Na última sexta-feira, 20 de janeiro, nossos leitores acordaram com uma frase: “Não estamos conseguindo contar os corpos”. O desabafo de um profissional de saúde que atua na Terra Indígena Yanomami, entre os estados de Roraima e Amazonas, se tornou o título da reportagem que revelou com exclusividade o número aterrador que passou a ser repetido por autoridades e imprensa brasileira e internacional: 570 crianças da etnia Yanomami morreram por causas evitáveis nos quatro anos do governo do extremista de direita Jair Bolsonaro, um aumento de 29%. Na tarde do mesmo dia, Lula anunciou que viajaria a Boa Vista, capital de Roraima. Na comitiva, a parentíssima Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, e a presidenta da Fundação dos Povos Indígenas, Joênia Wapichana, entre vários ministros e autoridades. “Recebemos informações sobre a absurda situação de desnutrição de crianças Yanomami em Roraima. Amanhã viajarei ao Estado para oferecer o suporte do governo federal e, junto com nossos ministros, atuaremos pela garantia da vida de crianças Yanomami”, afirmou o presidente no Twitter. O Ministério da Saúde decretou então estado de emergência no território Yanomami.
Como uma plataforma de jornalismo, como SUMAÚMA, lida com uma reportagem como essa, entre a urgência e a delicadeza?
Acho importante explicar, porque isso mostra quem somos e como nos movemos, algo que nossos leitores precisam saber para fazer suas escolhas. Nossa reportagem de estreia, no lançamento de SUMAÚMA, contava a tragédia humanitária vivida pelo povo Yanomami, cujo território foi invadido por milhares de garimpeiros ilegais. Contava a partir do ponto de vista das mulheres, as mais invisibilizadas. Naquele momento, 13 de setembro, a editora de projetos especiais Talita Bedinelli conseguiu, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), dados alarmantes: os casos de malária, doença que se espalha no território com os garimpeiros, saltaram de 2.928, em 2014, para 20.394, em 2021; 46 crianças com menos de 5 anos haviam perdido a vida só nos primeiros 5 meses de 2022 pelo que as estatísticas chamam de “causas evitáveis” (falta de tratamento médico e prevenção) e 52,7% dos pequenos Yanomami com menos de 5 anos estavam desnutridos. As informações exclusivas também mostravam que, desde julho de 2020, polos de saúde que funcionam dentro do território Yanomami foram fechados por 13 vezes por conta das ações dos garimpeiros, deixando os indígenas sem atendimento médico. Depois desta reportagem de estreia, seguimos acompanhando de perto a escalada de violações no território. No início de dezembro, ainda no governo Bolsonaro, nossas fontes no território começaram a enviar fotos e relatos aterradores de crianças e velhos, especialmente, com desnutrição severa causada por fome, malária e outras doenças. As notícias das mortes eram constantes, o tom dos relatos, desesperado.
Como está muito difícil acessar a Terra Indígena Yanomami porque os lugares mais atingidos são os mesmos que estão dominados pelo garimpo criminoso, jornalistas devem redobrar a atenção. Precisamos comprovar o que escutamos, em respeito aos fatos, ao leitor e especialmente às vítimas. Terras indígenas como a dos Yanomami, mesmo com autorização para a entrada, já são de difícil acesso porque são áreas de floresta, a maioria delas só acessíveis por avião ou barco. Quando ocupadas por criminosos com armas pesadas, se tornam quase inacessíveis. Assim, desde dezembro entrevistamos lideranças indígenas e profissionais de saúde e agentes do Censo que atuaram na região, para a composição de um quadro preciso e responsável do que já se desenhava como catástrofe.
Ao mesmo tempo, buscávamos autorização para cada uma das fotos que nos chegavam às mãos. Para os Yanomami, a imagem capturada em uma fotografia (utupë) é um dos componentes da pessoa. Quando um bebê, uma pessoa velha ou uma pessoa doente é fotografada, isso fragiliza ainda mais quem já está numa condição de grande vulnerabilidade. As consequências podem ser graves, já que, por ter sido fotografada ou filmada, a pessoa pode acabar indo para o mundo dos mortos. Jogar as fotos numa reportagem, mesmo que a intenção seja denunciar uma violação absoluta de direitos, não pode se tornar mais uma violação. Uma violência não nos autoriza a praticar outra. Ainda assim, é muito difícil sustentar a angústia de testemunhar a tragédia, ainda que pela voz de outros, e conter o desejo de berrar para o mundo ouvir. Sabemos, porém, que só quando é consistente o jornalismo consegue mover o que precisa ser movido.
Seguimos trabalhando. A indigenista, antropóloga e tradutora da língua Yanomam Ana Maria Machado conduziu a costura com diferentes lideranças, que nem sempre concordam uma com a outra. Enquanto isso acontecia, fotos foram jogadas na internet e rostos e corpos de Yanomami se espalharam pelas telas. Ana Maria e eu seguimos nosso trabalho de investigação, que perdurou pelo Natal e pelo Ano-Novo. Com um número de relatos de fontes consistentes, ainda que sem identificação porque correm risco de morte ou de perder o emprego, em 6 de janeiro Talita Bedinelli questionou o novo governo, para que revelassem os números oficiais atualizados. A resposta do Ministério da Saúde só chegou em 18 de janeiro, depois de muita pressão. A assessoria alega que responder rapidamente à imprensa será prática da nova administração, mas que a demora se deu por dificuldades na transição, já que a nova gestão acabou de assumir o ministério.
Jornalista experiente, Talita esmiuça os números do Datasus, sistema que agrega os dados de saúde do país, há quase 20 anos. Ao tabular os dados de 2022 enviados pelo MS e combiná-los com os dos anos anteriores, obtidos via Lei de Acesso à Informação, chegou ao número avassalador de 570 crianças com menos de 5 anos mortas por causas evitáveis nos quatro anos de Bolsonaro. Uma já seria inaceitável. Quinhentas e setenta é da dimensão do horror. Para além de expulsar os criminosos da Terra Indígena Yanomami e estancar a crise humanitária, é imperativo identificar e processar os responsáveis pela negligência que levou a uma tragédia que tem as digitais de Jair Bolsonaro e de muitos membros de seu governo, assim como de oligarquias políticas e econômicas regionais.
Publicamos a reportagem na madrugada de 20 de janeiro com os rostos borrados, conforme foi acordado com as lideranças indígenas, para atenuar o impacto da divulgação da imagem na cultura Yanomami, por um lado, e, por outro, para proteger indígenas e profissionais de saúde de sofrer retaliações no território. Qualquer possível identificação pela roupa de técnicos, enfermeiros e médicos também foi borrada, num trabalho zeloso de nosso editor de imagens, Pablo Albarenga. Nenhuma reportagem é mais importante do que a vida das pessoas, mesmo que seja uma reportagem para denunciar uma tragédia que devora vidas.
É assim que SUMAÚMA faz jornalismo. Também é preciso dizer que esta foi a reportagem mais difícil que editei e ajudei a fazer desde o início de SUMAÚMA, que completou quatro meses de vida pública em 13 de janeiro. Apesar de conviver com as imagens e os relatos por quase dois meses, quando a editora Viviane Zandonadi montou a página, a alma asfixiou. Não foi possível dormir na noite de 19 para 20 de janeiro. E acredito que foi assim para muitos leitores que acordaram na manhã de sexta-feira com esses números, relatos e imagens. Vivendo na Amazônia, todo dia eu acordo e durmo me perguntando como é possível acordar e dormir enquanto horrores como esse acontecem ao redor. Desconheço a resposta, apenas me levanto e sigo.
leia a reportagem completa:
“Não estamos conseguindo contar os corpos”