Jornalismo do centro do mundo
Micélio

Maribel, comunidade beiradeira às margens do Rio Iriri, no Pará, vive um limbo: é tradicional mas está dentro de uma Terra Indígena, por isso está ameaçada de expulsão. Foto: Paulo Santos/SUMAÚMA

Ao ser informado de que a terra onde criou sua família era um Território Indígena, o Ribeirinho Josamir Bacabeira não acreditou. Ele não havia encontrado vestígios de moradores anteriores quando plantou sua primeira Castanheira em Maribel, uma comunidade de pescadores e extrativistas às margens do Rio Iriri, no Pará. “A gente tinha certeza que aquilo ali era fake news. Era coisa que era inventada sem necessidade, inventada pelo tempo”, lembra ele, referindo-se ao ano de 1985, quando o governo federal publicou portaria interditando a área para a futura demarcação da Terra Indígena Cachoeira Seca – e, dentro dela, a comunidade onde sua família vivia desde a década de 1940. Apesar de a delimitação ser o primeiro passo para garantir os direitos legítimos do povo Arara, ela colocaria sob risco de expulsão uma comunidade tradicional com mais de 55 famílias. “Não existe terra sem rio para Beiradeiros – já imaginou peixe morar fora d’água?”, complementa Josamir, um senhor de 55 anos com traços de Indígena Canela, pele marcada pelo sol e pai do autor desta reportagem, sobre o medo de ter que deixar o território onde nasceu e cresceu.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o avô de Josamir foi incentivado pelo governo brasileiro a sair do sertão do Ceará e viver nessa região do Pará. Ele foi um dos convocados dentro do projeto que ficou conhecido como “Soldados da Borracha”: trabalhadores que saíram das áreas mais pobres do Nordeste e se instalaram na Amazônia para trabalhar na extração da seringa com o objetivo de enviar látex aos carros e tanques de guerra dos Estados Unidos e dos aliados. Na maior floresta tropical do planeta, o ancestral Bacabeira fincou raízes: fez roça, construiu casa e criou família.

O piloto Josamir Bacabeira nasceu em Maribel e carrega o medo de morrer sem a certeza de que seus filhos e netos terão a mesma infância que a sua no território. Foto: Soll/SUMAÚMA

Os Arara, que Josamir só veio a conhecer mais tarde, tiveram o primeiro contato com não indígenas por volta de 1850. Segundo a publicação Povos Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental, em 1853 já aparecem em registros oficiais e, em 1896, um de seus subgrupos é mencionado pelo viajante Henri Coudreau quando empreendia uma expedição pela bacia do Xingu.

Em 1940, quando os antepassados do Beiradeiro fizeram morada no povoado que se chamaria Maribel, os Arara eram dados como extintos, possível razão pela qual Josamir Bacabeira desconhecia a sua existência. Eles deixaram de ser vistos depois de batalhas com outros povos originários, como os Kayapó e os Juruna (Yudjá), e principalmente após massacres feitos por seringalistas. Mas voltaram a aparecer durante a violenta construção da Transamazônica pela ditadura empresarial-militar (1964-1985). O grupo que habita a Terra Indígena Cachoeira Seca foi contatado apenas no fim dos anos 1980 e é vítima de uma série de violações, que culminaram com a imposição da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, com grande impacto no modo de vida dos Indígenas.

Não há nenhuma dúvida de que o povo Arara habita há séculos o território tardiamente demarcado. Mas quando Josamir Bacabeira nasceu no povoado beiradeiro os Indígenas já haviam passado por múltiplos ataques e se tornado invisíveis possivelmente para salvar suas vidas. Assim, em 2016, já com várias gerações assentadas sobre a terra, a família ficou impactada com a confirmação de que a notícia de 1985 não era fake news: Maribel estava mesmo dentro de território Indígena.

Naquele momento, a então presidenta Dilma Rousseff (PT, 2011-2016) tinha acabado de homologar a Terra Indígena Cachoeira Seca, último passo para a criação da área destinada ao povo Arara, deixando os moradores de Maribel em um verdadeiro limbo: uma comunidade tradicional no Brasil que está dentro de uma Terra Indígena e que, pela lei, está ameaçada de deixar seu território.

‘Para nos arrancar daqui, tem que arrancar a terra falecida”

O fantasma da expulsão assinala o cotidiano e a vida dos Beiradeiros de Maribel. “A gente vive sobressaltado. Se o governo federal for caçar a nossa origem, nós não saímos dessa terra, porque somos fundadores dessas áreas. Já comentei com a turma da Funai que, pra poder arrancar nós dali, tem que arrancar a terra que é falecida, onde minha mãe e meus familiares estão enterrados”, afirma Josamir. Piloto, extrativista e Beiradeiro, ele é nascido e criado na região do Rio Iriri, afluente do Xingu, onde aprendeu a sobreviver da caça, da pesca e do extrativismo. Conta que desde seus 12 anos já pilotava embarcações nos rios Xingu, Iriri e Riozinho do Anfrísio. A mãe do Beiradeiro, que segundo Josamir era Indígena, nasceu no Iriri. Quando seu parentesco chegou àquelas bandas, sua mãe já estava lá. Ela morreu aos 98 anos e está enterrada na comunidade de Maribel, juntamente com outros parentes de Josamir.

O maior medo do Beiradeiro é ser retirado da terra que cultiva. “Quando tiram o peixe de uma lagoa e jogam no seco, ele morre. Que o peixe, se jogar no seco, morre de sede. E nós, se jogar em outro canto, fora do rio, nós morremos de sede do mesmo jeito. Se tirarem nós da beira do rio e jogarem no centro da mata, muitas famílias vão passar mal, os filhos vão morrer, os que estão mais velhos vão morrer de tristeza”, diz Josamir, um dos maiores conhecedores dos rios da região. Seu grande sonho é criar filhos e netos na mesma terra onde os pais o criaram, mas Josamir lamenta que poderá morrer sem a certeza de que isso acontecerá.

No Riozinho do Anfrísio, durante a seca de 2023, Beiradeiros empurram as embarcações para chegar até Maribel e, de lá, acessar Altamira por terra. Fotos: Renata Carneiro

Se desde a década de 1980 esses Beiradeiros lidam com o sentimento de que a terra pode lhes escapar dos pés, a situação piorou no ano passado. Em 25 de setembro de 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou no Diário Oficial da União uma portaria que trouxe desespero aos moradores de Maribel. O documento autorizou o emprego da Força Nacional de Segurança Pública para apoiar a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) na Terra Indígena Cachoeira Seca “nos serviços imprescindíveis à preservação da ordem pública”.

Os Beiradeiros interpretaram esse documento como uma ação de desintrusão [retirada de invasores], na qual a comunidade seria arrancada da terra junto com os grileiros, como se fossem todos iguais. No entanto, a presidenta da Associação dos Extrativistas do Rio Iriri-Maribel, Melania Gonçalves, buscou informações sobre o documento e trouxe calma aos Beiradeiros. Segundo Melania, um servidor da Funai de Altamira informou que a convocação da Força Nacional não tinha relação com a desintrusão, mas com a construção de uma base no território. A base, uma das condicionantes exigidas pela Funai como contrapartida para a construção de Belo Monte, usina hidrelétrica inaugurada em 2016, tem como objetivo proteger o território do povo Arara, uma das terras indígenas mais desmatadas no Brasil. Os moradores de Maribel respiraram aliviados, mas não por muito tempo, pois o fantasma da expulsão continua presente.

Procurada por SUMAÚMA, a Funai afirmou que, em 2023, fez uma “solicitação de crédito para o pagamento de indenização a não indígenas afetos à demarcação da Terra Indígena Cachoeira Seca” no âmbito do Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2024. O órgão, contudo, não confirmou se o crédito foi aprovado pelo Congresso. A fundação disse ainda que realizou estudos na região, entre 2011 e 2016, em que “foram identificadas 1.173 ocupações não indígenas com benfeitorias passíveis de indenização”, e que encaminhou ofício ao Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) “a fim de estreitar o diálogo interinstitucional, com vistas à realocação dessas pessoas para alguma outra Reserva Extrativista”. A mesma aproximação está sendo feita com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para reassentamento dos beneficiários da reforma agrária. Em nota enviada a SUMAÚMA, a Funai ressaltou que os “Arara da TI Cachoeira Seca são considerados Indígenas recém-contatados e, por isso, especialmente vulneráveis”.

O seringueiro José Moreira da Silva, conhecido como Simbereba, mantém a tradição familiar como descendente de um soldado da borracha Foto: Paulo Santos/SUMAÚMA

Os critérios que diferenciam os ocupantes de “má-fé” dos de “boa-fé” foram estabelecidos pela Funai em 2012. A diferença é que, enquanto os de “boa-fé” teriam indenização pelas benfeitorias realizadas no território, os de “má-fé” devem simplesmente sair do território. O documento afirma ainda que o ocupante de “má-fé” é aquele que “sabia ou podia saber que se tratava de Terra Indígena” e, ainda assim, ocupou o território; aquele que cometeu violência no ato da invasão ou aquele que causa degradação ambiental.

“Esse amor que a gente tem por esse território onde a gente está vivendo não existe valor financeiro que pague”, diz Melania, de 56 anos, que nasceu às margens do Rio Iriri e se dedica à defesa dos direitos dos Beiradeiros. “A gente aqui tem a nossa história de vida, as nossas lembranças da infância, as nossas famílias que já morreram aqui, muitos estão enterrados aqui. Às vezes a gente escuta o canto de um passarinho, a gente lembra quando andava na estrada de seringa com o pai, com a mãe… Não é um valor X de dinheiro que vai apagar tudo isso, que vai pagar, que vai superar todo esse amor, toda essa vivência que a gente tem com esse território. Esse território é muito mais que dinheiro pra nós”, explica a liderança, cujo pai também veio do Ceará para a Amazônia como soldado da borracha, como a maioria dos  moradores de Maribel.

Com os olhos tristes, Melania afirma que, se a desintrusão incluir os Beiradeiros, vai ser difícil não somente para os moradores de Maribel, mas também para os outros povos da Terra do Meio e para os próprios Indígenas da Cachoeira Seca. Isso porque a comunidade que foi inicialmente criada por duas famílias de soldados da borracha, os Bacabeira e os Sembereba, na década de 1940, é a única da região que dá acesso, por estrada, ao município de Uruará, que fica às margens da Transamazônica. De Uruará chega-se a Altamira e a Santarém por terra.

A ausência de políticas públicas em Maribel afeta diretamente os Beiradeiros da comunidade. Melania faz remoção de Ribeirinho picado por escorpião. Fotos: Paulo Santos/SUMAÚMA (Melania) e Paulo Sérgio (remoção)

No inverno, os moradores que vivem acima de Maribel dependem dos rios Iriri e Xingu para viver e se transportar. No verão amazônico, período com menos chuvas entre junho e dezembro, o rio fica muito seco – dificultando ou em alguns casos até impedindo as embarcações de acessarem Altamira. Maribel fica especialmente movimentada nessa época do ano, sendo usada inclusive como apoio aos doentes que precisam de serviços médicos. É também o único meio de acesso por onde as comunidades conseguem escoar por terra os produtos para venda, como o pescado, a castanha, o babaçu e a copaíba. A estrada, porém, também é usada por madeireiros, chefes de garimpo e grileiros para atividades ilegais.

Melania conta que por muitas vezes foi acordada no meio da noite para dar apoio aos moradores Ribeirinhos das outras comunidades, e até mesmo para os Indígenas da TI Cachoeira Seca. “Se esses Indígenas fossem depender da Funai para sobreviver, eles já tinham morrido. Uma noite, tive que correr às pressas com um Indígena para o hospital de Uruará. Graças a Deus ele não morreu.”

‘As políticas pra nós são como TV de cachorro’

Por estarem dentro de uma Terra Indígena sem serem considerados Indígenas, os Beiradeiros de Maribel não têm acesso às políticas públicas voltadas às populações tradicionais. Nem o ICMBio, órgão do governo federal que responde por Unidades de Conservação, nem a Funai, órgão que responde pelos Indígenas, costumam atender os moradores da comunidade. Quem ainda dá algum tipo de assistência são as organizações não governamentais, como o Instituto Socioambiental (ISA) e as associações comunitárias da Terra do Meio, área que fica entre os rios Xingu e Iriri, composta por vários territórios protegidos.

Os Beiradeiros aprenderam a viver da terra, da caça e da pesca, mantendo o modo de vida tradicional e preservando a Floresta. Fotos: Joelmir Silva (pescadores e peixes) e Paulo Santos (rio)/SUMAÚMA

Desde o início da construção da hidrelétrica de Belo Monte, em 2011, houve pelo menos duas situações em que os moradores de Maribel foram excluídos. Uma delas é relacionada à chamada condicionante da pesca, prevista pelo Ibama na licença de operação da usina em 2015. Essa condicionante prevê que as famílias da Terra do Meio sejam indenizadas e compensadas pela redução de peixes na região, causada pela construção da hidrelétrica. Antes de 2022, os Beiradeiros de Maribel participavam das negociações sobre a condicionante da pesca. Naquele ano, porém, o ICMBio assumiu o processo, e eles não conseguiram mais ter acesso às informações. Maribel tinha sido tirada da última listagem de futuros beneficiados, justamente por estar dentro de uma Terra Indígena.

Francinaldo Lima, biólogo e assessor das associações da Terra do Meio, conta que ele sempre incluiu na lista de futuros beneficiados os moradores de Maribel e os da Estação Ecológica da Terra do Meio e do Parque Nacional da Serra do Pardo. Mas que, quando o ICMBio voltou a assumir o protagonismo do debate, em 2022, determinou que a condicionante seria só para as famílias do Riozinho, do Xingu e do Iriri, Reservas Extrativistas criadas por decreto federal. Naldo lamenta a decisão. “Eu ficava numa situação muito delicada, porque, de forma direta ou indireta, parecia que estava ‘conivente’ com a exclusão de uma comunidade que eu sei que é comunidade tradicional”, afirma, destacando estar hoje “de mãos atadas”. A lista tem 330 famílias que devem receber indenizações, porém a Norte Energia ainda não pagou o benefício.

Os pescadores de Maribel contam que antes de Belo Monte não precisavam ir muito distante de suas comunidades para pegar o pescado e, dessa forma, gastavam menos combustível. Com a chegada do “desenvolvimento”, eles se sentem prejudicados. Seu Damásio é um senhorzinho baixo, de olhar firme e honesto, que conhece os rios e os pontos de pesca da região desde a infância. Ele diz que, antes, saíam de Maribel toneladas e toneladas de pescado. Mas, depois da barragem, os pescadores tiveram que ir para regiões mais distantes para conseguir seu alimento-base. Muitos entraram em atividades ilegais e, nas palavras dele, “com o passar do tempo, o nosso rio foi ficando preto”. As águas deixaram de ser cristalinas e já não é mais possível enxergar o fundo.

“Antes dela [da usina de Belo Monte], era tudo mais fácil pra nós. Mas teve essa mudança muito grande, essa impactação, e nós não fomos reconhecidos como pescador. Eu tenho carteira de pescador desde 2013, mas nunca recebi nenhum seguro”, conta Damásio. “Todo o tempo, eles foram empurrando com a barriga e nós nunca recebemos nada. E as coisas foram ficando difíceis.”

Natália Assunção, Beiradeira que monitora diariamente os pescadores para saber quanto pegaram de pescado, também fala dos problemas. “Além de os pescadores enfrentarem as dificuldades de ter que ir cada vez mais longe para pescar, tem a questão de o pescado não ser valorizado, a questão do preço. Segundo eles, o valor do peixe permanece o mesmo e a despesa aumenta todos os dias”, explica.

Procurado por SUMAÚMA, o Ibama afirmou que “a comunidade de Maribel, localizada a montante do reservatório principal da usina, não sofre influência do reservatório”. Com relação aos moradores das Reservas Extrativistas da Terra do Meio, o instituto disse que não há consenso sobre os impactos da usina entre a Norte Energia e os órgãos ambientais, mas que as discussões estão avançando. “O ICMBio avaliou que houve impacto sobre o modo de vida e a atividade pesqueira dos moradores das Resex, causado pela implantação e operação da usina de Belo Monte; enquanto a Norte Energia afirma que não se pode atribuir tais impactos à usina.” Diante do impasse, a concessionária entrou com um recurso, indeferido pelo Ibama em 2020. Desde então, as negociações foram retomadas.

Procurada por e-mail, a Norte Energia respondeu que “não se manifestará”.

Vista aérea do porto de Maribel, às margens do Rio Iriri, na região de Altamira. Foto: Paulo Santos/SUMAÚMA

A outra situação em que os moradores de Maribel foram excluídos foi do programa “Luz para Todos”. Em um processo parecido com o da condicionante da pesca, o ICMBio fez um levantamento dos dados para levar energia às comunidades em 2017. “Mas, como o instituto se limita às áreas de unidades de conservação, que são de sua responsabilidade, o levantamento só foi realizado dentro delas”, diz o assessor Francinaldo. Mais uma vez, Maribel ficou de fora. O programa prevê a implantação de energia por meio de painéis solares nas Resex Xingu, Iriri e Riozinho do Anfrísio. Como o anterior, esse projeto ainda não foi implantado.

O Ministério de Minas de Energia afirmou, em nota enviada a SUMAÚMA, que, segundo a legislação, o atendimento a comunidades localizadas em terras indígenas requer a autorização prévia da Funai. O órgão também disse que serão beneficiadas 369 unidades consumidoras de quatro unidades de conservação da Terra do Meio: a Estação Ecológica da Terra do Meio e as Resex Rio Iriri, Rio Xingu e Riozinho do Anfrísio. “As referidas comunidades estão sendo contempladas no atual Programa de Obras após tratativas entre o MME e o ICMBio.”

Já a Equatorial Pará, empresa responsável pelo abastecimento de energia, afirmou que, “para que a comunidade de Maribel seja atendida pelo projeto, é necessário que ela seja priorizada por parte do MME [Ministério de Minas e Energia]” e que, caso essas famílias sejam aprovadas como beneficiárias, seria necessária “a liberação do Ibama e da Funai para execução da obra, pelo fato das futuras ligações estarem em terras indígenas”.

O ICMBio foi procurado 11 vezes por e-mail e telefone, mas não deu resposta.

Além da condicionante da pesca e dos painéis solares, os moradores de Maribel contam que ficam à margem em outras políticas públicas. “Um dia desses, eu vi passar aqui no meu porto uma equipe da saúde. O pessoal estava fazendo cadastro, um tal de balcão da cidadania, mas nós não fomos atendidos, somente o povo das Resex. Nem vacina teve para nós, eles sempre falam que o programa não atende a gente, às vezes a gente pega o resto”, critica Lúcia Helena, que trabalha com remédios medicinais da floresta, referindo-se à localidade de Solidade, que faz parte de Maribel. Os olhos tristes de dona Lúcia Helena, uma senhora forte e sábia de 66 anos, revelam um abandono do poder público. “Será que a Funai pensa que somos grileiros? Às vezes eu nem sei quem somos mesmo, porque é tanta coisa…”, lamenta. Ela costuma definir o povo de Maribel como “nem invasores nem Indígenas”.

Lucia Helena, veterana da comunidade, é fazedora de remédios da floresta e de garrafadas para curar seu povo. Fotos: Paulo Santos/SUMAÚMA

A presidente da associação, Melania Gonçalves, não se conforma: “Eu me revolto, vendo os direitos sendo violados, de saber que hoje a única luz que temos é da lanterna ou lamparinas”, desabafa. “Isso é uma verdadeira televisão de cachorro, o frango fica rodando no espeto, mas não come, assim são as políticas do governo para nós”, conclui a liderança.

Vivendo no pior dos mundos

O professor da Universidade Federal do Pará Maurício Torres trabalhou com a comunidade de Maribel de 2007 a 2014 . Ele é contra a redução de terras indígenas no Brasil, mas, por outro lado, entende que a comunidade de Maribel vive uma situação única. “Hoje vocês [extrativistas de Maribel] e os grileiros são todos tratados como invasores, e vocês [Beiradeiros] não são. Vocês são vítimas da inação do Estado. O Estado não age e deixa vocês no pior dos mundos: nem realoca nem permite que vocês fiquem na terra”, afirma o pesquisador. Ele defende a ideia de que os moradores de Maribel sejam realocados e recebam indenização por todo o tempo que viveram no território e por suas benfeitorias. Mas os Beiradeiros ouvidos por SUMAÚMA não querem ser realocados e nem receber indenizações.

O pesquisador destaca ainda os direitos dos Beiradeiros de Maribel: “Vocês têm direitos. Em primeiro lugar, de não ser tratados como invasores. Em segundo lugar, de ter uma situação regularizada”, afirma. Uma alternativa, diz Maurício, seria a existência de um acordo com o governo que garanta à comunidade um documento provisório da terra enquanto eles não forem realocados e indenizados.

A ideia de costurar um acordo foi defendida por diversos especialistas ouvidos por SUMAÚMA. O antropólogo Márnio Teixeira-Pinto pesquisa o povo Arara desde a década de 1980 e participou do processo de demarcação da Terra Indígena Cachoeira Seca, em 1994. Ele passou meses na região, conversando com moradores e Indígenas, e comenta que, desde sempre, imaginou que os moradores de Maribel poderiam fazer um acordo para seguirem ali. “O que sempre se pensou aí? Que essas comunidades poderiam ter direito a permanecerem, por exemplo, com termos de ajustamento de conduta, desde que seu modo de vida fosse tradicional. E isso significa impedir a continuidade daqueles travessões [estradas vicinais, e mais especificamente a Transiriri, que liga Maribel a Uruará].” O antropólogo, que hoje é pesquisador e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, conta que as duas terras indígenas – as TIs Arara e a Cachoeira Seca – sempre foram pensadas para serem contínuas. Hoje a Transiriri, que sai de Maribel, divide os dois territórios e dificulta, segundo Márnio, o trânsito dos Arara entre as duas áreas protegidas. “A Transiriri sempre foi uma ameaça ambiental e social para a vida indígena a longo prazo”, afirma o pesquisador.

Márnio Teixeira-Pinto lembra as inúmeras dificuldades vividas pelo povo Arara, tanto antes quanto depois do primeiro contato com não indígenas, que se consolidou entre 1981 e 1987. “Eles ainda vivem em ambiente de grandes conflitos, ameaçados por diferentes ondas de invasão, grilagem e roubo de madeira. Tem Indígena na aldeia Laranjal com tiros nas costas”, diz. Ainda hoje há invasores ilegais destruindo a floresta dentro do território: a TI Cachoeira Seca foi a campeã de desmatamento no Brasil em 2015, 2016, 2018 e 2020, segundo dados do Instituto Socioambiental com base no Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. A destruição ambiental, que já existia, se tornou ainda mais grave com a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

A Transiriri escoa produtos dos Beiradeiros de Maribel (à esq.), mas é também usada por grileiros e madeireiros ilegais. Fotos: Paulo Santos/SUMAÚMA

Atualmente, o travessão mencionado por Márnio é alvo de uma disputa narrativa e política. Em época de eleições, há quem se aproveite do desespero dos Beiradeiros para defender o “marco temporal” – tese que reconhece o direito à terra somente aos Indígenas que estivessem no território em 1988, ano da promulgação da Constituição brasileira. Também há quem use os ocupantes do território para defender a redução da Terra Indígena. É o caso do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA) e do vereador do município de Uruará Matheus Sousa (PL-PA), que estiveram no quilômetro 185 sul da Transiriri, dentro da TI Cachoeira Seca, em 10 de fevereiro. Em vídeo postado em suas redes sociais depois da visita, o senador defendeu a realização de um novo laudo antropológico “para de fato constatar que não há vestígios de índios [sic] que moraram ou no presente ou no passado remoto”. O discurso busca agradar aos moradores que vivem ao longo da Transiriri e àqueles que querem a redução de terras indígenas – narrativa defendida pelo extremista de direita e ex-presidente Jair Bolsonaro e por seus seguidores.

Procurado, o senador Zequinha Marinho disse que “sua luta é pelas famílias paraenses que se veem ameaçadas de perderem suas terras. Os agricultores rurais daquela região ocupam a área há décadas”. A reportagem telefonou, enviou mensagem de WhatsApp e e-mail para o vereador Matheus Sousa nos canais de comunicação da Câmara de Vereadores de Uruará e no número do vereador. As tentativas foram feitas durante três dias. O vereador não respondeu aos pedidos de entrevista.

Representantes do povo Arara foram procurados, mas, por questões de segurança, preferiram não se manifestar.

Macaco e Rita Mariah, Ribeirinha pintada por Indígenas Arara, divertem-se durante assembleia na comunidade. Foto: Francinaldo Lima

A relação amigável entre os Indígenas da Cachoeira Seca e os Beiradeiros antigos de Maribel marca uma história recente de respeito, afirmam lideranças ribeirinhas. A questão fundiária até agora não os teria separado. “Não vejo os Arara como inimigos. Não existe uma briga, nenhum conflito, nenhuma questão entre nós. Pelo contrário, a gente é muito próximo. A gente tem um respeito muito grande por eles. E eles também por nós. A questão da terra não conseguiu separar essa amizade e esse respeito que a gente tem uns pelos outros”, comenta Melania, presidente da associação.

Enquanto nada é feito e os órgãos do governo seguem seu jogo de empurra- empurra com relação aos Beiradeiros de Maribel, os jovens da comunidade vivem na angústia e na ansiedade de não ter certeza de que seguirão no território onde tanto aprenderam. Gisele Cardonha é ativista, neta de Indígena, filha de seringueiro e nascida e criada em Maribel. A jovem de cor clara, mãe de gêmeas e fazedora de floresta cursa etnodesenvolvimento na Universidade Federal do Pará. Ela carrega em seu coração a esperança de poder passar a suas filhas a mesma infância que seus ancestrais passaram a ela. SUMAÚMA pediu a Gisele uma entrevista, e ela respondeu em forma de poesia:

E se eu sair daqui?
Eu moro aqui na comunidade Maribel,
no Rio Iriri, e por vezes me pego a pensar
E se eu sair daqui?

Aqui temos nosso lindo rio,
onde podemos nadar e pescar,
nos diverte e nos alimenta.
A qualquer hora do dia,
podemos sair para remar.

Você já imaginou a arte que é
se equilibrar dentro de uma canoa?
Não é para qualquer um,
mas essa arte o Ribeirinho sabe dominar.

E se eu sair daqui?
E os amigos e parentes que tenho aqui?
Será que vamos estar juntos
ou também irão nos separar?

A condicionante nos condicionou,
condicionou a incerteza,
incerteza de perder o chão que me criou,
e o rio em que talvez meus filhos não irão mais nadar.
A barranca de minha tabatinga branca,
eles não irão escorregar.

Ah, infância, uma pena,
essa insegurança de não ver um novo ciclo se reinterar.
E se eu sair daqui?
Será que um outro Iriri eles poderão me dar?
E se eu sair daqui? E se eu sair daqui?

‘Aqui temos nosso lindo rio, onde podemos nadar e pescar, a qualquer hora do dia, podemos sair para remar’, diz a poesia de Gisele Cardonha. Fotos: Joelmir Silva (Gisele) e Paulo Santos/SUMAÚMA


Joelmir Silva é bisneto de um “soldado da borracha”, neto de uma Indígena e filho de um seringueiro. Nasceu e cresceu em Maribel, uma comunidade tradicional da Amazônia que está dentro de uma Terra Indígena – e por isso ameaçada de ser expulsa do território. Hoje com 55 famílias, Maribel foi constituída na década de 1940 por migrantes vindos do Nordeste brasileiro, trazidos pelo governo para a maior floresta tropical do planeta para trabalharem como “soldados da borracha” – como ficaram conhecidos aqueles que extraíam látex para enviar aos carros e tanques dos Estados Unidos e aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Em 2016, o governo brasileiro demarcou a Terra Indígena Cachoeira Seca, do povo Arara, e a comunidade terminou ficando dentro do território protegido – o que não é permitido por lei.

Joelmir foi alfabetizado aos 17 anos e hoje é um dos integrantes do Micélio, programa de coformação de jornalistas-floresta de SUMAÚMA. É professor do ensino fundamental na Terra do Meio e cursa graduação em etnodesenvolvimento na Universidade Federal do Pará, campus de Altamira. O Beiradeiro, como os Ribeirinhos do Médio Xingu gostam de ser chamados, fundou o coletivo de comunicação Vozes do Xingu, em que comunicadores-floresta levam a realidade e os desafios da Amazônia ao restante do Brasil. O grupo é composto de Indígenas e Beiradeiros que se comunicam por meio de diversas plataformas: podcasts, vídeos, fotos e radioamador, com o objetivo de mostrar ao mundo os modos de vida das várias Amazônias e a relação dos povos tradicionais com a floresta e os rios. Por defender a Amazônia e manter um modo de vida tradicional, em sintonia com a natureza, Joelmir se considera um fazedor de florestas. Como os Yanomami, ele acredita que seu povo beiradeiro também segura o céu.

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O Programa de Coformação de Jornalistas-Floresta Micélio-SUMAÚMA foi iniciado em maio de 2023. No total, 14 pessoas do Médio Xingu (quatro Indígenas, três Beiradeiros, uma Quilombola, uma camponesa, uma pescadora, uma enfermeira de saúde indígena e jovens  de coletivos urbanos de Altamira) participam de encontros na Floresta e na cidade, são acompanhadas por “sementoras” – jornalistas seniores de SUMAÚMA – e também as acompanham, porque a coformação é real e conjugada no cotidiano. Nesta reportagem-testemunho sobre o drama da comunidade Maribel, a sementoria foi de Ana Magalhães.  Joelmir Silva, Beiradeiro e participante do Micélio, fez uma apuração em profundidade, abordando as diversas vertentes e seguindo as regras do jornalismo profissional – mas a partir de um mergulho em seu próprio território geopolítico e sentimental, o que faz dessa narrativa também um testemunho.

Coordenado por Raquel Rosenberg, cofundadora do Engajamundo, o método pedagógico do Micélio-SUMAÚMA deliberadamente escapa de qualquer ortodoxia. O programa, idealizado por Eliane Brum, também responsável pelo conteúdo e pela supervisão, e Jonathan Watts, mantém o rigor, a responsabilidade e a precisão do jornalismo tradicional.

Micélio-SUMAÚMA conta ainda com a consultoria de cuidados da psicanalista Ilana Katz e a produção de Thiago Leal. A administração financeira é de Mônica Abdalla e Marina Borges é a assistente administrativo-financeira. Micélio-SUMAÚMA é apoiado por Moore Foundation e Google News Initiative.


Reportagem e texto: Joelmir Silva
Edição: Ana Magalhães e Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Célia Arruda
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Infográficos: Rodolfo Almeida
Fluxo de edição, montagem e finalização: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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