Indígenas de 3 etnias correm o risco de serem apagados das estatísticas brasileiras no próximo Censo. Eles vivem em áreas só alcançadas por meio de helicóptero. Mas, às vésperas do encerramento da coleta de dados, as aeronaves necessárias ainda não foram contratadas, o que deve inviabilizar o trabalho dos recenseadores e prejudicar a compreensão exata de quantos indígenas vivem no país e quais as suas condições de saúde e nível de vulnerabilidade. É a violação mais recente contra os povos originários, negligenciados nos últimos 4 anos do governo Bolsonaro.
Um dos grupos atingidos é o dos Yanomami, povo cujo território (nos estados de Amazonas e Roraima) foi invadido pelo garimpo ilegal nos últimos anos. Isso levou ao aumento de doenças, da violência, da fome e, como consequência, da mortalidade. Há locais, inclusive, onde as equipes de saúde, que coletavam alguns dos dados estatísticos, foram expulsas pelos criminosos, conforme revelado por SUMAÚMA em setembro. Tanto as equipes médicas quanto as associações que trabalham na região afirmam que, por conta do cenário de violência, os números atuais já não correspondem ao cenário real. Se o Censo não for completado, o povo Yanomami sofrerá um segundo apagão estatístico. Na TI Yanomami vivem ainda os Ye’kwana, que também serão prejudicados. Outro território afetado é a Terra Indígena Wajãpi, no Amapá, área que também foi invadida por garimpeiros e caçadores ilegais. No total, a estimativa é que 15 mil indígenas deixem de ser contados, juntando as 3 etnias.
Sem os dados completos do Censo não será possível fazer uma comparação com as informações coletadas em 2010, ano das últimas estatísticas gerais do IBGE, e saber o que de fato aconteceu com essa população na última década e qual o exato impacto das atividades criminosas. Não se saberá quantos indivíduos morreram e nasceram, quantos deixaram as aldeias, o que se perdeu da riqueza cultural e se o mercúrio usado pelo garimpo e que polui os rios pode ter criado um problema de saúde pública. O questionário aplicado à população indígena tem 76 questões relacionadas a características dos domicílios, núcleo familiar, religião, deficiência, autismo, migração para estudo ou trabalho, educação, renda e mortalidade.
A falta de coleta dos dados é uma clara violação dos direitos dos povos indígenas, como reconheceu o próprio IBGE em documento a que SUMAÚMA teve acesso. “A omissão de coleta nessas localidades devido à inviabilidade de transporte implicaria em submeter os indígenas à invisibilidade estatística por mais uma década, uma vez que as áreas indígenas não compõem a amostra de pesquisas estatísticas contínuas [como a PNAD, por exemplo]”, afirmou o órgão em uma nota técnica conjunta da Diretoria de Pesquisas, Diretoria de Geociências e da Coordenação-Geral de Operações Censitárias, de 30 de novembro. “Isso implicaria em grandes obstáculos para a promoção dos direitos que compõem a espinha dorsal do Estado Social brasileiro e frustraria os objetivos constitucionais de desenvolvimento socioeconômico e de redução das desigualdades sociais”, continua o órgão. O Censo é a única pesquisa que fornece estatísticas oficiais sobre os povos indígenas brasileiros desde 1991. Segundo os dados de 2010, viviam no Brasil 896,9 mil indígenas de 305 etnias, que falam 274 idiomas diferentes.
O imbróglio na contratação dos helicópteros se arrasta desde o começo do ano. O IBGE afirma em documento ter tentado a ajuda da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que possuem contratos com empresas de táxi aéreo nessas regiões, e do Exército, que tem aeronaves e faz o patrulhamento das áreas na fronteira.
“O IBGE procurou esgotar todas as possibilidades para a obtenção de apoio logístico junto a outros órgãos que possuem a expertise necessária”, disse o órgão em um outro documento, este enviado à Advocacia-Geral da União (AGU), em que solicitava um parecer sobre a possibilidade de fazer uma contratação emergencial, ou seja, sem licitação, das horas-voo necessárias para complementar a coleta.
O pedido de ajuda ao Exército foi feito em maio de 2022, mas o apoio foi negado. No mesmo mês, o IBGE consultou a Sesai sobre a possibilidade de o órgão de saúde fornecer horas-voo para a realização do recenseamento, o que foi negado 2 meses depois, de forma “intempestiva”, segundo o documento do IBGE. Paralelamente, o órgão estatístico pediu, em junho, a mesma ajuda à Funai, que informou no mês seguinte que não tinha contrato vigente para fornecer todas as horas de voo de helicóptero necessárias, mas conseguiria ajudar com uma quantidade. Diante das negativas, o IBGE abriu um processo de contratação de táxi aéreo por meio da modalidade de compra direta, porque não haveria mais tempo hábil de fazer uma licitação, segundo justificou. Este processo tramitou entre setembro e novembro. Em 28 de novembro, a AGU deu parecer contrário.
A coleta do Censo 2022 começou em agosto e tem sua conclusão prevista para dezembro. No anterior, em 2010, o IBGE teve o apoio da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), o que viabilizou acesso aéreo e apoio logístico na Terra Indígena Yanomami e na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, garantindo o recenseamento de um total de 43.722 pessoas nessas áreas. Para realizar o Censo nas áreas indígenas, o IBGE estimou a necessidade de cerca de mil horas de voo, distribuídas por 11 dos 34 DSEIs (Distritos Sanitários Especiais Indígenas).
A maior parte desses locais é alcançada por aeronaves de asas fixas, como monomotores, em um total de 692 horas-voo, que foram fornecidas pela Funai. O restante precisava de aeronaves com asas rotativas, ou seja, que usam hélices, como os helicópteros, que não precisam necessariamente descer em uma pista de pouso – nem todas as aldeias as têm. Mas a Funai só conseguiu ceder uma parte dessas horas-voo, no território dos Kayapó, no Pará. E afirmou que não tinha contrato desse tipo nas áreas dos Yanomami e dos Wajãpi.
Reunião na aldeia Demini, Terra Indígena Yanomami, em agosto deste ano. Foto: Pablo Albarenga.
Na parte da TI Yanomami localizada no Amazonas, a maior parte do recenseamento foi feito por via fluvial e outra parte com as aeronaves de asas fixas. Com isso, 84,4% dos setores censitários já foram visitados. Os 15,6% dos setores em falta dependem de acesso aéreo com asas fixas (4 setores) e com asas rotativas (outros 4 setores). A parte da TI Yanomami que fica em Roraima tem menos áreas com acesso fluvial ou terrestre e apenas 32,8% dos setores foram finalizados. Dos 229 setores em falta, 175 dependem dos helicópteros, afirma a nota técnica do órgão.
Na TI Wajãpi, no Amapá, a coleta começou em comunidades com acesso terrestre e fluvial, alcançando, em 24 de outubro, 74% dos setores recenseados. A partir dessa data, as atividades foram interrompidas, à espera da disponibilidade dos helicópteros. Nessa TI foram recenseados 175 domicílios, com 1.165 pessoas (média de 6 moradores por domicílio). A estimativa do IBGE era chegar a 281 domicílios.
Além de serem uma importante radiografia da população brasileira, os dados do Censo servem de referência para o cálculo de estimativas populacionais ao longo da década seguinte, para a distribuição de recursos públicos do governo federal para Estados e municípios com base na contagem populacional, e, no caso dos indígenas, são a principal fonte de dados da Funai e da Sesai para planejar políticas públicas. As estatísticas são coletadas a cada 10 anos – isso deveria ter acontecido em 2020, mas atrasou 2 anos devido a problemas orçamentários, primeiro, e depois pela pandemia. “Caso o Censo Demográfico 2022 não garanta a cobertura de todas as Terras Indígenas e, dentro delas, de todas as aldeias ou comunidades (…) [haverá] impactos na execução e no monitoramento da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, da Política Nacional de Gestão de Terras Indígenas e da Política Nacional de Educação Escolar Indígena”, ressaltou o documento das diretorias do órgão.
Por meio de sua assessoria de imprensa, o IBGE afirmou que ainda não estão esgotadas as possibilidades de parceria para conseguir as horas-voo necessárias para completar o recenseamento. Mas uma fonte que trabalha na coordenação do Censo afirmou à SUMAÚMA que, com o tempo restante, devido à complexidade operacional do trabalho em áreas remotas, dificilmente será possível incluir os dados que faltam nas estatísticas gerais sem que seja feita uma força-tarefa federal. A situação se complica com a desmobilização das equipes de trabalho em dezembro e com a falta de previsão orçamentária para as atividades em 2023. Questionados sobre os motivos da recusa de ajudar na realização do Censo, Exército e Sesai não responderam até a publicação desta reportagem.