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Coluna SementeAr

Detalhe da obra Marco Temporal, de Paulo Nazareth. A instalação mostra que o único marco temporal possível é 1492, quando começou a invasão transatlântica. Foto: Ícaro Moreno

Você também sente que o tempo está passando cada vez mais rápido? Quero dizer, você também percebe que há mais eventos acontecendo por unidade de tempo? Talvez uma consequência direta de haver mais seres humanos no planeta? Cada qual agindo e interagindo, uns em relação aos outros e a tudo aquilo que tanta gente hoje chama de… Natureza?

Mas se cada árvore na floresta desentende de bordas, cada uma parte e parcela de uma vasta e profunda rede de raízes, rizomas, micorrizas e outras entidades microscópicas, vivas, orgânicas… de onde veio, afinal, essa ideia absurda de que temos fronteira definida com TODAS as formas de vida e não vida? Que não somos nós mesmos a própria Terra, mas apenas seres apartados, isolados e semoventes sobre ela? De onde veio essa ideia troncha de que somos nós CONTRA a Natureza?

Natureza somos. Os guardiões dessa verdade ancestral, tão antiga quanto a origem da Vida, há cerca de 3,7 bilhões de anos, são os povos originários de cada continente, tais como os povos Indígenas amazônicos que mantêm suspenso, ainda que tremulante, o próprio céu. O apocalipse tem muitas armas em seu paiol: fogo, veneno, mentira, violência e morte. Bombardeado pela guerra incessante do homem branco contra a Terra, o céu vai desabando em seca, incêndio, chuva e enchente. Que o diga Manaus, que o queime Ribeirão Preto, que o vele Porto Alegre.

Entretanto, a contrapelo de todas as evidências sobre a crise ambiental, cursa no Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil uma constrangedora tentativa de conciliação entre os direitos territoriais dos povos Indígenas e os interesses predatórios dos latifundiários, grileiros e mineradores, responsáveis pela aprovação recente da Lei 14.701/2023, que define as terras ocupadas ou disputadas por Indígenas em 5 de outubro de 1988 como marco temporal para a demarcação de todos os territórios Indígenas. Afirme-se a verdade, de uma vez por todas: usucapião é de quem chegou primeiro. Como aponta Paulo Nazareth na obra Marco Temporal, atualmente exposta em Inhotim, o único marco temporal possível é 1492, ano de início da invasão transatlântica. Quem chegou depois que encontre um jeito de honrar os originários: ou aceita ou respeita.

E precisamos falar das reparações devidas. Menos de cem anos após a chegada de Colombo à ilha de Hispaniola, já não restava vivo no Caribe quase nenhum Indígena Taíno, à força de massacres, epidemias e escravidão brutal. Devastação semelhante aconteceu, mais cedo ou mais tarde, em todas as partes da América. Há relato de que em 1637 o povo Omágua-Kambeba habitava mais de 400 aldeias apenas entre os rios Javarí e Jutaí, mas atualmente seus integrantes não passam de mil indivíduos entre Brasil e Peru. Expulsos de suas terras após a Guerra do Paraguai, os Guarani Kaiowá hoje acampam às margens das rodovias em Mato Grosso do Sul, ou são martirizados por fazendeiros e jagunços na tentativa de retomar as terras sagradas de seus avós. Apenas três exemplos do holocausto Indígena que se repete em toda parte e não cessa.

Porção essencial da estratégia de dominação colonial foi – e continua sendo – a defesa a todo custo da ideia de que os povos Indígenas são socialmente primitivos, o que explicaria a facilidade com que foram dominados. Desde a Controvérsia de Valladolid, em 1550-1551, os opressores disseminaram a noção de que os povos Indígenas eram subjugáveis, inimputáveis e doutrináveis por serem quase completamente desprovidos de ciência, cidades, escrita, roupas e até mesmo de alma.

No século 20, essa posição assumiu uma feição arqueológica a partir dos achados de pontas de flechas no sítio de Clóvis, no estado do Novo México, nos Estados Unidos. Datados em torno de 13 mil anos, esses artefatos passaram a ser defendidos como evidência cabal de que a migração humana pelo continente americano apenas teria começado perto do final da última glaciação. Todos os povos ameríndios seriam, portanto, migrantes recentes, novatos no continente e com pouco tempo de evolução cultural em comparação aos povos afroeurasiáticos, o que explicaria, ao menos em parte, sua suposta simplicidade.

Ocorre, entretanto, que muitas outras descobertas arqueológicas – no Chile, no Brasil e mesmo nos Estados Unidos – apontam datas mais antigas para a chegada das primeiras populações humanas à América. Hoje existe um consenso de que as primeiras migrações devem ter ocorrido entre 15 mil e 20 mil anos atrás, e talvez até muito antes disso.

Estudos genéticos, arqueológicos e antropológicos têm revelado a existência de imensas redes de troca material e imaterial no complexo cultural amazônico-andino-mesoamericano. Ao longo do tempo, a ocupação Indígena da floresta produziu grandes extensões de pomares sobre terra preta, riquíssima em nutrientes derivados da própria presença humana. Imigrações ameríndias alcançaram a Polinésia oriental, cidades imensas foram construídas no meio da floresta, observatórios astronômicos foram erguidos desde as cercanias da foz do Rio Amazonas até a península de Yucatán, no México. Arte extremamente sofisticada e complexos sistemas de escrita e matemática foram inventados e aperfeiçoados através dos milênios. Certamente houve tempo de sobra para pensar e experimentar.

Não, não eram nada primitivos os povos que os europeus trucidaram. Negar aos saberes Indígenas o status científico é pretender que apenas os saberes universitários merecem a distinção de ser “a ciência”, o suposto diapasão único da verdade universal. Essa tolice racista ignora conhecimentos não apenas produzidos e acumulados por milênios, mas transmitidos quase sempre de graça a universidades, institutos e corporações da Europa e dos Estados Unidos.

Vieram do complexo cultural amazônico-andino-mesoamericano o cacau que arrebata paladares em toda parte, assim como a batata e o açaí que matam a fome de qualquer caboclo. Em particular, vieram da Floresta Amazônica a borracha de mil e uma utilidades, a quinina que trata a malária e a ayahuasca que alivia a depressão. Nenhuma dessas maravilhas foi mera dádiva natural encontrada ao acaso por pessoas primitivas. Ao contrário, todas elas se constituíram como arrojadas inovações dos povos originários, paciente e diligentemente desenvolvidas com muita perspicácia e sabedoria. Inovações milenares que nos últimos séculos o homem branco monetizou, alienou e se apropriou, quase sempre de forma unilateral e sem repartir quaisquer benefícios.

Na verdade, à medida que mais pesquisas são realizadas e um princípio de justiça epistemológica já desponta no horizonte, começa a ficar evidente que as contribuições ameríndias à cultura planetária vão muito além de produtos e processos, chegando até conceitos fundamentais para a filosofia, a economia e a ciência política. A noção moderna de liberdade, por exemplo, usualmente atribuída ao filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau, provavelmente foi articulada pela primeira vez nos salões da Europa através das palavras do diplomata Indígena Kondiaronk, da nação Wendat, entre o final do século 17 e o início do 18, e teria influenciado o autor francês de forma decisiva.

Em sua crítica contundente da sociedade europeia, Kondiaronk identificou no dinheiro a principal força motriz da corrupção social, se antecipando em mais de 300 anos à demonstração, pela psicologia experimental, de que o dinheiro é emocional e moralmente tóxico. Kondiaronk nos legou uma denúncia lúcida dessa sociedade que adora o dinheiro, e que é constituída pelo “povo da mercadoria” do qual nos fala o xamã Davi Kopenawa Yanomami. Povo imediatista que deseja objetos e experiências de maneira voraz e incessante, e sem considerar consequências. Povo capitalista recém-chegado no rolê humano, mas cada vez mais dominante e desumano. Povo esvaziado de sentidos, que só reconhece o valor venal das coisas, povo embotado e antipático, que já não reconhece alma em nada, até mesmo quando, porventura, busca encontros com o mundo espiritual.

Na sociedade do povo da mercadoria, as trocas são cada vez mais frenéticas, a saciedade é cada vez mais efêmera, o acúmulo de recursos é cada vez mais injusto e a destruição socioambiental é cada vez mais rápida. A regra implícita do jogo é que quem acumula mais manda mais. E assim, na dinâmica maníaca das apostas inconsequentes das mesas de pôquer dos financistas globais, vai se desenrolando o apocalipse desse povo triste.

Ao contrário, porém, do que imaginou Rousseau, a liberdade não é um atributo primitivo do ser humano, uma ingenuidade inicial eliminada de forma natural e inexorável pelo próprio desenrolar do processo histórico. A liberdade é, isso sim, uma consequência do exercício consciente e coletivo da ideia simples de que a disparidade de bens materiais não pode jamais produzir disparidade de poder político. Algo cada vez mais difícil de imaginar na sociedade capitalista, mas ainda praticado cotidianamente por milhares de sociedades originárias que continuam a viver os seus caminhos.

São profundos os saberes Indígenas, e escutar seus avisos ainda pode acabar nos salvando. Se você é um ministro do STF e está lendo estas palavras, por favor atente: a preservação do que resta da Amazônia e dos outros biomas precisa desesperadamente da demarcação das Terras Indígenas. Até hoje, somente as Terras Indígenas demarcadas conseguiram verdadeiramente resistir à voracidade do desmatamento.

É preciso agir agora para conter a metástase capitalista na maior floresta úmida do planeta. Somente os povos da floresta podem regenerá-la. Apressar-se traz boa fortuna. Você percebe que o tempo está passando cada vez mais rápido? Natureza somos. Os guardiões dessa verdade original são os povos ancestrais. Perceba os seus sinais.

São profundos os saberes Indígenas e escutar seus avisos ainda pode acabar nos salvando. Foto: Pablo Albarenga/SUMAÚMA

Sidarta Ribeiro é pai, capoeirista e biólogo. Tem doutorado em comportamento animal pela Universidade Rockefeller e pós-doutorado em neurofisiologia pela Universidade Duke. Pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, cofundador e professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Sidarta publicou cinco livros, entre eles O Oráculo da Noite e Sonho Manifesto (Cia. das Letras). Em SUMAÚMA, escreve a coluna SementeAR.


Checagem: Plínio Lopes
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: Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson 
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