Genocídio e negacionismo andam juntos. Especialmente no século 20, as maneiras de destruir parcial ou totalmente determinados grupos humanos evoluíram tanto quanto as formas de negação da ocorrência destes crimes. É importante recordar que o negacionismo mais conhecido, o do holocausto, não foi inventado pelos líderes nazistas e colaboradores quando foram julgados logo após o final da Segunda Guerra. Nestes processos, os réus alegavam ignorar ou não ter responsabilidade pelos crimes praticados, mas não negavam a sua ocorrência. As primeiras formas de negação do holocausto surgiram numa comunidade de intelectuais que não teve implicação direta nos crimes, por razões essencialmente ideológicas e posteriores à guerra. Graças a variadas formas de resgate da memória, emergiram diante das novas gerações as atrocidades cometidas por nazistas e colaboradores contra judeus, ciganos, homossexuais e pessoas com necessidades especiais. Segundo o historiador Henry Rousso, a necessidade política de superar o holocausto surgiu para permitir o renascimento da extrema direita nos países europeus. Em outras palavras, para que colaboradores diretos ou indiretos de tamanha monstruosidade fossem aceitos no espaço público, era preciso negar ou relativizar a existência dos crimes, suscitando controvérsias onde elas não existem, ocultando ou forjando documentos, distorcendo fatos e discursos. O resgate das origens do negacionismo é fundamental para que o debate sobre genocídio que envolve ações e omissões praticadas por Jair Bolsonaro e diversos de seus colaboradores seja travado com a devida profundidade.
Embora logicamente diversa da simples negação, a banalização de crimes é uma parte importante do movimento negacionista que cerca os genocídios, e não apenas o holocausto. Trata-se de dizer que as violações “não foram tão graves” quanto se diz, questionando o número de vítimas ou até atribuindo-lhes a culpa pelo ocorrido; minimizando os danos sofridos; e invariavelmente alegando que os investigados, processados ou condenados são vítimas de “farsas”, “caça às bruxas” ou qualquer forma de perseguição política.
Diante do enorme sofrimento causado por notícias, principalmente imagens, relacionadas a graves crimes, os movimentos negacionistas podem ser favorecidos por uma tendência à negação. Refiro-me agora ao mecanismo de defesa individual que, dito de forma rudimentar, leva uma pessoa a substituir certa realidade, que parece insuportável, por uma ficção com a qual possa lidar. Versões fantasiosas, diga-se de passagem, estão disponíveis em abundância na era da “infodemia”. Segundo a Organização Mundial da Saúde, este fenômeno consiste no grande aumento no volume de informações associadas a um assunto específico, que podem se multiplicar exponencialmente em pouco tempo, com rumores, desinformação e manipulação de fatos com intenção duvidosa. Porém, para que uma negação tenha grande repercussão social, as pessoas precisam evitar quem contradiz suas interpretações da realidade, juntando-se a quem pensa da mesma forma, como ensina a psicanalista Vera Iaconelli. O alastramento do negacionismo científico durante a pandemia de covid-19 não deixa dúvidas sobre o notável potencial destes movimentos, inclusive como amálgama social – há quem se reúna e se mantenha unido para negar.
Diante das imagens mais recentes das graves violações de direitos dos povos Yanomami, reveladas por SUMAÚMA em 20 de janeiro, e sobretudo da reação das autoridades federais recém-investidas que simplesmente orientaram suas ações pela lei brasileira e pelos tratados internacionais vigentes no Brasil, uma parte da sociedade brasileira direcionou sua atenção para o uso da palavra genocídio por membros do atual governo, e não para o caráter inadmissível da situação revelada.
O que torna o genocídio o mais grave dos crimes é a intenção de dizimar total ou parcialmente um determinado grupo humano. Não há dúvida de que a humanidade dos Yanomami foi negada – as autoridades federais tinham pleno conhecimento do que ocorria nos territórios em questão, inclusive do número e da causa das mortes. Descumpriram, assim, deliberadamente, o seu dever legal de proteger a vida e a saúde dos indígenas. Descumpriram também o dever de fazer cessar as atividades ilegais de terceiros que ostensivamente ameaçam a sobrevivência das vítimas, por meio da obstaculização do acesso à saúde e da destruição dos recursos naturais imprescindíveis à sua existência, entre outras formas de violência.
Porém, a exemplo do que ocorreu durante a pandemia de covid-19, muitos preferem perceber ações e omissões do governo federal em relação aos Yanomami como negligência ou ineficiência, recusando-se a enxergar nelas a intenção de causar a morte de centenas de indígenas. Outros tantos consideram que os povos indígenas são responsáveis por seu próprio infortúnio ao resistirem à ocupação predatória de seus territórios. Mas mesmo entre os que reconhecem nos indígenas uma resistência legítima, parece predominar a ideia de que genocídios ocorrem apenas durante conflitos armados, e exclusivamente por meio de assassinatos massivos, como os pelotões de fuzilamento ou as câmaras de gás.
No entanto, esta visão não encontra amparo no direito brasileiro, tampouco no direito internacional. Segundo o artigo 6o do Estatuto de Roma, de 1998, que criou o Tribunal Penal Internacional, ao qual o Brasil voluntariamente aderiu, “entende-se por genocídio qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo. No Brasil, especialmente a lei n. 2889 de 1956, prevê hipóteses quase idênticas. Já houve condenação por genocídio indígena no Brasil. Trata-se do Massacre de Haximu, também perpetrado contra o povo Yanomami, em 1993, cuja tipificação como crime de genocídio foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2006.
Também se discute a responsabilidade de agentes públicos por ações ilegais que até poderiam corresponder ao genocídio, mas seriam supostamente praticadas por garimpeiros e outros criminosos de forma autônoma e fragmentada. Ocorre que o Estatuto de Roma, em seu artigo 25, não deixa dúvidas sobre a responsabilidade criminal de quem instiga à prática dos crimes tipificados pelo tratado, inclusive a tentativa; de quem, com o propósito de facilitar a prática destes crimes, for cúmplice ou encobridor, ou colaborar de algum modo na prática ou na tentativa de prática do crime, entre outras prescrições. O mínimo que se poderia esperar é, portanto, uma acurada investigação sobre o papel desempenhado pelas autoridades federais desde que a primeira informação chegou ao seu conhecimento, a fim de apurar as suas responsabilidades.
É verdade que a negação taxativa do genocídio indígena não causa surpresa. Mas deve inspirar cuidado. É preciso entender que esse falso debate, que induz a opinião pública a considerar tecnicamente descabido falar em genocídio a fim de atenuar a gravidade das violações cometidas e abrir caminho para a persistente impunidade dos responsáveis, possui ao menos duas grandes dimensões.
A primeira é o horror ao espelho e ao ricochete. O que hoje é tolerado amanhã pode se tornar intolerável, e alguém próximo pode estar envolvido.
O Brasil é um país em que a banalização do uso de palavras mobiliza muito mais do que a banalização dos mais graves crimes. Quando se trata de uma denúncia de genocídio ou de crimes contra a humanidade, o foco da repercussão negativa costuma ser colocado sobre os denunciantes, tratados como suspeitos, e não nos possíveis criminosos. Denunciar um genocídio ou um crime contra a humanidade, seja qual for a formação ou a história de quem denuncia, implica a conversão automática em “militante”. De imediato, a opinião técnica do denunciante, com frequência apresentada de forma estereotipada ou incompleta, será tratada como opinião política e contraposta a especialistas “insuspeitos”. Com frequência, os bastiões da suposta imparcialidade representam as escolas mais conservadoras do direito – ou não estudaram o caso concreto em profundidade, ou sequer são especialistas nesta matéria, ou todas as alternativas anteriores. Pouco, ou nada, se escuta as vítimas e os seus defensores.
Entre os juristas, alegando rigor técnico, sempre sinal de elegância e superioridade, surgem respostas fáceis, dignas de cursinhos para concursos. Não há abertura para um verdadeiro debate, porque é preciso evitar que se crie um ambiente favorável às investigações dotadas de recursos compatíveis com a gravidade dos crimes em questão. E inquéritos competentes forçosamente abarcarão uma grande lista de suspeitos. Quantos colaboradores, diretos ou indiretos, em quantos espaços públicos e privados, são necessários para o cometimento de crimes desta amplitude?
O resultado dessa crispação é a desqualificação sistemática dos denunciantes. A denúncia é socialmente punida, desconsiderada; já o crime, se não era genocídio, qual era mesmo? Quem negou a existência de genocídio está engajado na luta para a apuração dos outros crimes? Ou curiosamente só apareceu no debate público para dizer que não era genocídio?
É preciso reconhecer que, diante da vasta repercussão da crise mais recente da população Yanomami, parte da comunidade jurídica, de forma tardia e constrangida, começa a balbuciar: agora sim, talvez… Como se indícios e até provas do genocídio em curso já não fossem oferecidos pelos indígenas há tantos anos!
Pouco a pouco, testemunhamos a “descoberta”, por leigos e especialistas, de que os fatos dos quais tomaram conhecimento são compatíveis com uma intenção de destruir total ou parcialmente as comunidades indígenas no Brasil. E isso com relevante participação do governo federal, tanto por condutas ativas como omissivas. Descobrem também que o tipo penal do genocídio não envolve apenas guerras e paredões, incluindo, entre outras hipóteses, a submissão de uma ou diversas pessoas a certas condições de existência que podem conduzir à sua destruição total ou parcial. Descobrem ainda que, segundo o direito penal internacional, a expressão “matar” pode ser correlata ao termo “causar a morte”, e a presença de intenção e de conhecimento dos crimes pode ser deduzida de fatos e circunstâncias. Descobrem por fim que um determinado comportamento pode corresponder a diversos crimes, que interesses financeiros vultosos conformam uma evidente motivação para os crimes, que a região em questão está ocupada por organizações criminosas, agindo em total impunidade, e talvez com patrocínio estatal. As lições só não foram aprendidas antes porque é preciso querer aprender o que é genocídio para que ele seja reconhecido.
Ainda sobre o espelho, é preciso registrar que, ao nomear o crime e os criminosos, genocídio e genocidas, o presidente Lula e outras autoridades federais rompem uma tradição relativa à imagem do Brasil. Ativistas de direitos humanos que o digam. Em geral, quem denuncia violações de direitos ocorridas no Brasil é mal visto e atacado por agentes do Estado porque, supostamente, uma denúncia prejudicaria a imagem do país no exterior. Antiética, essa percepção é também anacrônica neste tempo em que, para o bem e para o mal, imagens circulam sem intermediários e o controle das tribunas internacionais por diplomatas erodiu de forma expressiva. Lula entendeu que grave é a prática dos crimes, não a denúncia. “Positiva” é a imagem de um país que investiga, processa e julga os violadores. O mito da cordialidade precisa, de uma vez por todas, dar lugar à realidade do Estado de Direito, no qual governantes e militares também estão sujeitos à lei.
Há, porém, uma segunda dimensão da mentira – desta enorme, histórica, tremenda, vergonhosa mentira que é a negação do genocídio indígena no Brasil.
Chamar o genocídio por outros nomes, sem respaldo técnico devidamente informado, implica participar do movimento negacionista que pretende reabilitar a extrema direita brasileira no debate institucional e no processo eleitoral brasileiro.
É preciso entender as imagens mais recentes de um velho crime em seu contexto histórico, levando em conta os tempos passado, presente e futuro.
Quando as revoltantes imagens de Yanomami esquálidos forem substituídas por novas tragédias, nós precisamos seguir chamando de “genocídio” e de “genocida” o que veio à tona agora e que já vem ocorrendo há muito tempo. Lamentar-se, chorar e contribuir com as ações de resgate é muito pouco.
Dar nome à monstruosidade é parte importante de um movimento amplo que envolve a proteção das vítimas, o enfrentamento claro e definitivo das questões ambientais e econômicas em jogo nos territórios indígenas, com o reconhecimento de que os povos originários são hoje o último bastião da proteção da região amazônica. Envolve ainda a cobrança de investigações, processos e julgamentos, luta travada historicamente pelos movimentos indígenas e seus apoiadores, e aos quais temos o dever de nos somar.
É preciso, ainda, enfrentar todas e todos que alimentam, direta ou indiretamente, os movimentos que resultam, invariavelmente, na aniquilação de seres humanos. É imperativo reconhecer a catástrofe que a ascensão das extremas direitas representa em países como o Brasil, onde convivem diferentes formas históricas de autoritarismo e exclusão – e todas elas jamais foram enfrentadas como deveriam. É hora de dar nome ao monstro para que estes crimes jamais se repitam: a repercussão da emergência dos Yanomami precisa ser o ponto final do genocídio indígena no Brasil.
Deisy Ventura é professora titular da Universidade de São Paulo (USP), onde coordena o Doutorado em Saúde Global da Faculdade de Saúde Pública e é vice-diretora do Instituto de Relações Internacionais. Mestre e Doutora em Direito Internacional pela Universidade de Paris 1, foi uma das coordenadoras do estudo que demonstrou a estratégia federal de disseminação da covid-19 que inspirou a CPI da covid-19 do Senado Federal.