Jornalismo do centro do mundo

A sumaúma de Belém, que tombou nesta semana, vivia cercada por grades desde 2012; ela parecia bem no verão passado. Foto: Celso Rodrigues

Não foi decretado luto no município nem as bandeiras foram hasteadas a meio pau, mas Belém viveu uma comoção coletiva pela queda de grande parte de uma samaumeira na área central da cidade, em frente à Basílica de Nazaré, onde termina, todos os anos, a procissão do Círio. A árvore, calcula-se, tem quase 200 anos e era famosa pelo porte, pela beleza, por ser morada dos periquitos que todos os anos passam pela capital do Pará na sua migração de verão e também por ter sido testemunha de muitas histórias e vidas.

A queda da maior parte de seus galhos ocorreu no meio da madrugada do dia 6 de fevereiro, o que pode ter evitado graves danos, já que ela fica em uma região central e bem movimentada da cidade. Em outro horário do dia, muitas pessoas humanas poderiam ter sido atingidas. Nas redes sociais, uma moradora definiu: “De madrugada, generosa, não feriu ninguém. A gente chora”. A câmera de vigilância registrou o momento, numa sequência que foi transmitida várias vezes pela televisão e pelas redes sociais. Pelo amanhecer a notícia e a comoção já se espalhavam pela cidade e moradores, primeiro os de perto, depois os de longe, não paravam de chegar, olhando para os restos da árvore, entre tristes e assustados, como se estivessem passando pelo velório de alguém famoso e querido. E estavam.

Galhos caídos da sumaumeira que tombou no centro de Belém, capital do estado do Pará. Foto: Celso Rodrigues

A Secretaria de Meio Ambiente de Belém (Semma) enviou equipes ao local para retirar os enormes galhos, numa operação que só foi concluída três dias depois, tamanha a dimensão da sumaúma. E os cidadãos que compareceram a essa despedida peculiar pediram aos trabalhadores um pedaço do corpo da árvore para levar para casa. A notícia de que os nacos da samaumeira estavam sendo distribuídos logo se espalhou. Muitos saíam do local como se carregassem um troféu, um pouco da memória da cidade e algo concreto para representar suas próprias lembranças de uma pessoa-árvore tão querida. Havia ainda quem fosse pegar não um, mas vários pedaços, para dar a familiares e amigos. Em meio à comoção, também circulou a informação de que os cortes estariam sendo vendidos, e a prefeitura de Belém reagiu dizendo, em seu perfil oficial no Twitter, que a venda ilegal de madeira é crime ambiental e que a distribuição tinha sido feita gratuitamente, atendendo a “apelos sentimentais de pessoas que desejavam guardar um pedaço do vegetal de recordação”.

Reprodução: Twitter

Desenhos, fotos e lembranças da sumaúma inundaram as redes sociais. Alguns compartilharam a litogravura do pintor italiano Giuseppe Righini, imagem de 1867 que comprova os mais de 150 anos de idade da pessoa-árvore. O artista visual Lucas Negrão compartilhou imagens no Twitter e no Instagram que mostram as pessoas tocando os pedaços dos galhos e escreveu: “Mãe samaúma, teus veios em nós”. A jornalista Fátima Gonçalves postou um desenho de Sérgio Bastos, artista famoso na cidade, que mostra a velha sumaumeira em pleno vigor, lamentando que, agora, “só nos resta lembrá-la por fotos ou desenhos”.

SUMAÚMA foi em busca de entender por que uma árvore, a mesma que dá nome à nossa plataforma de jornalismo, inspira tanto carinho. E, sim, as duas formas de chamá-la, com “u” ou com “a”, estão corretas. Sumaúma ou samaúma, samaumeira ou sumaumeira, cientificamente Ceiba pentandra, mas também chamada de rainha, mãe e avó. Na floresta, ela tem a expectativa média de vida de 500 anos, a idade do que chamamos Brasil. Em contexto urbano, 120, mas um dos espécimes mais famosos da Amazônia brasileira, a Vovó, que vive na Floresta Nacional do Tapajós, no oeste do Pará, tem idade estimada em cerca de mil anos.

A de Belém era conhecida por todos como samaumeira do CAN (sigla de Centro Arquitetônico de Nazaré, como era chamada a área, depois rebatizada de praça Santuário de Nazaré). Mas esse gigante nem era a única nem a maior samaumeira do local. Ao todo, são quatro. A que tombou no dia 6 era talvez mais famosa por estar localizada bem atrás da concha acústica da praça, um local de destaque e para onde todos os olhos se viravam a cada apresentação ou espetáculo no palco. A bióloga Flávia Araújo Lucas, professora da Universidade do Estado do Pará, especialista em plantas, deu aula a seus alunos sobre o que chama de “afetos do mato” e logo depois falou a SUMAÚMA sobre a afetividade que cerca essa pessoa específica.

“Eu frequentava muito. Eu era de uma escola de dança, e a gente se apresentava naquela concha acústica, então aquela praça, aquilo, a gente tem a afetividade. É a afetividade com as plantas, afetividade com os ambientes que a gente conhece, que eram da nossa infância, com que a gente brincava”, diz. “A samaumeira ali do CAN, aquilo foi dolorido pra mim. Parecia um parente meu, da minha família, e esse sentimento foi de muita gente. São entes vivos. Não é só um componente de uma paisagem, é o que faz a gente se sentir natureza.”

Reprodução: Twitter

Flávia trabalha com revitalização de quintais na região metropolitana de Belém, inclusive nas muitas ilhas que compõem o território municipal [mais da metade da capital paraense é insular]. Ela explica que a samaúma ou sumaúma, apesar de não existir apenas na Amazônia brasileira, é uma árvore icônica da região, presente nas áreas de terra firme, mas sobretudo nas várzeas, as florestas alagáveis nas margens dos rios. “São icônicas porque são árvores que contam histórias, nossas, mas também a própria história da América do Sul”, diz. “Muitos mitos e ritos existem sobre a samaumeira, é uma planta carregada de simbolismos e com muita identidade com indígenas e ribeirinhos.”

Glenn Shepard, antropólogo e pesquisador do Museu Paraense Emilio Goeldi que atua na área da etnoecologia, confirma. Ele é um dos organizadores da exposição virtual Floresta Sensível, que propõe uma “imersão nos saberes da floresta”, ao reunir conteúdos científicos, cosmológicos, mitológicos em torno das espécies florestais que estão presentes no parque zoobotânico do Museu Goeldi, um passeio online para conhecer mais sobre as plantas do local. A samaumeira, para ele, atrai os olhares e os visitantes pela majestade, um resultado de sua altura colossal, de até 60 metros, da copa vasta e espalhada e, sobretudo, das raízes chamadas tabulares ou sapopemas, tão grandes que parecem abraçar quem se aproxima. “Ela tem um aspecto de portal com as sapopemas e a copa que se expande. Os galhos são tão grandes que são usados pelas harpias [as maiores aves amazônicas] para fazer ninhos. Então é uma árvore que abriga.”

Os significados da sumaúma não se encerram na imponência e na beleza. Para vários grupos indígenas, ela tem papel fundamental em mitos de origem. “Para muitos grupos amazônicos, em tempos mitológicos, o céu era mais perto do mundo, você podia subir até ele por uma árvore e essa árvore que suporta o céu em muitos casos é a samaúma”, conta Glenn. Em outras tradições, a samaumeira representa os rios, a estrutura dos grandes rios da Amazônia com suas dezenas de braços e ramificações, como a árvore.

A Secretaria de Meio Ambiente de Belém (Semma) enviou equipes ao local para retirar os enormes galhos, numa operação que só foi concluída três dias depois. Foto: Sandro Barbosa

A sumaúma simboliza a conexão entre a terra e o céu e também entre o mundo dos vivos e o mundo espiritual, sendo um canal de comunicação importante no xamanismo ameríndio. A exposição virtual conta a história dos xamãs da Amazônia peruana, que misturam a casca da árvore, que chamam de lupuna, com a ayahuasca para receber seus poderes. “No Pará, os Gavião Parkatêjê utilizam troncos da sumaúma para as corridas de toras, jogos que compõem ritos importantes em fases de iniciação de novos guerreiros, junto com os jogos de flecha. No Acre, as samaúmas também aparecem nas cosmologias dos Arara Shawãdawa, como parte da narrativa de origem do povo. Em uma grande sumaúma vivia um gavião que caçava crianças. A partir da morte desse gavião por um humano, o povo teria surgido de suas penas”, diz o texto da exposição Floresta Sensível.

Para os Ticuna, do Amazonas, “no princípio do mundo, uma samaumeira gigante (wotchine) fechava o mundo e por isso não havia claridade. Quando os irmãos Yo’i e Ipi jogaram um caroço de araratucupi (tcha) em sua copa, observaram que uma grande preguiça-real prendia os galhos da samaumeira ao céu. Ao continuarem jogando caroços, surgiram as estrelas, mas ainda assim não havia claridade no mundo. Tentaram derrubar a árvore com a ajuda de todos os animais da mata, mas não conseguiram nem mesmo com a ajuda do pica-pau. Os irmãos decidiram, então, oferecer a irmã Aicüna em casamento para quem conseguisse jogar formigas-de-fogo nos olhos da preguiça-real que prendia o céu nos galhos da samaúma. Um pequeno quatipuru (taine) conseguiu subir, jogar as formigas e fazer com que a preguiça soltasse o céu. A árvore caiu, e assim a luz apareceu no mundo. Do tronco caído, o rio Solimões foi formado e de seus galhos surgiram outros rios e igarapés”.

Ao mesmo tempo que têm tantos significados cosmológicos, as raízes monumentais da sumaúma, plantadas nas áreas de várzea, são capazes de sugar e armazenar centenas de litros de água por dia, tirando-a do lençol freático e liberando-a na atmosfera, um processo que a ciência chama de rios voadores e ao qual é atribuída a umidade que se espalha por todo o território brasileiro. “Então, ecologicamente, cientificamente, ela tem a função de conectar os rios, a terra e o céu, de maneira literal, através desse ciclo das águas”, explica Glenn. A samaumeira é parente de outra árvore carregada de simbolismos e significados, natural do continente africano, o baobá. São da mesma família botânica e têm uma estrutura parecida, ambas com raízes tabulares. E também o baobá ocupa o papel, na África, de fazer a ligação entre a terra e o céu e entre os mundos dos vivos e os outros.

O cientista conta que já presenciou o uso das sapopemas – as raízes – como veículo de comunicação na floresta. Quando golpeadas, elas produzem vibrações sonoras que alcançam grandes distâncias e servem, por exemplo, para avisar da chegada de visitantes. Mas não é só por isso que a sumaúma é a internet das matas. As sementes se dispersam por estarem envoltas em uma fibra que lembra o algodão ou a paina e que flutua por muitos quilômetros, garantindo a reprodução da espécie. Para evitar que as sementes sejam derrubadas pelas chuvas constantes da floresta amazônica, essas fibras são hidrofóbicas, não absorvem a água. Por causa dessa característica, a fibra da semente da samaúma é usada pelos povos indígenas para envolver as zarabatanas utilizadas na caça. Essa tecnologia ancestral foi incorporada pelos não indígenas e hoje é empregada para proteger equipamentos sensíveis à umidade ou para absorver petróleo em áreas de desastre: como repele a água, a fibra absorve o óleo.

Depois da queda na madrugada de 6 de fevereiro a sumaumeira  precisou ser cortada pela prefeitura. Ainda não se sabe se a árvore, que pode ter 200 anos, vai rebrotar. Foto: Sandro Barbosa

Rebrotar

Com tantos significados que a sumaúma tem em todas as várzeas amazônicas, é possível entender a importância da pessoa que caiu para os moradores de Belém, uma cidade de várzea afinal, mas muito esquecida da natureza de onde veio. O diretor do Departamento de Áreas Verdes Públicas da Secretaria de Meio Ambiente (Semma) do município, Kayan Rossi, conduziu no dia 9 uma vistoria no que sobrou da samaumeira do CAN. Especialistas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) participaram do trabalho. Foram colhidas amostras do vegetal que serão analisadas por pesquisadores para determinar sua idade exata e, mais importante, para diagnosticar se há alguma chance de a árvore rebrotar.

Enquanto não se define o destino dessa pessoa-árvore, as outras centenas que compõem a paisagem de Belém também inspiram cuidado, principalmente as mangueiras que tornam a cidade famosa. Elas foram plantadas há mais de 120 anos, e não se passa um inverno sem que uma delas tombe. Antes da samaumeira do CAN, uma mangueira já tinha caído, felizmente sem fazer vítimas humanas, no mês de janeiro. O diretor da Semma explicou que a prefeitura está fazendo um inventário das árvores de Belém através de um convênio com a Ufra. O inventário já catalogou todas as pessoas-árvores dos bairros do Marco e de Fátima. O trabalho no bairro de Nazaré, onde tombou a samaumeira, está marcado para começar nesta semana. A partir da catalogação, será possível avaliar os riscos e planejar melhor os cuidados.

“Historicamente, a arborização de Belém foi feita de forma desordenada, uma boa parte pela própria população, e por isso o poder público não tem tanto controle sobre o paisagismo arbóreo. Foram utilizadas espécies inadequadas para áreas urbanas, como é o caso da própria samaumeira e de todas as mangueiras. Essas árvores foram plantadas sem estudos aéreos e de solo, por isso caem tantas. A mangueira, por exemplo, é uma espécie inadequada para arborização urbana, mas não se tinha essa avaliação na época em que elas foram plantadas, há 120 anos, então agora temos que lidar com os riscos”, explica Kayan. O principal problema, no caso das mangueiras, é que o solo de Belém é raso, inadequado para essa espécie, que precisa de raízes profundas. As samaumeiras se adaptaram ao tipo de solo da capital paraense, mas são de madeira branca, que é mais do agrado de insetos como o cupim. Talvez, porém, não tenham sido as árvores que foram plantadas em lugares inadequados, e sim a cidade que cimentou a natureza ao redor delas.

Um exame anterior na samaumeira feito em 2012 pela Semma levou a prefeitura a cercar a árvore com grades, porque ela estava com uma enorme lesão provocada – vejam bem – por urina humana. Humanos urinavam na árvore e abriram nela uma enorme ferida. O machucado era tão grande que cabia uma pessoa dentro dele. “É como se fosse uma ferida aberta. Ela foi tratada, se regenerou. Então ela era considerada uma árvore em regeneração a partir daquele momento. E desde então a gente fazia um acompanhamento periódico dessa árvore e das outras três samaumeiras daquela área”, garante Kayan.

Por estarem localizadas em uma área de intenso movimento e onde ocorre o Círio de Nazaré, as samaumeiras são observadas também pela Diretoria da Festa, que organiza os eventos oficiais da manifestação religiosa. Nessa semana de comoção com a queda da samaumeira, chegou a circular nas redes sociais uma montagem que acusava a prefeitura de Belém de não ter atendido a um pedido da Diretoria da Festa para podar a árvore. Em comunicado a SUMAÚMA, o coordenador do Círio 2023, Antônio Salame, informou que não foi observada nenhuma grande anormalidade nas árvores na praça Santuário ou no percurso das procissões e que todos os anos são enviados à prefeitura pedidos para sua revisão e poda para a segurança dos romeiros.

Ainda assim, apesar de todos os responsáveis garantirem que fizeram tudo certo, a samaumeira tombou.

Talvez o que tenha faltado nesses 200 anos foi pensar na segurança da árvore – e não apenas dos carros, dos prédios, dos passantes, dos romeiros. Faltou pensar em como proteger a samaumeira dos humanos.


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