valorizada e já mais bem estruturada. Contudo, não era oportunidade para se deixar passar. “É a primeira vez no governo federal que os povos Indígenas estão ocupando espaços estratégicos. É uma conquista política do movimento”, defende Kleber Karipuna, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Dos quadros da entidade saíram a ministra, Sonia Guajajara, filiada ao PSOL e eleita deputada federal em 2022 pelo estado de São Paulo, e o secretário-executivo, o advogado Indígena Eloy Terena.

Para o Palácio do Planalto, a nomeação de Sonia também serviu para garantir ao PSOL seu único ministério no terceiro governo de Lula. Houve fissuras, porém: lideranças de instituições como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, a Coiab, maior entidade regional do Brasil, preferiam Joenia Wapichana para o cargo. Natural de Roraima, ela foi a primeira advogada Indígena a fazer uma defesa em viva-voz num processo no Supremo Tribunal Federal e a primeira mulher Indígena a ser eleita para o Congresso Nacional, em 2018 – pela Rede Sustentabilidade, partido da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. Joenia não conseguiu a reeleição, em 2022, e acabou indicada para presidir a Funai, que teve uma mudança política sutil mas importante no nome: de Fundação Nacional do Índio para Fundação Nacional dos Povos Indígenas. A disputa entre as duas lideranças pelo cargo de ministra acabou por prejudicar uma relação que nunca foi próxima e a afastar uma da outra. De povos, partidos e personalidades diferentes – Sonia é falante e sorridente; Joenia, reservada e de expressão em geral sisuda –, elas têm uma relação distante e limitada às exigências dos cargos.

Como até então nem existia, em janeiro de 2023 o Ministério dos Povos Indígenas tinha zero servidores – e segue até hoje com zero servidores. Para montar uma equipe de trabalho, Sonia convocou lideranças do movimento Indígena para os principais postos de comando, auxiliados por servidores cedidos por outros ministérios e por órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, a Defensoria Pública da União, a Polícia Federal, a Funai e universidades. A ideia de ter Indígenas nas principais posições partiu da bandeira de “aldear a política”, que Sonia empunhou durante a campanha.

À falta de experiência da maioria deles com a complexa burocracia da administração pública se somou o preconceito da elite do serviço público instalada nos gabinetes de Brasília. Ouvem-se reclamações como a de que “os Indígenas não sabem nem fazer um ofício” – um documento do dia a dia das repartições públicas. “Não sabem, realmente. Eles não tiveram esse treinamento, não estão há anos estudando para fazer concursos públicos como nós, brancos”, ironiza uma militante dos direitos Indígenas que pediu para não ser identificada pela reportagem. “Para o pessoal da Esplanada [dos Ministérios], os Indígenas são incompetentes, não dão conta do trabalho”, desabafou uma liderança. “Estruturar um ministério não é coisa simples, passa por relações e negociações com um monte de ministérios”, afirma Márcio Santilli, ex-presidente da Funai durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, fundador e presidente do conselho diretor do Instituto Socioambiental.

Sonia na posse como deputada, em debate com senador Chico Rodrigues, que defende garimpo, e em marcha na Câmara. Fotos: Pedro Ladeira/Folhapress, Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil e Matheus Alves/SUMAÚMA

Em nota, o MPI se posicionou: “Isso faz parte de uma política etnocêntrica de desconsiderar os conhecimentos tradicionais e a forma própria de se organizar [dos Indígenas]. O racismo, como sabemos, é estrutural e institucional. Reflexo de uma política de exclusão dos povos Indígenas de posições de poder e que propositalmente não investia na educação de qualidade e de direitos relacionados à própria cidadania. Seria muito limitado (e perpetuador de preconceito), diante de tamanha riqueza de conhecimentos, restringir a apreciação do trabalho desenvolvido pelos Indígenas no MPI ao domínio das formalidades da escrita e das técnicas de redação. Vários Indígenas que trabalham hoje no MPI possuem mestrado, doutorado, alguns são advogados e advogadas. A presença de Indígenas na Esplanada ainda incomoda e incomodará por muito tempo. A Esplanada é um lugar tradicionalmente ocupado por pessoas privilegiadas, com muito estudo e, quase sempre, brancas. Medir a escrita de um Indígena com a mesma régua dessas pessoas que sempre circularam por aqui, além de desigual e injusta, é perpetuar preconceito”.

Nova, pequena e desentrosada, a equipe do MPI também precisou lidar com a falta de estrutura para trabalhar. Um exemplo corriqueiro, mas significativo: até pelo menos outubro de 2023, dez meses após a posse, alguns endereços de e-mail do ministério comandado por Sonia ainda tinham o final @economia.gov.br. A pasta ocupa dois dos nove andares de um dos vários prédios modernistas idênticos que compõem a Esplanada dos Ministérios. Nele, o MPI divide espaço com servidores dos ministérios das Mulheres, da Igualdade Racial, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome e da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Do local de trabalho aos computadores e servidores de informática, tudo é emprestado. Em fins do ano passado, o governo federal anunciou um concurso público unificado para suprir as carências de servidores em diversos ministérios e órgãos. Das 6.640 vagas abertas, 30 são destinadas a analistas administrativos para o MPI. Bem mais vagas do concurso (502) serão destinadas às necessidades da Funai, que no ano passado passou a ser vinculada ao MPI.

Em 2023, seu primeiro ano de existência, o Ministério dos Povos Indígenas teve à disposição apenas o orçamento de 815 milhões de reais previsto anteriormente para a Funai. Ainda assim, aplicou-se, efetivamente, menos que em anos anteriores: até 1o de abril de 2024, apenas 582 milhões de reais foram pagos, o correspondente a 71,4 % do valor empenhado – ou seja, liberado para uso pelo Ministério da Fazenda. É um percentual inferior ao dos três anos finais do governo do extremista de direita Jair Bolsonaro, em que a Funai usou ao menos 81% do orçamento que teve. “A diminuição nos pagamentos referentes ao ano de 2023 justifica-se por ser o primeiro ano de existência do ministério, o que demandou mais tempo para a absorção da Funai e, consequentemente, para a conclusão dos projetos, habilitando-os para pagamento”, justificou o MPI em nota enviada a SUMAÚMA.

Em 2024, primeiro ano em que o Orçamento-Geral da União foi elaborado pelo governo Lula para sua estrutura atual, o MPI terá 324 milhões de reais para seu próprio uso, além dos 981 milhões reservados para a Funai. Para efeito de comparação, a Funai teve orçamentos entre 518 milhões de reais e 557 milhões de reais (em valores da época) durante o governo Bolsonaro. Ainda há mais dinheiro para políticas públicas voltadas aos povos originários em outros ministérios. A Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, a Sesai, trabalha com um orçamento de 2,6 bilhões de reais em 2024 , e Lula liberou mais 1 bilhão de reais em créditos extraordinários para buscar uma solução para o genocídio Yanomami.

Ainda assim, o 1,31 bilhão de reais que MPI e Funai têm à disposição neste ano equivale a 0,01% de todo o gasto público federal em 2024, segundo o Portal da Transparência, página que reúne dados sobre o governo federal. O Censo 2022 contou 1,7 milhão de Indígenas no Brasil – ou 0,83% da população brasileira. Mas a importância dos povos originários vai muito além do número de pessoas. As Terras Indígenas são grandes responsáveis pela conservação dos biomas, o que é essencial para enfrentar o superaquecimento global: 2023 terminou com temperatura média 1,4 grau Celsius superior à dos anos pré-Revolução Industrial. “O MPI praticamente não teve orçamento, viveu de buscar parcerias com outros ministérios”, lamenta a liderança Leonardo Werá Tupã, que é professor na Terra Indígena Yvy-ju, em São Francisco do Sul, Santa Catarina. “Quando estive lá, faltavam até mesas e cadeiras.”

Com quase 60 anos de história, a Funai, pela primeira vez comandada por uma Indígena, viveu dias menos conturbados. Joenia Wapichana conseguiu, por exemplo, aprovar em fins de 2023 um plano de carreira para servidores da autarquia. Que também não tem os problemas de estrutura do MPI: ocupa alguns andares, alugados, em um moderno prédio de escritórios ao lado do Parque da Cidade, na Asa Sul de Brasília. Além disso, terá 502 vagas no concurso público unificado aberto por Lula – 30% delas reservadas a profissionais Indígenas. A recomposição dos quadros era urgente: atualmente, a Funai tem 2.487 servidores já aposentados e pensionistas, um número superior aos 2.046 indigenistas em atividade.

‘Ninguém sai com 100% do que quer’

A principal reivindicação dos povos originários e da parcela da sociedade civil preocupada com o colapso climático, entretanto, dependia muito menos de dinheiro que de disposição política do governo Lula: as demarcações de Terras Indígenas. Ainda durante o governo de transição, entidades como a Apib apontaram haver 14 processos cuja conclusão dependia apenas de uma assinatura do presidente da República. Por isso tamanha frustração quando Lula anunciou, no Acampamento Terra Livre de 2023, que estava homologando apenas seis delas. “A falta de mais demarcações foi uma grande decepção para a gente”, avalia Toya Manchineri, coordenador da Coiab.

Lula e Raoni Metuktire no Acampamento Terra Livre de 2023: presidente assinou oito demarcações, movimento esperava e quer mais. Fotos: Marcelo Camargo/Agência Brasil e Fernando Martinho/SUMAÚMA

Kleber Karipuna, da Apib, afirma que “houve um boicote por parte da Casa Civil”. Outras fontes ouvidas por SUMAÚMA, e que pediram para não ser identificadas por temer retaliações, também apontaram o dedo para a Casa Civil. A própria Sonia Guajajara reclamou a interlocutores das dificuldades em emplacar suas demandas junto ao ministro Rui Costa, que foi escolhido por Lula para comandar um dos órgãos mais estratégicos do governo após dois mandatos como governador da Bahia.

Rui Costa, um dos fundadores do PT em seu estado, governou a Bahia entre 2015 e 2022. O início de seu mandato ficou marcado por um episódio conhecido como chacina do Cabula: 12 jovens, todos negros, foram mortos pela Polícia Militar num bairro pobre de Salvador em fevereiro de 2015. Mesmo com indícios de execução deliberada das vítimas, no dia seguinte o então governador defendeu a ação policial com as seguintes palavras: “É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol”. Em 2024, a maioria dos nove policiais envolvidos nos assassinatos ainda aguarda em liberdade o início do julgamento – alguns deles, trabalhando como policiais. Em 2023, após oito anos de governos petistas, as polícias da Bahia se tornaram as ques mais matam no Brasil.

A chacina do Cabula foi lembrada com ironia por um dos entrevistados por SUMAÚMA quando questionado sobre a afinidade do hoje ministro da Casa Civil com pautas ligadas aos direitos humanos e de minorias. Coincidência ou não, a Terra Indígena Aldeia Velha, do povo Pataxó, localizada em Porto Seguro, na Bahia, estava na lista das 14 que só precisavam de uma assinatura para serem homologadas. A lista foi entregue a Lula logo no início deste seu terceiro mandato. Até hoje, o presidente ainda não homologou nenhuma terra situada no estado da Bahia. A reportagem enviou perguntas a Rui Costa. A assessoria dele informou que não haveria respostas.

Na nota a SUMAÚMA, o MPI preferiu evitar embates: “O Ministério dos Povos Indígenas compreende que as demarcações de Terras Indígenas são resultado de construção conjunta entre as [várias] pastas [envolvidas]. Todos os ministérios, a exemplo da Casa Civil e seu titular, ministro Rui Costa, estão empenhados em avançar no tema”.

Rui Costa (Casa Civil) fala depois de uma reunião de Lula com alguns ministros, em que Flávio Dino defendeu mineração em terras Indígenas. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

As reclamações dos Indígenas ouvidos nesta reportagem se estendem a um conterrâneo e colega de partido do ministro da Casa Civil: Jaques Wagner, seu antecessor no governo baiano e, desde 2023, líder de Lula no Senado. Para lideranças, Wagner pouco se empenhou em casos como a aprovação de uma lei que criou – contra decisão do Supremo Tribunal Federal – um “marco temporal” para a demarcação de territórios Indígenas. Segundo essa lei, só têm direito a suas terras ancestrais os povos originários que nelas permaneciam na data da promulgação da Constituição – 5 de outubro de 1988. A tese do marco temporal deliberadamente ignora que muitos tiveram que abandoná-las para não serem mortos ou delas foram expulsos.

SUMAÚMA acompanhou uma audiência pública, realizada na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado em agosto de 2023. O objetivo era discutir o então projeto de lei. Foram pouco menos de três horas para que lideranças Indígenas – entre elas, Kleber Karipuna e Joenia Wapichana – fossem ouvidas. Mas, mesmo antes disso, a relatora da matéria, a senadora Soraya Thronicke, uma empresária de Mato Grosso do Sul filiada ao Podemos que se elegeu na onda bolsonarista de 2018, já tinha convicção formada: a favor do marco temporal, por “garantir previsibilidade, segurança jurídica e desenvolvimento ao país”.

Último a falar na audiência, Wagner confraternizou-se com Thronicke. “Na democracia ninguém sai com 100% do que quer. Quero parabenizar a senadora Soraya e me penitenciar por poucas vezes ter trazido ideias, independente de eu concordar ou não [com o marco temporal].” O texto foi aprovado em seguida. A reportagem pediu um comentário ao senador. Não houve resposta. O líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT do Ceará), também não respondeu às perguntas enviadas por SUMAÚMA.

O deputado federal Nilto Tatto, do PT de São Paulo, um dos integrantes de seu partido mais identificados com a causa ambiental, discorda das críticas à falta de apoio do governo à pauta Indígena. “É de quem não tem clareza de qual é a conjuntura do Congresso Nacional hoje”, diz. “Se o governo consegue avançar em outras pautas, é porque nelas tem apoio do Centrão. E o Centrão é, 80%, parte da bancada ruralista. Em determinadas pautas de interesse imediato da bancada ruralista, o empenho do governo não funciona. É um problema com que temos que conviver, que enfrentar.” Ele se refere à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), nome oficial da bancada ruralista. Ela é integrada por deputados e senadores de partidos quase sempre do centro à extrema direita e tem na retaguarda um escritório financiado por indústrias como as de agrotóxicos, alimentos ultraprocessados e sementes transgênicas. Reúne em torno de 300 dos 513 deputados federais – vários deles latifundiários, caso do presidente da Casa, Arthur Lira, do Progressistas de Alagoas –, e quase 50 dos 81 senadores. Há alguns anos, a Frente Parlamentar Agropecuária colocou as demarcações de Terras Indígenas como um de seus principais alvos.

SUMAÚMA pediu à Frente Parlamentar da Agropecuária e a seu líder na Câmara, o deputado federal Pedro Lupion, do Progressistas do Paraná, um comentário sobre o Ministério dos Povos Indígenas. Em nota, a assessoria da frente diz que “a questão do marco temporal é pauta prioritária da FPA no contexto de direito de propriedade, o que não está sob a administração do referido ministério”. Em seguida, a nota se contradiz: “Não temos comentários sobre a pasta, visto que não somos contrários aos direitos Indígenas e às políticas públicas de Estado”. Viver em seus territórios ancestrais, que em sua cosmologia são mais que apenas um lugar, é o direito mais fundamental reivindicado pelos povos originários.

No Congresso, as relações de Sonia Guajajara são bem mais difíceis do que no governo. Isso ficou claro na primeira ida dela à Câmara, em abril de 2023, para prestar contas de seus primeiros 100 dias de gestão. Na ocasião, a ministra foi alvo de ataques e mentiras até de uma deputada Indígena, Silvia Waiãpi (PL do Amapá). Militar e apoiadora de Jair Bolsonaro, Silvia procurou ligar os Guajajara, povo de Sonia, ao tráfico de maconha. Outro deputado bolsonarista preferiu acusar os Indígenas de assassinarem os próprios filhos. Era um prenúncio do que viria adiante. Em 6 de março deste ano, às vésperas do Dia Internacional da Mulher, ela foi alvo de um pedido de impeachment protocolado por 15 senadores – todos eles, bolsonaristas; vários, ruralistas. O argumento dos políticos de extrema direita é o atraso do MPI em responder a pedidos de informações – o que pode ser explicado pela estrutura ainda precária do ministério. Encaminhado ao procurador-geral da República, Paulo Gonet, o pedido tem pouca probabilidade de prosperar, mas serviu ao propósito de criar desgaste à ministra.

As lideranças do governo na Câmara e no Senado não conseguiram evitar – ou pouco se esforçaram para isso – que no final do primeiro semestre de 2023 parlamentares ruralistas e da oposição retirassem do MPI e devolvessem ao Ministério da Justiça a atribuição de emitir as portarias declaratórias de novas Terras Indígenas, o penúltimo passo para as demarcações. Como revelou SUMAÚMA, a concessão aos ruralistas foi comunicada previamente por Rui Costa a Sonia Guajajara: por telefone e sem margem para discussão. A derrota de Indígenas, ambientalistas e da parcela da sociedade civil preocupada em enfrentar o colapso climático foi contornada no governo com a promessa de que Flávio Dino, então na Justiça, daria andamento aos processos. Não deu: 23 Terras Indígenas têm suas demarcações paradas à espera de uma assinatura, segundo levantamento de outubro passado.

A omissão de Dino – que é maranhense, como Sonia – nas pautas de interesse dos Indígenas é uma das grandes decepções de lideranças e seus aliados. Ao menos por ora, não se vislumbra mudança de cenário com a chegada de Ricardo Lewandowski ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Em 21 de fevereiro passado, dias após a posse dele no cargo, um grupo liderado por Sonia Guajajara, Eloy Terena e a presidenta em exercício da Funai, Lucia Alberta Andrade de Oliveira, foi ao gabinete do novo ministro para uma conversa de apresentação. Saíram surpresos com a “sisudez” e a pressa dele em encerrar a conversa, segundo interlocutores de Sonia.

A reportagem encaminhou perguntas às assessorias de Flávio Dino e Ricardo Lewandowski. A de Dino avisou que não haveria respostas. A de Lewandowski informou que apenas “com a edição de decreto em 30 de outubro de 2023 é que se criou a Coordenação de Demarcação de Terras Indígenas no âmbito da Secretaria de Acesso à Justiça” do Ministério da Justiça e Segurança Pública. “Desde então, o trabalho técnico de análise e encaminhamento dos procedimentos para a tomada de decisões vem sendo realizado”, prossegue a resposta, que não estimou prazo para a assinatura das portarias declaratórias. A própria nota informa que a Lei 14.600/2023, que ratificou a estrutura do terceiro governo de Lula e devolveu a emissão das portarias ao ministério, foi sancionada em 19 de junho daquele ano. Em resumo: o governo levou 133 dias – mais de quatro meses – para criar a Coordenação de Demarcação de Terras Indígenas.

“Como houve uma completa paralisação na demarcação de Terras Indígenas nos seis anos anteriores ao terceiro mandato do presidente Lula, todos os processos têm que passar por uma reanálise, e as informações neles contidas têm de ser verificadas e atualizadas, o que não é um procedimento simples”, justifica-se o MPI. “Há, no entanto, um esforço conjunto e diálogo constante entre as equipes de MPI, Funai e Ministério da Justiça para que todas as etapas do processo demarcatório sejam cumpridas de forma célere e atendendo a todos os critérios técnicos necessários.” Além disso, o MPI alega que, mesmo com o gargalo nos ministérios da Casa Civil e da Justiça, a Funai segue trabalhando nas demarcações. “Em 2023, três novos Relatórios de Identificação e Delimitação foram aprovados pelo órgão (TIs Sawré Ba’pim, Sete Salões e Kapot Nhinore) e mais de 30 novos Grupos de Trabalho foram criados ou reconstituídos para a identificação de Terras Indígenas”, afirma em nota enviada a SUMAÚMA.

Sem convite a Lula

As lideranças do movimento Indígena ouvidas por SUMAÚMA para esta reportagem demonstram compreender as dificuldades que o governo Lula enfrenta diante de um Congresso Nacional que saiu das urnas com uma feição muito próxima à de Jair Bolsonaro. O partido dele, o PL, é dono da maior bancada na Câmara, com 95 dos 513 deputados federais. No Senado, o PSD, que participa do governo Lula e ao mesmo tempo do governo do bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo, tem 15 das 81 cadeiras; o PL vem a seguir, com 12.

Kleber Karipuna, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, faz uma análise realista do contexto: “É um governo de composição, que tem a todo momento que negociar pautas, e com uma bancada ruralista [a maior e mais organizada do Congresso Nacional] que elegeu combater a pauta Indígena como algo inegociável. Não é uma conjuntura política favorável para nós”.

Kleber Karipuna, da Articulação de Povos Indígenas do Brasil: lideranças querem ser recebidas no Palácio do Planalto no Acampamento Terra Livre deste ano. Foto: Felipe Beltrame

Para Timoteo Verá Popyguá, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupa na Terra Indígena Takuari, a expectativa é que neste ano a situação seja mais favorável. “Esperamos que em 2024 as coisas comecem a andar. Não dá para fazer qualquer avaliação definitiva antes de 36 meses de trabalho, pelo menos.” Sua terra fica em Eldorado, município do Vale do Ribeira, em São Paulo – por coincidência, a cidade em que Jair Bolsonaro passou a infância e a adolescência.

Há – por enquanto – um consenso entre as organizações Indígenas de que é necessário dar apoio a Sonia Guajajara, Joenia Wapichana e Weibe Tapeba, que chefia a Secretaria de Saúde Indígena no Ministério da Saúde. “Precisamos fortalecer o espaço que nossos parentes estão ocupando [no governo]. Não foram uma doação do governo, mas uma conquista nossa”, diz Paulo Tupiniquim, coordenador da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, a Apoinme.

Mesmo assim, o MPI foi alvo de críticas após vir à tona o fracasso do governo Lula em barrar o genocídio Yanomami. Críticas que partiram, inclusive, de Indígenas, caso do escritor e ativista Daniel Munduruku, que numa rede social o descreveu como um ministério “cirandeiro” que apenas reproduz a “política do pão e circo”. Ator, escritor, acadêmico e influenciador, ele tem 65 livros publicados, é presença constante nos festivais de literatura do Brasil e tem quase 250 mil seguidores no Instagram. A crítica afiada desferida por ele à ex-adversária nas urnas viralizou, sendo repetida por Indígenas e não Indígenas em diferentes ocasiões. Filiado ao PDT e apoiador de Ciro Gomes, Daniel tentou ser deputado federal por São Paulo, mas conquistou apenas 9.492 votos. Concorreu com Sonia Guajajara, que se elegeu no estado com quase 157 mil votos.

A SUMAÚMA, Daniel recuou alguns passos na avaliação. “Fiz aquele [post no] twitter muito levado pelo sentimento de perceber que ainda havia ali uma reticência que precisava ser preenchida”, diz. “E, de fato, me parecia que, seguindo essa toada, corria-se o risco de ser apenas um ministério cirandeiro. Em 2024, já há um empenho maior, e minha avaliação muda. Não tenho nenhum receio de fazer essa mudança de olhar ao ver que o ministério começa a tomar algumas atitudes mais pró-ativas para resolver problemas.” Ainda assim, ele também enxerga o isolamento político de Sonia Guajajara e Joenia Wapichana no governo Lula. “Fora o apoio de alguns ministérios como o da Saúde, grosso modo elas estão sozinhas”, afirma.

Na prática, a pasta, sem orçamento próprio em seu primeiro ano de existência, pouco poderia fazer além de demandar outros ministérios. São fartos os relatos ouvidos por SUMAÚMA de dificuldades de quem está em campo de usar, por exemplo, estruturas sob a responsabilidade do Ministério da Defesa – como o 4o Pelotão Especial de Fronteira do Exército, em Surucucu, no estado de Roraima, para atuar no território Yanomami. Quem conhece a região costuma repetir que, sem apoio das Forças Armadas, donas de equipamentos como helicópteros de longo alcance e alta capacidade de carga, fica difícil atuar. A situação chegou a tal ponto que o MPI resolveu contratar, em 2024, uma empresa de táxi-aéreo para tentar resolver as falhas nas entregas de cestas básicas de alimentos aos Indígenas.

Um dia após ser publicada a informação de que houve mais mortes na Terra Yanomami em 2023, primeiro ano de Lula, que em 2022, o último de Bolsonaro, o governo convocou uma entrevista coletiva no Palácio do Planalto para anunciar ações emergenciais – como a construção de um hospital Indígena em Boa Vista, capital de Roraima. Porém, eram poucos os jornalistas e, além de Sonia, só havia um ministro – Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação Social. Os demais estavam no outro extremo da Praça dos Três Poderes, onde Flávio Dino era empossado ministro do Supremo Tribunal Federal – assim como a maioria dos repórteres que cobrem Brasília.

No início de 2024, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil realizou uma reunião de lideranças para preparar seu principal evento anual. O local escolhido não poderia ser mais simbólico: a Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça, litoral de Santa Catarina. Lar de Indígenas Guarani localizado à beira-mar e alvo da cobiça do mercado imobiliário, Morro dos Cavalos é um dos seis territórios prontos para demarcação desde pelo menos o início de 2023 aos quais ainda falta a assinatura de Lula. Diante da demora, tomou-se uma decisão: o presidente não deve ser convidado para o Acampamento Terra Livre, o ATL, deste ano.

O ATL de 2024 é simbólico: marca os 20 anos do evento nascido de um protesto que durou dias defronte ao Ministério da Justiça – culminando na ocupação do Congresso Nacional, em 2004. Mas, em vez de receber Lula com festa, como fizeram em 2023, desta vez as lideranças Indígenas querem que o presidente as convide ao Palácio do Planalto. Pretendem enviar a ele um documento, em fase de elaboração, reafirmando as demandas dos povos originários. A expectativa é que, na sede do Poder Executivo, Lula seja capaz de entregar mais do que fez no ATL passado. Se as demarcações continuarem saindo a conta-gotas, as lideranças preferem que o palco de seu principal evento não seja usado como um palanque para Lula.

Não se trata, porém, de um rompimento, ou mesmo de um afastamento. Os Indígenas continuam vendo em Lula o líder político capaz de, na Presidência, ser sensível a seus problemas – ainda mais após um governo declaradamente inimigo como o de Bolsonaro. “O presidente Lula vai ser sempre bem recebido. Para nós, ele representa esperança”, diz Kleber Karipuna.

O movimento Indígena, porém, está longe de ser homogêneo. Tem crescido o número de lideranças que fazem a leitura de que o petista não consegue compreender a dimensão e a complexidade da questão Indígena – assim como a sua urgência. Isso ficou explícito quando Lula disse, no ATL de 2023, que demarcaria em seu terceiro mandato “todas” as Terras Indígenas ainda pendentes no Brasil – e em seguida não assinou nem a metade das que poderia. Por exigência da Constituição de 1988, a demarcação de todas as Terras Indígenas deveria ter sido concluída em 1993. Mas havia, no ano passado, 237 processos à espera da conclusão, a maioria (124) dos quais ainda na fase inicial. São processos que costumam se arrastar por anos pela burocracia brasiliense: Morro dos Cavalos, por exemplo, aguarda a assinatura presidencial desde 2008.

Indígena levanta cartaz exigindo a demarcação dos territórios tradicionalmente ocupados pelos povos originários. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Em resposta a perguntas enviadas por SUMAÚMA, a Secretaria de Comunicação Social do governo Lula disse, em nota, que “reafirma o compromisso de demarcar o maior número de Terras Indígenas até o fim desta gestão, e garante que todas as pastas envolvidas no procedimento demarcatório estão orientadas a trabalharem em prol dessa meta”. Acrescenta que “a desintrusão da Terra Indígena Apyterewa seguiu o curso e foi concluída, com a posse da terra entregue aos Indígenas recentemente”. É um fato. Mas a desintrusão era uma obrigação descumprida desde 2007, quando a Terra Indígena Apyterewa foi homologada – no segundo mandato, portanto, de Lula. Era também uma condicionante, jamais cumprida, para a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, obra inaugurada por Dilma Rousseff (PT) em 2016 – e depois reinaugurada por Jair Bolsonaro (PL), em 2019. A retirada dos invasores só acabou saindo porque a Apyterewa foi incluída em uma ação judicial chamada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 709, apresentada ao Supremo Tribunal Federal diante da omissão do governo Jair Bolsonaro em proteger a saúde de povos Indígenas durante a pandemia de Covid-19. O Supremo e lideranças Indígenas, inclusive, cobram a implementação de um plano que garanta que os invasores não retornem. Atualmente, ele está em elaboração no MPI.

“O presidente Lula e toda sua equipe ministerial não têm medido esforços para a retomada da política indigenista”, relata o MPI na nota a SUMAÚMA. “Mas temos que ter em mente que nenhuma política é feita apenas no Executivo federal. Algumas ações demandam negociações políticas que vão além de nossas competências.” Sobre o caso de Apyterewa, a pasta de Sonia Guajajara afirma que “o governo compreende profundamente a complexidade e sensibilidade das desintrusões, que exigem cautela, respeito aos direitos humanos e proteção das comunidades envolvidas, ações coordenadas de forma a considerar as particularidades de cada situação, buscando sempre o equilíbrio entre a justiça social e o respeito à lei”.

Quanto à reivindicação do movimento Indígena de um evento no Palácio do Planalto com Lula, o MPI informa que ele “está em fase final de agendamento, para que ocorra nos dias compreendidos ao Acampamento Terra Livre [de 22 a 26 de abril]”. Diz a nota que “o presidente já manifestou abertura e disposição para recepcionar e ouvir as lideranças, reafirmando seu compromisso histórico e contínuo com a pauta Indígena”.

‘Letramento de diversidade política’

Mesmo com todos os problemas, a avaliação – até o presente unânime entre as fontes ouvidas por SUMAÚMA – é a de que o Ministério dos Povos Indígenas representa uma conquista a ser celebrada. “Ainda que achássemos que seria mais fácil destravar as demarcações, a gente sente muito orgulho pelo ministério, por ter a Sonia lá como ministra, uma mulher Indígena”, diz Lilian Eloy, Indígena de ascendência Terena e Tupi-Guarani que é uma das coordenadoras da Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste, a Arpinsudeste. “É uma conquista política do movimento Indígena”, concorda Kleber Karipuna. “O MPI é estratégico para abrir portas [para as reivindicações dos povos originários], seja no Poder Executivo, em outros poderes, até no exterior. Tem um peso político estar com uma ministra de Estado.”

Para Adriana Ramos, do ISA, trata-se de um marco histórico. “O Ministério dos Povos Indígenas talvez não faça tanta diferença agora, mas fará a médio e longo prazos. É um processo de letramento da sociedade ter essa perspectiva da diversidade no debate político”, avalia a ambientalista. “Acabamos vendo o preconceito [contra os Indígenas] que está presente em toda a sociedade, na forma de críticas a um ministério que mal completou um ano. Óbvio que a gente não pode fazer uma avaliação de performance como as que usam ministérios estruturados há anos, que manejam grandes orçamentos, como Saúde ou Educação.”

O deputado federal Nilto Tatto, que atualmente coordena a Frente Parlamentar Ambientalista da Câmara, diz ser “muito positiva” a avaliação do primeiro ano do MPI. “Trata-se de uma novidade histórica na República, é um ministério que ainda precisa ser estruturado, e que sucedeu a um desmonte na implementação da política indigenista. Mesmo assim, manteve no centro do governo a mobilização e a preocupação com a questão Indígena.”

Ao longo das últimas semanas, SUMAÚMA pediu, diversas vezes, entrevistas com as deputadas federais Indígenas Célia Xakriabá, do PSOL de Minas Gerais, Silvia Waiãpi, do PL do Amapá, e Juliana Cardoso, do PT de São Paulo. Nenhuma delas aceitou falar para esta reportagem.

SUMAÚMA fez um levantamento na agenda oficial do presidente, disponível na internet. Em 15 meses, Sonia teve apenas três audiências privadas com Lula para tratar de assuntos de seu ministério, além de outras duas com outros ministros para tratar de temas como o genocídio Yanomami. Também foi chamada ao Palácio da Alvorada, em outubro passado, para tratar dos vetos ao projeto de lei do marco temporal – que acabaram derrubados pelo Congresso Nacional. Para efeito de comparação, o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, teve dez desses encontros com Lula, e outros dez acompanhado de ministros ou gestores de áreas afeitas à sua. Fávaro, que também é senador eleito pelo PSD de Mato Grosso, licenciou-se do cargo de ministro por alguns dias, em 2023, justamente para votar pela derrubada dos vetos presidenciais ao marco temporal. Depois, voltou a comandar a pasta normalmente.

Em nota, o MPI busca negar qualquer mal-estar com Lula: “É inegável a importância das audiências formais entre ministros e o presidente da República, como parte do processo institucional de diálogo e articulação política. Todavia, é de suma importância enfatizar que em todas as reuniões ministeriais é garantido um espaço pleno de fala para cada ministro, momento em que Sonia pode articular diversas demandas. Além do mais, a ministra mantém uma comunicação constante e direta com o presidente por outros meios de comunicação, sempre que necessário e possível”.

Uma das reuniões com a presença de vários ministros a que a nota faz menção foi realizada em 9 de janeiro de 2024. Nela, Sonia ouviu Flávio Dino dizer que apoiava a mineração em Terras Indígenas. À época, Dino já estava de saída do Ministério da Justiça e Segurança Pública (foi exonerado em 1o de fevereiro) rumo ao Supremo Tribunal Federal. A mineração em Terras Indígenas jamais foi regulamentada pelo Congresso Nacional, apesar de estar prevista na Constituição. Por isso mesmo, na prática, é proibida, e vista pelos povos originários como uma das maiores ameaças à conservação de seus territórios. Segundo três fontes ouvidas por SUMAÚMA, Sonia saiu da reunião abalada.

Em 18 de março, uma segunda-feira, Lula convocou sua equipe para a primeira reunião ministerial do ano. O encontro teve farta divulgação na mídia pelo tom de cobrança do presidente, irritado com a queda da avaliação positiva do governo detectada por pesquisas de opinião de diferentes institutos. Em dado momento, segundo a Folha de S.Paulo, Lula serviu-se de Sonia Guajajara para dizer que ela é ministra do governo inteiro, e não apenas da sua pasta.

Falta a Lula decidir se o governo é, também, todo ele preocupado com a situação de absoluta indignidade e vulnerabilidade dos povos Indígenas no Brasil.


Reportagem e texto: Rafael Moro Martins
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

Lula e Sonia Guajajara: presidente quer ministros empenhados no governo como um todo, mas até agora abriu pouco espaço à agenda Indígena. Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

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