Jornalismo do centro do mundo

Indígenas percorrem o Igarapé Novo Recreio, área que fica no Parque Nacional da Serra do Divisor e é reivindicada pelos Nawa. Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real

Tarisson Nawa tinha apenas 3 anos quando seu povo começou a se organizar, em 1999, para pedir o reconhecimento do território onde viveram seus antepassados. Ele cresceu, fez faculdade, mestrado, cursa um doutorado e, até agora, quase 25 anos depois, não viu a área ser demarcada. Cercada pelas águas escuras do Igarapé Novo Recreio, que deságuam no rio Moa, sua terra-casa fica na fronteira do Brasil com o Peru, no estado que os não Indígenas conhecem como Acre.

Perseguidos e expulsos durante séculos, os Nawa acabaram encurralados pelo próprio Estado brasileiro: a área onde parte de seus ancestrais vivia foi transformada em 1989 no Parque Nacional da Serra do Divisor, uma unidade de conservação de uso restrito que não permite, em sua concepção, a morada de pessoas humanas. Nem mesmo aquelas que viveram ali por gerações, em harmonia com a floresta. Espalhados por diversas partes do Acre, mas com famílias ainda vivendo dentro da área convertida em parque, constantemente pressionadas a sair, eles passaram a se organizar para pedir a demarcação. E se viram presos numa disputa jurídica que se estende há décadas.

Em 2023, Tarisson, agora antropólogo, foi convidado pela equipe da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para retomar as discussões sobre o futuro do território, depois de anos de inação. Animado, fez parte de um grupo de trabalho montado pelo órgão indigenista como colaborador assistente; viajou até a terra de seus antepassados e ajudou a realizar novos estudos sobre seu povo. Mas, novamente, seus parentes se frustraram: o processo foi paralisado mais uma vez. A Funai não cumpriu a promessa de divulgar, em setembro de 2023, um relatório antropológico atualizado sobre o processo de demarcação. Sem a conclusão do documento, o processo não anda. Questionada pela reportagem de SUMAÚMA, a Funai não respondeu às perguntas e não apresentou nenhuma justificativa para mais um atraso na demarcação.

Tarisson reconhece que o caso dos Nawa é extremamente complexo, sobretudo porque os Indígenas se espalharam por diferentes regiões da Amazônia ao longo da história e foram vítimas de um processo de apagamento. Essa reflexão, diz ele, é crucial para entender os meandros da demarcação inconclusa. “Precisamos entender os Nawa como um povo que se transformou. No passado, éramos Kapanawa e habitávamos a região onde hoje é [o município de] Cruzeiro do Sul, o chamado Estirão dos Nawa”, explica.

Já no século 19, Mariana [Mariruni], apontada em registros históricos como a última sobrevivente dos Kapanawa, migrou do Estirão dos Nawa para a região onde hoje fica o Parque Nacional da Serra do Divisor. Tarisson começou, em 2017, a pesquisar a história de Mariruni, cujo nome significa “cutia do mato” na língua Pano, a família linguística dos Nawa. Mariana era seu nome cristão. Ela era sua tataravó, a ancestral de seu povo. “Fui criado sem saber que eu era Nawa”, conta ele, que também tem ascendência nordestina e não Indígena do outro lado da família.

O antropólogo explica a mudança da designação Kapanawa para Nawa, ao longo do tempo, que ocorreu com Mariruni: “Meu povo, na época, era Kapanawa. E a gente chamava tudo o que não era Kapanawa de Nawa, que tem um sentido de ‘outro’ [alteridade]. O branco, para nós, era Nawa”. Na convivência e no contato com os Indígenas, porém, os brancos também passaram a chamá-los de Nawa. Foi assim pelo simples fato de que os ouviam dizer constantemente essa palavra.

Mariruni (à esq.), a última Indígena Kapanawa, é tataravó de Tarisson (à dir.). Fotos: Alma Acreana/Arquivo pessoal

Entre as histórias que Tarisson e seus parentes ouviram dos anciões ao longo do tempo, narrativas que atravessaram quatro gerações, os Nawa contam que Mariruni conseguiu escapar das perseguições dos seringalistas europeus e de sucessivas violências de colonizadores. Mas, quando descia o Rio Juruá, em uma de suas fugas, acabou aprisionada a mando de “Sinhá Geton”, uma aristocrata do ciclo da borracha, cujo passado os Indígenas não têm informações.

A memória, resgatada pela história oral, traz duas versões, sem precisão de datas: na que prevalece, Mariruni estava sozinha quando foi presa. Na segunda, era acompanhada por um irmão. Subjugada pelos brancos e prisioneira nos seringais, Mariruni se casou com José Peba, que trabalhava para Sinhá Geton. Depois do casamento, eles foram viver na área que virou parque. Contam os Indígenas que Mariruni e Peba tiveram oito filhos. A mulher sobrevivente que deu origem aos Nawa foi sepultada ali no território que hoje é parque, e é por isso que os parentes de Tarisson consideram aquela uma área sagrada e ancestral.

“A habitação [dos Nawa dentro do parque] é considerada pelo meu povo território tradicional, fruto das migrações [fugas] da vó Mariana. Foi de lá que surgiram os Nawa de hoje”, explica o antropólogo, que dedicou sua tese de mestrado em antropologia social – “Os Nawa nunca foram extintos” – à tataravó. Anos antes, na graduação em jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco, Tarisson já havia iniciado o mergulho em busca de sua ancestralidade e identidade como Indígena. O trabalho de conclusão de curso foi o documentário “Memórias Nawa: das malocas ao contexto urbano”.

Esse território onde viveu Mariruni, hoje Parque Nacional da Serra do Divisor, é reivindicado pelos Nawa no processo de demarcação em curso. Parte dos Nawa ainda vive dentro do parque, mas muitos de seus descendentes – que foram se casando com não Indígenas – seguem espalhados em diversos outros municípios do Acre. Essa migração dos Nawa pelo território acriano também foi resultado de inúmeras fugas para escapar de violentos patrões da borracha, que lhes impunham um novo modelo de escravidão, assim como de projetos agropecuários que avançaram sobre a Amazônia.

Há registros históricos da presença dos Nawa na região do Alto Juruá desde o século 19. Mas sabe-se, obviamente, que o território já era ocupado por Indígenas no período anterior à chegada dos portugueses, em 1500. A invasão de colonizadores europeus na região passou por diversas fases, sendo o século 19, de exploração da borracha, um dos mais sangrentos. Foi nessa época, de extrema violência, que Mariruni resistiu com braveza.

Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

A constante violação de direitos ao longo de séculos foi empurrando os Nawa para outras áreas. O Estado chegou a considerá-los extintos. Relatórios antropológicos da Funai das décadas de 1970 e 1980 apontavam a existência de Indígenas no Alto Juruá e no Igarapé Novo Recreio – o território de Mariruni. Diziam, porém, tratar-se dos Nukini, que teriam seu território demarcado em 1991. Para os brancos, os Nawa haviam desaparecido; para si mesmos, nunca. Durante todos esses séculos, eles ainda habitavam o território, mas silenciaram, temerosos de revelar-se.

Por décadas, os Nawa tiveram medo de assumir a própria identidade e falar de sua origem no Brasil. “Eu nasci quando o meu povo ainda não tinha coragem de dizer o que era. A gente vivia silenciado”, recorda Tarisson. Sua mãe detestava dizer que era Indígena diante do terror das perseguições e do extermínio do passado, relembra ele.

Os descendentes de Mariruni, a ‘cutia do mato’

A árvore genealógica dos Nawa foi se expandindo a partir do casamento de Mariruni, mas eles continuaram a ser perseguidos, dizimados e submetidos a trabalhos compulsórios e extenuantes nos seringais e culturas extrativas. E as migrações continuaram. O avô de Tarisson, Francisco Ferreira da Costa (Chico Peba), nasceu no território transformado em parque. Era filho de Chaga Peba, um dos descendentes diretos de Mariruni. No início da década de 1980, Chico Peba foi ameaçado por um seringalista e seus capangas, com facões e espingardas, e obrigado a fugir também daquele território. Tarisson conta que seu avô nunca mais quis retornar.

“Meu avô tinha oito filhos e tanto medo de morrer que resolveu ir embora. Ele saiu de lá do território que hoje está sendo reivindicado, no parque, e foi para o entorno rural da cidade de Mâncio Lima. Comprou uma terra, um terreno grande, onde até hoje mora a minha família.” Os parentes de Tarisson preservaram os hábitos dos Nawa; viviam às margens de um igarapé, da caça e da pesca. A forma de vida era a mesma, mas o território, outro.

Os familiares do antropólogo Indígena se instalaram na área batizada de Estirão do São Domingo. “É um bairro rural. Chamamos de estirão porque é uma linha reta mesmo. É lá onde está o meu núcleo familiar. Mas hoje temos famílias de Nawa dentro da aldeia [no parque], em Cruzeiro do Sul [o território ancestral, antigo Estirão dos Nawa], em muitos lugares, e também ali, no Estirão de São Domingo.”

O mesmo histórico de fugas aconteceu com a família do cacique Railson Nawa, que há mais de uma década luta, em nome de seus parentes, pelo reconhecimento do território que fica dentro do parque nacional. “Minhas avós fugiram para as cabeceiras do Rio Azul, pegando o [igarapé] Novo Recreio, e permaneceram naquela região”, recorda o cacique.

A espera do cacique Railson Nawa pela demarcação: ‘Somos os filhos e netos dos que resistiram; lutamos pela terra de nossos ancestrais’. Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real

“Meus parentes, especificamente minha família, não quiseram voltar para o território [dentro do parque]. Eu lembro também que seu Mário, cacique da Terra Indígena Puyanawa, que é de outro povo, no entorno lá de casa, uma vez foi atrás do meu avô e disse: ‘Olha, vocês são Nawa, são do outro povo, mas vocês são Indígenas também; se vocês quiserem podem entrar para o nosso território’. Meu avô também não quis”, conta Tarisson.

Aos 27 anos, antropólogo, jornalista doutorando em comunicação pela Universidade de Brasília e mestre em antropologia social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Tarisson diz que aceitou o convite da Funai para colaborar com a retomada da demarcação do território Nawa por reconhecer o significado de sua ancestralidade: “Entendo que o território é a nossa principal luta”. Durante 15 dias, ele visitou as aldeias de seus parentes para recolher depoimentos e dados para embasar o chamado Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação.

Mas, seis meses depois da data prevista pela Funai, o documento, crucial para que a demarcação prossiga, ainda não foi publicado. “Se esse relatório não for entregue, há uma possibilidade de as lideranças começarem a cobrar pelas vias judiciais: acionar o Ministério Público Federal e acionar também a própria Defensoria Pública da União para que o processo caminhe. Nosso território está com o processo paralisado há décadas. Isso é violento demais”, desabafa Tarisson, que atualmente trabalha em Brasília, na Defensoria Pública da União.

Segundo o povo Nawa, existem hoje 5 aldeias dentro do parque: Novo Recreio, Sete de Setembro, Jezumira, Boca Tapada e Inû Awá. No ano de 1998, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e ONGs ambientais fizeram um censo para levantar a população de dentro do parque, constatou-se que 522 famílias viviam na área – um espaço em que se misturavam Indígenas, seringueiros, invasores, pequenos agricultores, madeireiros e até ambientalistas, o que dá a dimensão da amplitude dos conflitos sociais e fundiários.

Vista aérea de onde os Nawa vivem, dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor: o Igarapé Novo Recreio deu nome à aldeia. Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real

No meio do caminho tinha um parque

O processo de delimitação da Terra Indígena Nawa foi retomado no ano passado após ter avançado muito lentamente nas duas últimas décadas.

A criação do parque, com uma área de 8,4 mil quilômetros quadrados, reconhecida como um dos lugares com a maior biodiversidade da Amazônia, fez o povo Indígena entender que, se as pessoas não lutassem para permanecer ali, seriam engolidas pelo que chamam de “ambientalismo sem gente”: para os Nawa, esse tipo de ambientalismo só vê a floresta, mas não enxerga os povos que a habitam. Os Indígenas nunca foram consultados sobre a criação da unidade de conservação.

Foi numa viagem do Conselho Indigenista Missionário, também conhecido como Cimi, ao Rio Moa, em 1999, dez anos depois da criação do parque, que uma mulher Indígena quebrou o silêncio. Dona Chica do Celso – sobrinha do bisavô de Tarisson, herdeira do legado de Mariruni – se assumiu Nawa. O grito Nawa e a reivindicação de seu território coincidiram com o período em que os órgãos ambientais brasileiros finalizavam um plano de manejo do parque, em 1998, que incluía a ideia de remoção dos moradores da unidade de conservação e realocação para um projeto de assentamento.

O governo federal havia iniciado um cadastramento de Indígenas e não Indígenas que deveriam ser removidos. Ao perceberem a tentativa do Estado de retirá-los do seu território ancestral, os Nawa buscaram a ajuda da Funai. O fato está registrado na tese de Tarisson: “Dona Chica do Celso – sobrinha do meu bisavô – passa a retomar a nossa identidade ancestral e interromper 100 anos de anonimato do meu povo”. Em 2002, um laudo antropológico da Funai reconhece os Nawa como um caso de “etnogênese”, uma população que havia sido massacrada no passado, assumindo outras identidades, e que, agora, voltava a se assumir como Indígena. Eles deixam, então, de ser considerados extintos e passam a ser reconhecidos como uma etnia.

Dona Chica do Celso, sobrinha do bisavô de Tarisson, morreu em 2002 sem ver a Terra Nawa reconhecida: ela contou ao antropólogo as histórias de Mariruni. Foto Liliane Cruz /Arquivo pessoal

Começa, a partir daí, um novo jogo de empurra, em que o Ibama levantava dúvidas sobre a autoidentificação dos Nawa e resistia em abrir mão de parte da área do parque, que atravessou não só o território, mas a vida dos Nawa de forma definitiva. De acordo com a Constituição brasileira e com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cabe aos próprios povos Indígenas a autodeclaração, ou seja, que eles definam se são Indígenas, de qual grupo e de qual comunidade. Desde que passaram a reivindicar a identidade Nawa, o reconhecimento da Terra Indígena tem sido impedido por causa de longas brigas burocráticas, administrativas e jurídicas, com alegações de sobreposição de áreas, interesses fundiários conflitantes, um emaranhado de contestações judiciais e, sobretudo, visões discordantes entre os próprios órgãos do governo federal acerca de como o território deve ser preservado.

Os Nawa nunca aceitaram a proposta dos órgãos governamentais para ser removidos do parque e se deslocar para um assentamento. Os Indígenas optaram por permanecer no parque, resistir e lutar pela demarcação. Em relação aos não Indígenas invasores que também vivem no local, eles aguardam, segundo Tarisson, os desdobramentos do processo de demarcação. Só depois de demarcada a Terra Indígena é que são feitos os cálculos de benfeitorias para a indenização e remoção. Segundo o antropólogo, existe uma espécie de acordo tácito entre os invasores e as lideranças Indígenas atualmente para que não se expandam as áreas de pastos no parque. Mas é um barril de pólvora e pode haver conflitos iminentes enquanto a demarcação se arrasta, diz ele.

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão das unidades federais de conservação, informou a SUMAÚMA que, desde 1989, quando foi criado o Parque Nacional da Serra do Divisor, “o reassentamento de famílias interessadas foi realizado de maneira opcional”. Alguns moradores aceitaram a proposta de deixar o parque, segundo o ICMBio, mas outros permaneceram ou retornaram anos depois, “sem registros de reassentamento dos Indígenas Nawa”. “Atualmente, o Instituto está elaborando o Termo de Compromisso para assegurar os direitos territoriais dos Nawa”, explica o órgão. Esse termo não envolve reassentamento de Indígenas em outra área que não o parque. Ao contrário: tem o objetivo de reconhecer os direitos dos Nawa enquanto eles aguardam a demarcação pela Funai.

Nem a Funai nem o Ibama responderam aos questionamentos da reportagem sobre o número atual de moradores no parque nem sobre a retirada de pessoas feita ao longo de quase duas décadas. Os primeiros estudos referentes à identificação e delimitação da Terra Indígena Nawa foram oficialmente iniciados em 2003, segundo a Funai. No entanto, somente em abril de 2023, vinte anos depois, foi criado um grupo de trabalho, do qual Tarisson fez parte, para finalmente retomar o processo de reconhecimento da terra dos Nawa. Durante todo esse período, nenhum Indígena foi removido ou indenizado, segundo os próprios Nawa. Mas eles convivem, mais uma vez, com a sombra do apagamento.

A retomada da demarcação faz parte da reconstrução da Funai, que pela primeira vez é presidida por uma mulher Indígena, Joenia Wapichana. O descaso com a vida dos Nawa atravessou vários governos, inclusive as gestões petistas anteriores. E, no governo do extremista de direita Jair Bolsonaro (2019-2022), em que a Funai foi desmantelada, todos os processos de demarcação foram suspensos. Desesperados e sem mais nenhuma esperança, os Nawa iniciaram em 2021, no terceiro ano do governo Bolsonaro, um processo de autodemarcação.

Desde 2021 os Indígenas começaram a autodemarcação: ‘As linhas que o Estado demarca não representam nossa ideia de território’, diz o antropólogo Nawa. Fotos: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real e Tarisson Nawa

“Quando retornei para o território e vi 23 anos de luta [perdidos] e atraso no processo de demarcação, senti uma tristeza”, relata Tarisson. Os anciões Nawa morreram sem ver sua terra demarcada, e os mais novos não têm vínculo com essa história, pois boa parte deles, como Tarisson, cresceu sem nem sequer conhecer o território e a identidade escondida de seu povo. “A nossa principal anciã, Dona Chica do Celso, que disse ‘nós somos Nawa’ e começou a articular a luta coletiva, faleceu em 2022. Isso é muito triste, porque ela não viu o território demarcado. É desesperador ver o cansaço das minhas lideranças. É desanimador, porque a gente vê as lideranças envelhecendo. Mas eu, principalmente, o espírito jovem, acredito muito que ainda é possível.”

O cacique Railson repassa na memória os percalços e os tempos de “inimizade” com o Estado até os dias atuais, de parceria: “A gente queria Terra Indígena e parque nacional tudo no mesmo instante; tudo é área de proteção ambiental. Tanto faz ser Terra Indígena ou ser parque. Mas eles não queriam dar o reconhecimento [da etnia]. Demorou um pouco, mas eles conseguiram reconhecer o povo que está lá para sobreviver, para proteger o território”.

Ele afirma que o Parque Nacional da Serra do Divisor foi construído em cima da terra dos Nawa, com o aval das instituições ambientais. É por isso, segundo Railson, que os Indígenas enxergavam algumas instituições do governo como inimigas de seu povo. Hoje, explica, os Nawa concordam em dialogar com os órgãos ambientais, em especial com o ICMBio. Em nota, o ICMBio disse que, com diálogo, novos acordos estão “superando as dificuldades do passado” com os Indígenas.

Antes do parque, havia os Indígenas…

“Não há uma área de sobreposição da Terra Indígena. Não é a Terra Indígena sobre o parque, é o parque sobre a Terra Indígena. Porque a gente sempre habitou aquela região. A definição de parque é produto de interesse do próprio Estado”, afirma Tarisson Nawa.

O cacique Railson Nawa endossa que a luta pela demarcação do território é marcada por histórias de massacres. “Hoje, nós somos os filhos e netos dos que resistiram. Estamos vivendo na área de fronteira do Igarapé Novo Recreio, município de Mâncio Lima, Rio Moa, estado do Acre, e lutamos pela terra sagrada de nossos ancestrais.”

Em 2003, a Justiça Federal do Acre promoveu uma tentativa de conciliação entre o Ministério Público Federal e os órgãos da União sobre a área do parque, para evitar o litígio. O objetivo da ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público era garantir que os Indígenas Nawa fossem ouvidos e incluídos nas discussões do plano de manejo do parque. Neste processo, conduzido pela 1ª Vara Federal, todas as partes, por unanimidade, reconheceram os Nawa como povo Indígena, dando aval ao estudo antropológico feito pela Funai no ano anterior. Caberia à Funai fazer um estudo de identificação e delimitação do território Nawa, como estabeleceu o Judiciário naquela época.

No acordo judicial de 2003, entre as lideranças Nawa, Ibama, ICMBio e Funai, Indígenas tiveram sua presença no parque reconhecida. Foto: Reprodução

No ano seguinte, 2004, um relatório preliminar da Funai que delimitou uma área de 83.218 hectares do povo Nawa – menos de 10% da área total do parque – foi contestado pelos procuradores do Ibama. O órgão ambiental decidiu brigar na Justiça Federal do Acre para rever a delimitação da Terra Indígena. No processo, eles alegavam que a extensão proposta para a TI Nawa dividiria o parque, o que poderia comprometer a conservação da biodiversidade.

Liderança de mulheres do povo Nawa, Lucila da Costa Moreira se lembra bem do tempo em que a contestação dos limites do território feita pelo Ibama causou o repúdio dos Indígenas. “[Os agentes do Ibama] saíram botando placa [do parque] em todo canto. Onde nós víamos que era a nossa terra, nós tirávamos. E aí veio a luta de reivindicarmos o que era nosso. Quando foi para publicar o relatório da Funai sobre o nosso território, o Ibama foi contra. Eu me perguntei: por que fizeram um parque dentro do nosso território?”, diz Lucila.

Questionada por SUMAÚMA em 2023 sobre o andamento do processo do território Nawa, a Funai informou, por e-mail, que a “demanda foi encaminhada para a área técnica”. Ao ser novamente questionada, em fevereiro deste ano, sobre a divulgação do relatório antropológico e o andamento da demarcação, o órgão indigenista não respondeu. Sobre a demora do processo dos Nawa, disse que tal situação se deve a vários processos e ações judiciais que ocorreram após a apresentação do estudo antropológico de identificação e delimitação da Terra Indígena Nawa. A Funai aponta, por exemplo, que em 2007 houve uma decisão do Ministério Público Federal do Acre que determinou que os limites do território fossem refeitos.

Essa discordância sobre os limites do território Nawa perdurou até 2019, quando houve uma tentativa de consenso, com participação da Funai, ICMBio, Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Acre e a própria comunidade Nawa, para definir o traçado da área. Porém, sob Bolsonaro, o processo novamente parou.

Lucila Nawa (de costas) fala a seus parentes na reunião com a Funai, em 2023: ‘Por que fizeram um parque dentro do nosso território?’. Foto: Tarisson Nawa

“O povo Nawa viu que a gente pode preservar a natureza em pé, fazer a demarcação, fazendo a estrada só por baixo da árvore, não precisando fazer derrubada como certas empresas fazem. É desse modo que a gente pensou a autodemarcação. E, quando for para colocar placa, que saia do nosso jeito, que seja do nosso modo”, reivindica Lucila.

Ao participar do grupo de trabalho da Funai, Tarisson enfatizou a importância do processo de autodemarcação iniciado em 2021: “A autodemarcação é a cultura viva, passando ali na frente dos seus olhos, basta ver. Foi lá que ouvi o território falar. Precisei me preparar para ouvir o território falar e, para isso, precisei de tempo. Foi lá que reforcei o posicionamento político do meu povo, o reforço da cultura, as lembranças dos antigos, a nossa forma de comer, andar, se reunir. A ação de demarcar o próprio território, colocando placas escritas à mão e reforçando a luta ancestral pela vida – compreendida nas suas amplas dimensões –, me colocou em um lugar de reflexão intensa”.

Tarisson considera a autodemarcação “uma ação Indígena para afirmar ao Estado que as linhas que eles demarcam não representam, muitas vezes, nossa ideia de território”.

Equipes da Funai retornaram ao Acre em 2023 para retomar o trabalho de identificação e delimitação da Terra Nawa: Tarisson fez parte do grupo. Fotos: Tarisson Nawa

Para o cacique Railson, a demarcação do território não só é urgente como também fundamental para conter as invasões de madeireiros e algumas rotas de tráfico de drogas em torno do território, que só têm crescido com a letargia do processo de reconhecimento da área Indígena.

“Queremos ter o documento da nossa terra, um lugar só de Indígenas. Com a terra não sendo demarcada, vão permanecer os não Indígenas junto com a gente, e esses não Indígenas são as maiores ameaças para conviver dentro de um território. Nós vivemos da agricultura, mas tem grandes fazendeiros brancos que vivem desmatando, e aí acabamos tendo confrontos com eles, porque nós não queremos destruir o nosso território, queremos proteção”, destaca o líder Indígena.

Para os Nawa, a vida só será possível com a demarcação. “Sem isso não temos como sobreviver”, sentencia o cacique. Tarisson espera ainda ter o espírito jovem quando a demarcação finalmente sair. E que não precise mais ver seus parentes tombando, morrendo e envelhecendo sem ter, em vida, o direito ao território.

Em sua dissertação de antropologia sobre os Nawa, ele escreveu que resgatar essas memórias foi como subir os rios num movimento contrário ao que as águas conduziam: “E não foi de motor, nem de remo; subi de varejão”. Quando realmente mergulhou na descoberta da ancestralidade, o percurso foi tão difícil que precisou varejar, ou seja, contar com a ajuda de uma vara para impulsionar o barco adiante, nos momentos mais críticos. Esse caminho foi explosivo, afirmou ele a SUMAÚMA. “Subi em um movimento árduo, longo, muitas das vezes cansativo, doloroso, calejado, triste e revoltado, mas fortalecido na perspectiva de que a cada varejada eu me tornava mais consciente do que fui e sou”, registrou em sua tese. O trajeto pelas águas turbulentas continua, e Tarisson sabe disso. Só cessará quando o Estado reconhecer, finalmente, que na terra onde sua tataravó se fez raiz é que seu povo deve estar.

Inû Awá, aldeia Nawa dentro do parque, é um território sagrado: lá estão enterrados Mariruni e outros ancestrais. Foto: Tarisson Nawa

O papel indígena na demarcação

Tarisson viajou para o Acre em 22 de maio de 2023. A primeira parada do grupo de trabalho da Funai foi no município de Cruzeiro do Sul. “Voltar para minha terra é um momento de renovação das forças para enfrentar as violências contra nós, povos indígenas. Estar com minhas lideranças é aproximar os vínculos, reforçar a atuação coletiva e definir estratégias para a continuidade da luta pelo bem-viver dentro do nosso território”, definiu o antropólogo indígena.

O jovem Nawa seguiu de Cruzeiro do Sul para a cidade de Mâncio Lima, subiu o Rio Moa e chegou à aldeia Novo Recreio, a principal comunidade do povo Nawa dentro do parque, considerada o território tradicional.

A aldeia Novo Recreio leva o nome do principal igarapé da Terra Indígena. Ali, a mais de 600 quilômetros da capital do Acre, Rio Branco, a equipe da Funai iniciou os trabalhos para a atualização do Relatório Circunstanciado de Identificação de Delimitação. “O documento é a base teórica, cartográfica, ambiental e fundiária para justificar a demarcação de uma Terra Indígena”, explica Tarisson.

Todo o processo de demarcação de Terra Indígena foi explicado para a comunidade, conta Tarisson, e as lideranças foram ouvidas para que se tentasse chegar a um consenso sobre os limites do território que fica dentro do parque.

“Compreendi a importância de estar junto com meus parentes, de orientar, esclarecer, dialogar, ouvir. Me senti em um espaço privilegiado de acesso a informações sobre o processo de demarcação, mas pude digerir todos os conhecimentos e fazer com que eles chegassem com a linguagem que usamos, da forma que falamos e da maneira como nos expressamos, para tornar o processo da demarcação da Terra Indígena o mais participativo possível.”

Já dentro do parque, Tarisson seguiu para a aldeia sagrada nomeada de Inû Awá, onde seus antepassados estão enterrados. “A aldeia, morada das antas e onças, como o próprio nome indica, também é um farto lugar de caça para um povo que tem a prática ancestral de caçada.”

Só é possível chegar à aldeia Inû Awá pelo Igarapé Novo Recreio, afluente do Rio Moa. “No local estão 10 tapiris (pequenas casas com assoalho de madeira). Os moldes do lugar se assemelham aos antigos tapiris de caça e extração de seringa. Os tapiris são, na maioria, desmontáveis. Muitos têm apenas a estrutura que sustenta a casa, sem divisórias ou cômodos”, disse o antropólogo, que fez registros fotográficos durante a viagem.

Uma vez que se chega a Inû Awá, de lá só é possível andar pelas picadas. Os pequenos trechos abertos no meio da mata delimitam o território Nawa de norte a sul, relata Tarisson. “As picadas estão em processo de finalização dentro da mata e, após concluídas, servirão para marcar o território Nawa e monitorá-lo. A fundação de uma aldeia para monitoramento e execução dos trabalhos de autodemarcação são uma estratégia de sobrevivência. Existe uma simbologia no morar e um sentido no habitar, que na Terra Indígena tem relação com o monitorar, praticar e alimentar.”

Após permanecer três dias na aldeia Inû Awá, Tarisson diz que passou a olhar a autodemarcação como uma performance da guerra. “Vejo a autodemarcação como similar ao processo de ‘retomada’ territorial iniciada pelos Guarani no Planalto Central e reforçada pelos parentes indígenas no Nordeste.”


Reportagem e texto: Ariene Susui
Edição: Malu Delgado e Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Melissa Mann
Infográficos: Rodolfo Almeida
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

Juventude Nawa alimenta esperança de que o território seja demarcado: os mais velhos não tiveram tempo para esperar. Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real

© Direitos reservados. Não reproduza o conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita de SUMAÚMA